PREFÁCIO [...] que devemos buscar laboriosamente o significado de cada palavra e cada frase, supondo um sentido mais amplo que o permitido pelo uso comum, com a sabedoria, a coragem e a generosidade de que dispomos. Thoreau, Walden Como todo homem de bom gosto, Menard abominava esses carnavais inúteis, somente aptos - dizia - para reproduzir o plebeu prazer do anacronismo ou (o que é pior) para atrair-nos com a idéia primária de que todas as épocas são iguais ou de que são diferentes. Jorge Luis Borges, Ficções Existem livros pelos quais deslizamos os olhos alegremente, esquecendo uma página logo depois de virá-la; outros, que lemos com reverência, sem ousar concordar ou discordar; há também os que oferecem mera informação e dispensam nosso comentário; outros ainda que, por tê-los amado tanto e por tanto tempo, somos capazes de repetir palavra por palavra, uma vez que os conhecemos "de cor", no sentido mais profundo da expressão. A leitura é uma conversa. Os lunáticos respondem a diálogos imaginários que ouvem ecoar em algum lugar de suas mentes; os leitores respondem a um diálogo similar provocado silenciosamente por palavras escritas numa página. Em geral a resposta do leitor não é registrada, mas em muitos momentos ele sentirá a necessidade de pegar um lápis e escrever as respostas nas margens de um texto. Esse comentário, essa glosa, essa sombra que às vezes acompanha nossos livros favoritos, estende e transporta o texto para o interior de um outro tempo e de uma outra experiência; empresta realidade à ilusão de que um livro fala a nós (seus leitores) e nos faz viver. Poucos anos atrás, depois do meu 53o. aniversário, decidi reler alguns dos meus velhos livros favoritos e fiquei espantado, mais uma vez, pelo modo como seus mundos complexos e de muitas camadas pareciam refletir o caos sombrio do mundo em que eu estava vivendo. Uma passagem de um romance iluminava subitamente um artigo do jornal diário; um episódio já quase esquecido era reavivado por uma cena; uma simples palavra incitava uma longa reflexão. Decidi fazer um registro desses momentos. Ocorreu-me então que, relendo um livro por mês, eu poderia completar, em um ano, algo entre um diário pessoal e um livro trivial: um volume de notas, reflexões, impressões de viagem, esboços de retratos de amigos e de eventos públicos e privados, tudo isso induzido pela minha leitura. Fiz uma lista dos livros escolhidos. Pareceu-me importante, por uma questão de equilíbrio, que houvesse um pouco de tudo. (Como não sou senão um leitor eclético, isso não seria muito difícil de conseguir.) A leitura é uma tarefa confortável, solitária, vagarosa e sensual. A escrita costumava compartilhar algumas dessas qualidades. Nos últimos tempos, porém, a profissão de escritor adquiriu certas características das antigas profissões de caixeiro-viajante e ator de repertório. Os escritores são convocados a fazer apresentações únicas em lugares distantes, exaltando as virtudes dos próprios livros como se exaltavam vassouras ou enciclopédias. Em grande parte devido a esse tipo de compromisso, ao longo do meu ano de leituras eu me vi viajando para muitas cidades diferentes, mas desejando estar logo de volta ao lar, à minha casa numa pequena aldeia da França, onde guardo meus livros e faço meu trabalho. Os cientistas imaginam que, antes de o universo passar a existir, ele se manteve num estado de potencialidade, com o tempo e o espaço em suspensão - "numa névoa de possibilidades", como definiu um comentarista - até o Big Bang. Essa existência latente não deveria surpreender os leitores, pois para nós cada livro existe numa condição análoga ao sonho até que as mãos que o abrem e os olhos que o percorrem agitam as palavras e as despertam. As páginas que se seguem são minhas tentativas de registrar alguns desses momentos de despertar. PARTE 1 2002 JUNHO A INVENÇÃO DE MOREL SÁBADO Faz pouco mais de um ano que estamos em nossa casa na França e eu já tenho de partir para visitar minha família em Buenos Aires. Não quero ir. Quero desfrutar a aldeia no verão, o jardim, a casa mantida fresca pelas espessas paredes antigas. Quero acomodar os livros nas estantes que acabamos de construir. Quero me sentar no escritório e trabalhar. No avião, apanho um exemplar de A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares: o relato de um homem encalhado numa praia aparentemente habitada por fantasmas, um livro que li pela primeira vez há trinta ou 35 anos. É a minha primeira visita a Buenos Aires desde a crise de dezembro de 2001, que desatrelou o peso argentino do dólar, levou a economia ao colapso e arruinou a vida de milhares de pessoas. No centro da cidade, não há sinais visíveis do desastre, exceto pelo fato de que, pouco antes do anoitecer, as ruas se enchem de hordas de cartoneros - homens, mulheres e crianças que, para sobreviver, recolhem o lixo reciclável nas calçadas. Talvez as crises, em sua maioria, sejam invisíveis: não são acompanhadas de eventos comoventes que nos ajudem a enxergar a devastação. Lojas fecham, pessoas parecem abatidas, os preços disparam, mas de modo geral a vida continua: os restaurantes estão cheios, as lojas ainda oferecem caros artigos importados (embora eu ouça por acaso uma mulher reclamando: "Não encontro aceto balsámico em lugar nenhum!"), a cidade se agita ruidosamente até bem depois da meia-noite. Turista numa cidade que já foi minha, não vejo as favelas crescentes, os hospitais desabastecidos, as falências, a classe média que engrossa a fila da sopa dos pobres. Meu irmão quer comprar para mim uma nova gravação do Magnificat de Bach. Ele pára em cinco caixas eletrônicos até que um deles consente em liberar umas poucas notas. O que fará quando não conseguir encontrar uma máquina prestativa? Sempre haverá pelo menos uma, diz ele, com uma confiança mágica. A invenção de Morel começa com uma frase agora famosa na literatura argentina: "Hoje, nesta ilha, aconteceu um milagre". Os milagres na Argentina parecem ser cotidianos. O narrador de Bioy Casares: "Aqui não há alucinações nem imagens: há homens verdadeiros, pelo menos tão verdadeiros quanto eu". Picasso costumava dizer que tudo era um milagre, e que era um milagre que uma pessoa não se dissolvesse no próprio banho. MAIS TARDE Passo caminhando diante do apartamento de Bioy Casares, perto do cemitério da Recoleta, onde as famílias de sangue azul da Argentina jazem sepultadas em mausoléus adornados, encimados por anjos chorosos e colunas despedaçadas. Bioy Casares, cujos romances (mesmo quando ambientados em ilhas distantes ou em outras cidades) registram a atmosfera fantasmagórica da cidade onde sempre viveu, não gostava da Recoleta; achava absurdo que alguém persistisse em ser esnobe depois da morte. Vejo Buenos Aires agora como um lugar espectral. Gombrowicz, que chegou a esta cidade vindo da Polônia no final dos anos 30 e partiu 24 anos depois, escreveu no navio que o levava embora para sempre: "Argentina! Em meus sonhos, com olhos semicerrados, eu a procuro mais uma vez dentro de mim mesmo - com toda a minha força. Argentina! É tão estranho, e tudo o que quero saber é isto: por que nunca senti esta paixão pela Argentina quando estava na Argentina? Por que ela me assalta agora, quando estou distante?". Compreendo sua perplexidade. Como uma antiga cidade em ruínas, ela nos assombra à distância. Aqui o passado está presente em camadas, geração após geração de fantasmas: as pessoas da minha infância, meus colegas de escola desaparecidos, os sobreviventes alquebrados. No Magnificat, o coro sobrepõe incontáveis repetições de "omnes, omnes generationes", multidão após multidão de mortos levantando-se para prestar testemunho. Na própria Buenos Aires, as pessoas não vêem os fantasmas. Elas parecem viver aqui num estado de insensato otimismo: "Pior não pode ficar", "Alguma coisa vai acontecer". Remy de Gourmont (em relação a quem Bioy Casares tinha um débito não reconhecido): "Devemos ficar felizes, nem que seja só para o bem do nosso orgulho". Silvia, minha antiga colega de classe, me conta que em minha escola há uma placa em homenagem aos estudantes mortos pelos militares. Diz que vou reconhecer diversos nomes. DOMINGO Faz muito tempo que os argentinos se gabam de sua assim chamada viveza criolla ou esperteza endêmica. Mas essa mentalidade ardilosa é uma faca de dois gumes. Na literatura, sua encarnação é Ulisses, que para Homero era um herói sagaz - salvador dos gregos, flagelo de Tróia, vencedor de Polifemo e das sereias - e para Dante um mentiroso e embusteiro condenado ao nono círculo do Inferno. Embora nos últimos tempos os argentinos pareçam ter confirmado a sentença de Dante, eu me pergunto se ainda é possível retornar à visão homérica e usar esse perigoso dom para realizar prodígios e superar obstáculos. Não sou otimista. Em dezembro passado, concluí um artigo furioso publicado no Le Monde dizendo que "não há mais Argentina e os bastardos que a destruíram continuam vivos". Um psicanalista argentino, indignado, comparou minha conclusão à dos banqueiros europeus e americanos que rejeitavam toda a culpa pela ruína do país e viam nela uma espécie de castigo justo à arrogância argentina. Uma comparação tão vazia talvez se deva à inaptidão do próprio psicanalista (como a de muitos de seus conterrâneos) para aceitar o fato de que, se algo deve mudar, o país precisa se redefinir e, acima de tudo, estabelecer um sistema de justiça irrepreensível. NOITE A experiência da vida cotidiana é negada pelo que queremos que ela seja, pelo que esperamos que ela de fato seja. O narrador sem nome do romance de Bioy Casares está em fuga depois de ter cometido um crime não especificado, sempre acreditando que mesmo na ilha distante em que se encontra, perdida em algum lugar do Caribe, "eles" virão pegá-lo. Ao mesmo tempo, de alguma forma espera por eventos miraculosos: salvação, comida, apaixonar-se. De dentro do personagem, fuga e fantasia são coerentes; olhando de fora, é como observar o desdobramento de uma louca realidade dupla, bifronte e contraditória. A realidade física da ilha confirma as impressões de pesadelo do narrador, só que filtradas pelos olhos do próprio narrador. Sento-me num café. O café é servido com pacotinhos de açúcar que estampam o rosto de personagens famosos do século XX. Posso escolher entre Chaplin e Mandela. Alguém deixou na bandeja um Che Guevara vazio. Mais tarde, passo diante de uma loja de massas frescas chamada La Sonámbula. A vitrine de uma loja de roupas está vazia, exceto por um grande letreiro: TODO DEBE DESAPARECER - "Tudo deve desaparecer". Do lado de fora de uma farmácia, uma mulher com uma receita médica na mão pede aos que entram que comprem o remédio de que ela necessita, pois não tem dinheiro. O narrador de Bioy Casares foi alertado para não tentar alcançar a ilha por causa de uma doença misteriosa que (segundo os rumores) infecta a todos os que nela desembarcam, matando "de fora para dentro". As unhas e os cabelos caem, a pele e as córneas morrem, e o corpo ainda sobrevive de oito a quinze dias. A superfície morre antes do núcleo. As pessoas que ele vê são, evidentemente, apenas superfície. Mas por que manter um diário? Por que colocar no papel todas essas anotações? O misterioso senhor da ilha, Morel, explica suas razões para manter um registro de suas lembranças: "Dar perpétua realidade a minha fantasia sentimental". Sinto falta do meu novo jardim na França, das minhas paredes novas. SEGUNDA-FEIRA Bioy Casares - o aristocrático, o intelectual, o conquistador de mulheres Bioy Casares - descreve ou antevê o mundo da vítima comum: uma vítima literária, obviamente, perseguida por infortúnios literários. Um amigo cubano me disse uma vez que, em Cuba, Bioy Casares é lido como um fabulista político; suas histórias são vistas como denúncias das condenações injustas, das perseguições, do destino dos exilados e refugiados. "Demonstrarei que o mundo, com o aperfeiçoamento das polícias, dos documentos de identidade, do jornalismo, da radiotelefonia, das alfândegas, torna irreparável qualquer erro da justiça, é um inferno unânime para os perseguidos." O tom (as palavras são ditas pelo narrador) pretendia ser de autopiedade; hoje ele soa documental. Eu me pergunto se Bioy Casares teria pensado nessa leitura, logo ele que considerava o rótulo écrivain engagé um insulto terrível. Em A invenção de Morel, tudo é dito de modo hesitante. O velho truque: a verossimilhança na ficção é obtida mediante uma fingida falta de certeza. MEIO-DIA Encontrei Silvia no La Puerto Rico, o café que meus amigos e eu freqüentávamos quando estávamos no colégio. O lugar não mudou: as paredes forradas de madeira, as mesas redondas com tampo de pedra cinzenta, as cadeiras duras, o cheiro de café torrado, talvez até os mesmos garçons, de idade indefinida, trajando aventais brancos manchados. Mais fantasmas, estudando para as provas naquela mesa, esperando por um amigo naquela outra, fazendo planos para um acampamento de verão naquela mais distante - todos agora desaparecidos, mortos, perdidos. No casarão de Morel, que ele chama de museu, a biblioteca contém (com uma exceção) apenas livros de ficção: romances, poesia, teatro. Nada "real". O leitor de língua inglesa ainda não descobriu as obras de Bioy Casares. Embora tenham sido publicados nos Estados Unidos, seus livros não são lidos, e o primeiro (e talvez o único) romance de sua autoria publicado na Inglaterra foi O sonho dos heróis, em 1986. A ignorância do leitor de língua inglesa nunca deixa de me espantar. [...]