PREFÁCIO Cada vez mais a produção historiográfica revela a complexidade do tráfico atlântico de escravos, demonstrando a racionalidade econômica dos negócios negreiros e o envolvimento progressivo das sociedades africanas. Pesquisas relativamente recentes, baseadas na exploração empírica de dados colhidos em arquivos de diversos países, elucidam detalhes até então pouco explorados e que muitas vezes chegam a surpreender. Indicam, entre outros aspectos, a prevalência da África Centro-Ocidental no fornecimento dos maiores contingentes de cativos e o auge desse comércio no século XVIII, coincidindo com um intenso processo de internalização dos resgates no continente africano que atingiu sociedades localizadas a milhares de quilômetros da costa, sem que fossem desmobilizadas as incursões junto aos povos do litoral. Outros trabalhos, atentos à movimentação atlântica, flagram os agentes europeus ou americanos em plena atuação, ora na escolha dos melhores pontos para o aprovisionamento de escravos e na seleção das melhores peças, ora ainda no pagamento de tributos e taxas aos régulos locais ou a seus prepostos. As novas abordagens contribuem para um melhor entendimento não só da dinâmica histórica do tráfico, como também da participação ativa de grupos africanos, entre eles reinos, dirigentes e elites, agrupamentos étnicos e religiosos. Não se trata exclusivamente de dividir as responsabilidades pela deportação de milhões de homens e de mulheres de suas terras de origem para a América e em direção a outros pontos do Atlântico, mas de revelar a infinidade de intermediários que operacionalizaram cada uma das fases desse ramo do comércio atlântico, antes, depois e durante a viagem marítima. Nesse sentido, a complexidade dos negócios negreiros remete-se à consideração dos africanos como agentes históricos. O eixo do trabalho de Jaime Rodrigues reside exatamente na análise das complexas redes de relações que concretizaram as atividades negreiras por meio do acompanhamento de figuras sociais nelas envolvidas: capitães dos navios e suas equipagens, sertanejos, colonos, pombeiros, autoridades metropolitanas, sobas africanos, entre outras. Na recomposição do universo constituído em torno do tráfico, seu estudo traz contribuições significativas a um tema que, embora clássico, não se encontra de forma alguma esgotado. De uma parte, inspirado pelas novas direções teóricas e metodológicas da História Social, o ponto de partida de sua interpretação é o de detectar a historicidade de relações, bem como atinar ao que Joseph Miller chama de as contingências históricas capazes de transformar um fato aparentemente linear e unívoco em um processo marcado por características e variações ao longo do tempo. De outra parte, ao observar de perto as ligações entre o Rio de Janeiro e os territórios portugueses de Angola, associa-se uma profícua produção historiográfica brasileira sobre um tema amplo que atraiu, desde há muito tempo, estudiosos pioneiros como Afonso d'E. Taunay e Maurício Goulart. Como também o francês Pierre Verger que, analisando os fluxos e os refluxos da movimentação atlântica - de mercadores, marinheiros, embaixadas e trabalhadores, e de produtos tais como o tabaco, o açúcar e o ouro -, pôde comprovar, de maneira inquestionável, os nexos históricos que se estabeleceram entre a Bahia e o golfo de Benin, ou a Costa da Mina, como diziam os homens do século XVIII. Uma linha de interpretação que foi retomada mais recentemente por Manolo Florentino e Luiz Felipe de Alencastro, em seus trabalhos sobre o eixo Luanda-Rio de Janeiro, ao pontuarem que o caminho aberto entre os dois portos não só era percorrido com a mesma intensidade que as rotas baianas, como tornava indissociáveis dois lados de um mesmo empreendimento político, social e econômico. Estudos que, em última instância, reafirmaram a impossibilidade de compreender a história do Brasil sem a atenção à história das sociedades africanas, em especial daquelas que participaram do circuito atlântico. Neste conjunto de reflexões, em grande parte retiradas da leitura deste livro, o mérito de Jaime Rodrigues é o de examinar nuances daquilo que se convencionou chamar de infame comércio. Expressão, aliás, que inspirou o título de seu livro anterior, publicado em 2000 e resultado das pesquisas feitas para o mestrado na Unicamp, no qual estuda as implicações do tráfico na sociedade brasileira do século XIX, incluindo a fase do comércio ilegal acentuada a partir de 1830. Ao lidar com temáticas de reconhecida dificuldade, já nesse trabalho deixava à mostra suas qualidades de pesquisador acurado e sensível a temas significativos da nossa história. Qualidades que se repetem nesta obra, fruto de sua tese de doutorado, igualmente sustentada por pesquisas minuciosas feitas em acervos brasileiros e portugueses, em busca de uma documentação rarefeita e, principalmente, fragmentada. Empreendimento nada fácil, conforme ele próprio reconhece numa espécie de desabafo: "O desafio consistiu em amarrar dados aparentemente desconexos, percorrer espaços diferenciados e temporalidades relativamente longas, além de superar meu próprio desconhecimento e estranhamento a respeito de como as coisas se passavam entre homens e mulheres tão diferentes de nós". Ainda segundo suas palavras, desafio diante do qual foi preciso ousar. Os primeiros capítulos caminham por entre as áreas de influência lusa, na costa ocidental africana, explicitando os diferentes níveis das tensões vividas pelos colonos, em grande parte mercadores portugueses ou luso-brasileiros, bem como pelo poder metropolitano, nas dificuldades em manter seus enclaves livres da concorrência das nações rivais, ou em implementar as medidas de controle sobre as atividades mercantis. Nas cidades de Luanda e Benguela e nos presídios do interior; nos territórios como Cabinda e Ambriz, em que o domínio português era relativamente tênue e onde de fato quem governava eram os dignitários africanos; ou nos reinos em que esta soberania se mostrava inconteste, como em Loango e em Molembo, o historiador acompanha as vicissitudes do viver e do negociar na África. Realiza sua tarefa com sensibilidade e por meio de uma documentação variada: correspondência dos governadores às autoridades centrais, ofícios de observadores que mapeiam as dificuldades ou as potencialidades do comércio, queixas de colonos. Doenças, descaso do governo metropolitano, fases de carestia e de abastecimento precário eram percalços cotidianos que se somavam aos conflitos freqüentes com as populações nativas e suas chefias tradicionais, que nunca deixaram de resistir e de impor seus interesses. Segundo constata o autor, para os mercadores lusos (ou luso-brasileiros ou luso-africanos), a fortuna, aparentemente fácil, viria somente depois que fossem contornadas as febres, vencidas a infidelidade dos agentes africanos empregados a serviço dos sertanejos - os chamados pombeiros - e a traição dos sobas aliados ou vassalos da Coroa, no caso das áreas angolanas. E ainda, nas faixas costeiras e no Atlântico, depois de se combater a ação dos concorrentes rivais, ou a pirataria nos mares, promovida por franceses, ingleses e holandeses que atuavam nos intervalos do poder metropolitano e à revelia das pretensões de exclusivismo dos portugueses. Conflitos e asperezas do comércio atlântico que somente os lucros incomensuráveis dos negócios com o sertão e a riqueza que circulava ao longo das rotas marítimas e terrestres poderiam justificar, mas que imprimiram, de outra parte, um perfil característico aos assentamentos europeus no litoral e ao longo dos rios - formados por uma população intermitente, aventureira em sua origem, marcada pela indisponibilidade em se fixar e por uma tendência em permanecer somente o tempo necessário para enriquecer e depois desfrutar as fortunas pessoais nas áreas mais prósperas e menos pestilentas do império ultramarino português. Cuidadoso às inflexões do tempo e atento às pressões conjunturais, o historiador nos conduz, com certa freqüência, à dinâmica particular do século XIX em que os negócios do tráfico, no litoral da África atlântica e avançando gradativamente em direção às zonas orientais, ganharam uma movimentação mais rápida e também flexível. A presença do esquadrão antitráfico britânico, plantado nos flancos ocidentais, levava os negreiros a uma infinidade de artimanhas: quando desviavam suas rotas marítimas, substituíam os portos mais tradicionais, como Uidá ou Ajudá, por exemplo, por embarcadouros recém-formados e menos conhecidos, por praias e enseadas ermas, e ainda quando definiam preferências por tipos mais leves de embarcações. Numa conjuntura particular, modificaram-se também os procedimentos internos dos resgates, multiplicando, entre eles, os depósitos onde eram armazenados os escravos trazidos pelas caravanas do interior, os chamados barracões ou quibandas, feitorias privadas edificadas não mais na costa, mas no interior, nas zonas ribeirinhas e na parte interna das pequenas baías. Conjuntura que, supõe-se, também levou ao aumento da mortalidade no interior dos negreiros, pois, diante da ilegalidade do comércio e da ausência de uma legislação normativa, registrava-se rotineiramente a superlotação dos navios. Nota-se que muitas dessas situações ocorriam nas duas margens do oceano - nas regiões africanas das lagunas que acompanhavam a orla da baía de Benin, nas áreas próximas ao estuário do rio Congo, e mais ao sul, em Benguela, como também nas zonas brasileiras de desembarque que se pulverizavam pela costa sul, de Paranaguá a São Paulo, entre Ubatuba e Angra dos Reis, bem como nas faixas litorâneas do Nordeste, como o autor já havia indicado em seu trabalho anterior. Em sua análise, tendo como referência sobretudo a África Centro-Ocidental e o contexto oitocentista, algumas regiões ganham destaque. Entre elas, o porto de Cabinda, do reino de Ngoyo, que ora exemplifica uma situação histórica em que a pretensão do domínio português não conseguiu vencer a autonomia dos africanos (sendo "governado por pretos", no dizer das fontes), ora constitui cenário da concorrência com os franceses, que destruíram o forte português recém-construído, em 1783-84, ora, ainda, perfaz referência à importância dos povos bawoyo na intermediação das atividades negreiras ou à destreza dos marinheiros cabinda no suprimento dos mercadores euro-americanos estacionados na costa. É também Cabinda, zona de livre-comércio em razão da prevalência do interesse africano, a base de negociantes envolvidos tanto com o mercado brasileiro como com o cubano. E, por fim, palco de uma das sublevações de escravos ocorridas a bordo de um navio, uma das poucas registradas pela documentação, segundo o autor. Sem querer fixar filiações que aprisionariam uma abordagem em muitos sentidos original, é possível identificar algumas inspirações historiográficas no trabalho de Jaime Rodrigues. Se nos primeiros capítulos encontram-se mais ou menos indicadas as contribuições de Joseph Miller, estudioso do tráfico na região de Angola, da gradativa ampliação das zonas fornecedoras de escravos e das contingências históricas que cadenciam as ofertas - secas, fomes e epidemias, por exemplo -, na segunda parte, intitulada "Navios e homens no mar", o historiador dialoga com os estudiosos da middle passage e persegue algumas das sugestões feitas, já há algum tempo, por Peter Linebaugh e Marcus Rediker, em especial a de investigar as relações sociais que se estabelecem nas longas travessias atlânticas. A começar pela consideração do navio negreiro como um fato histórico e, portanto, sujeito a mudanças no tempo, o autor segue esclarecendo a enorme variação tipológica das embarcações - sumaca, galera, bergantim, brigue, escuna, patacho etc. - e examina as transformações nas técnicas e nos materiais de construção. Inovações caras também aos traficantes, pois delas dependiam um tempo menor de viagem e possibilidades maiores de transporte de suas mercadorias humanas. E que acabam por originar uma arquitetura própria aos negreiros, leves, rápidos e internamente providos de escotilhas gradeadas e outras disposições necessárias para o aprisionamento da carga. Talvez um dos trechos mais instigantes do trabalho seja aquele em que o autor se debruça sobre o mundo híbrido, multiétnico e transcultural das embarcações atlânticas. Tendo em mãos uma base documental igualmente diversificada - cartas de ordens aos pilotos e de saúde, relatos de viajantes que navegaram nos negreiros e, principalmente, os processos contra as embarcações apreendidas pela Comissão Mista instituída para o combate do contrabando -, Jaime Rodrigues trata de uma temática relativamente ausente na produção brasileira, à exceção talvez do livro de Amaral Lapa sobre a Carreira da Índia. Nessa parte, recompõe o universo social do navio, decifrando desde a origem dos marujos, os jargões marítimos e a língua falada entre eles - chamada de gíria de proa, uma espécie de pidgin dos homens do mar -, ritos, superstições e religiosidade até a divisão do trabalho e as relações de poder que ajudavam a dar um caráter todo especial ao tumbeiro. Segundo sua análise, tripulações heterogêneas de diferentes procedências e nacionalidades e, nelas, escravos e forros de ascendência africana, hierarquias profundas e regras de disciplina rígidas, uma situação de senhorio provisório com os africanos encarcerados e, por fim, longos períodos de navegação transformavam os negreiros em algo mais que um simples meio de transporte marítimo. Ainda com relação ao perfil da tripulação, o autor sublinha outra particularidade relativamente simples: a de que era formada, de fato, por homens especializados no comércio de escravos. A associação com um ramo específico de negócios definia e configurava, segundo ele, as práticas e os conhecimentos desses homens do mar, capitães, mestres e contramestres e outros oficiais que passavam a ser não só os encarregados de realizar a escolha e a compra das peças escravas, como também os que articulavam acordos, assinavam tratados, lideravam embaixadas aos reinos africanos. Em especial, as atividades dos cirurgiões iam além das relativas ao trato médico e ao enfrentamento das intempéries das viagens; principais ajudantes dos capitães nos negócios terrestres, desenvolviam um saber adquirido no escrutínio dos homens, das mulheres e das crianças que seriam comprados. Vale dizer que, considerando-as fontes históricas, essa característica imprimiu um sentido muito particular às narrativas de viagem que foram produzidas por eles. A importância da terceira parte do trabalho reside, a meu ver, na capacidade do historiador em superar a perspectiva histórica estreita que considera os africanos transportados unicamente como vítimas passivas, quase sempre silenciosas, de um comércio rendoso. Ou mesmo daquela que os observa exclusivamente a partir dos dados quantitativos. No esteio de alguns estudiosos que insistem em investigar a resistência dos africanos ao movimento hegemônico do tráfico atlântico, entre eles Winston McGowan e Roquinaldo Ferreira, examina revoltas contra a escravização. Não só algumas poucas que aconteceram nos navios (ou que foram noticiadas), como também as que ocorreram ainda em terra, no contexto dos barracões, como ainda outras, gerais, entre os povos dos sertões que, mobilizados contra o domínio português, acabavam por obstaculizar os fluxos regulares das caravanas entre o interior e o litoral. Além disso, uma vez que considera os africanos sujeitos históricos, Jaime Rodrigues sublinha, à luz das interpretações de Robert Slenes, que o sentido da escravização atlântica, a simbologia do mar e os temores diante dos sinais de canibalismo entre os homens brancos devem ser igualmente buscados entre os escravizados. Nessa parte de seu estudo, vislumbram-se as inúmeras possibilidades e perspectivas de análise do tráfico que se abrem e que devem permanecer nos horizontes de pesquisas históricas futuras. Denso de informações, mas ao mesmo tempo de leitura agradável e com uma narrativa fluente, a cada página do livro desponta uma profusão de dados, retirados dos documentos ou compilados de uma bibliografia nem sempre disponível ao público leitor brasileiro. Jaime Rodrigues desenvolve assuntos que já haviam sido descortinados nas pesquisas anteriores: a composição eminentemente estrangeira dos negreiros e o ensino da língua portuguesa ainda no continente africano como prática que antecipava um processo de ladinização no sentido de camuflar a feição dita boçal dos escravos transportados. Fornece ainda novos informes sobre os produtos com os quais se negociava, a preferência das sociedades africanas pelas fazendas de Malabar, os tecidos ingleses e, sobretudo, direcionada aos produtos brasileiros: a cachaça, ou gerebita, e o tabaco, que fundamentavam a prevalência dos mercadores e dos navios vindos do Rio de Janeiro e da Bahia. Detalhes a mais que contribuem para evidenciar que se trata de uma obra indispensável para os interessados em aprofundar a compreensão do tráfico atlântico e da diáspora em seus sentidos históricos variados e amplos. Maria Cristina Cortez Wissenbach