Trecho do livro O JULGAMENTO DE SÓCRATES

Apresentação UMA PEDRA NO CAMINHO DOS PODEROSOS Todo governo é mentiroso. I. F. Stone Poucas coisas conseguem permanecer secretas por muito tempo. O que os serviços de inteligência basicamente fazem é dizer ao patrão que ele está agindo da maneira correta. A espionagem é um desperdício de dinheiro. Ninguém passa a entender melhor o que acontece bisbilhotando por buracos de fechadura. I. F. Stone Se tivesse nascido sete anos antes, I. F. Stone teria a idade do século. "Se eu durar muito, vou acabar ganhando uma certa credibilidade e um certo peso", palpitou ele em 1971. Embora tenha chegado aos oitenta, na véspera do último Natal, Isidor Feinstein Stone (I. F. desde 1937) não precisou viver muito para tornar-se um dos jornalistas mais confiáveis e importantes do mundo. Em todo caso, só recentemente, ao aposentar-se e publicar este livro, ele passou a ser cortejado pela mesma mídia que antes o mantinha à distância por considerá-lo um radical. Como é do seu feitio, o velho Izzy ironizou a inesperada consagração: "Não consigo me acostumar com o lado dos vencedores". Ainda que tardia, sua consagração representa uma vitória das virtudes do radicalismo sobre os vícios do comodismo, fazendo de quebra um auspicioso contraponto ao eclipse do governo Reagan. Ser radical, para ele, nunca foi aquela coisa feia imaginada e temida pelos espíritos mais conservadores. Seu radicalismo foi sempre e unicamente um compromisso com a raiz dos fatos. Pela rama não pega nada. Ao ficar parcialmente surdo, radicalizou de vez. Impossibilitado de ouvir direito o que os figurões do governo diziam nas entrevistas coletivas, deixou seus colegas de profissão anotando e transcrevendo as vozes do poder e passou a trabalhar com os olhos, xeretando e cotejando declarações e documentos oficiais - por ele apelidados de "diários da burocracia" -, além de jornais e revistas dos eua e da Europa. E assim confirmou o que já desconfiava: que qualquer governo tudo faz para esconder verdades incômodas. Fabricou, na esfera política, mais Pinóquios do que Gepeto seria capaz. Uma intervenção cirúrgica recuperou-lhe a audição, mas não a confiança no modus operandi dos seus colegas. A rigor, confia pouco na grande imprensa. Fala de cadeira, pois está no ramo há quase sete décadas. Viu muita coisa, principalmente bobagens com ares de novidade e chancela de modernização. Entediado com os elogios que, num simpósio sobre jornalismo, faziam ao jornal Washington Post, saiu-se com esta: "Também acho o Post um jornal surpreendente. A gente nunca sabe em que página se encontram as notícias de primeira página". Izzy tem o saudável hábito de seguir religiosamente um conselho dado por Ernest Hemingway, em O sol também se levanta: "Você tem que ser irônico desde a hora em que sai da cama". A ironia não mata, mas pode desarmar. Há 22 anos, os liberais que se chocaram com o que ele dissera do senador J. William Fullbright, então cultuado como um dos mais destemidos opositores da guerra no Vietnã, não souberam como responder à altura. Para Stone, Fullbright, sem dúvida um homem honrado e do lado certo, não passava de um cloakroom crusader, ou seja, um opositor de gabinete. Resenhando um livro que comparava o senador a Prometeu, não se conteve: "A última coisa que ele [Fullbright] faria na vida seria roubar o fogo de Zeus. Ele teria preferido enviar um memorando sigiloso e cautelosamente redigido, sugerindo a Zeus que desse o fogo ao homem a fim de evitar perturbações da ordem pública". Não foi mais condescendente com outro totem do liberalismo americano: o presidente John Kennedy. Seu cadáver ainda estava insepulto quando Izzy o definiu como "um líder convencional, não mais que um conservador esclarecido, demasiado cauteloso para a sua idade e dominado por um indisfarçável desprezo pelo povo". Por não ter concluído o curso superior (trocou no meio a Universidade da Pensilvânia pela carreira de jornalista), o establishment acadêmico sempre o desdenhou, mesmo sabendo que uma fração ponderável do que os historiadores revisionistas da política externa americana "descobriram", nos últimos anos, já havia sido revelada por Stone, no calor da hora, décadas antes. Por trabalhar à margem das redações, sempre encontrou dificuldades para integrar-se à fraternidade jornalística. Teve bons motivos para achar que não estava perdendo grande coisa. Em 1941, por exemplo, foi banido do National Club Press por ter levado um juiz para almoçar no restaurante daquela entidade. O juiz era negro. Racismo e intolerância são as duas pragas que sua alma libertária mais abomina. O que em parte explica a sua birra com o sectarismo de certas esquerdas e a sua implicância com a União Soviética. Stone é judeu, filho de imigrantes russos, e um socialista que não se envergonha de admirar mais Thomas Jefferson do que Karl Marx. No seu santuário intelectual, o sumo pontífice do marxismo perde ainda para Erasmo, Thomas Morus e John Milton, cuja seminal defesa da liberdade de imprensa, Areopagitica (1644), é um dos seus tonificantes espirituais de cabeceira. Nascido na Filadélfia, já era aos dez anos um leitor voraz e onívoro. Abriu seus olhos para o mundo através do romance autobiográfico de Jack London, Martin Eden (1909). Converteu-se ao ateísmo influenciado pelos Primeiros princípios (1862) de Herbert Spencer. Ainda nem tinha idade para votar quando inscreveu-se no Partido Socialista, com a cabeça virada pelas idéias de Engels e pelo comunismo anarquista de Kropotkin. "Eu já era da Nova Esquerda muito antes de ela existir", pilheriou, anos atrás, ao atender a um repórter interessado em historiar a politização da The New York Review of Books fomentada por Stone a partir do final de 1964. Apesar de socialista, desde cedo trabalhou melhor como um lobo solitário. Tinha catorze anos ao lançar sua primeira publicação, Progress, um mensário abusado cujo primeiro número ostentava uma epígrafe de Sófocles, um sinal precoce de sua paixão pelo berço da democracia. Durante trinta anos (de 1923 a 1952) perambulou por diversos jornais já extintos, como PM, Daily Compass, New York Star, Inquirer, todos do eixo Nova Jersey-Filadélfia-Nova York. Também foi, a partir de 1938, editor-associado do semanário The Nation - que ainda vai bem, obrigado -, acumulando esse cargo com artigos e reportagens para o New York Post, que era um dos raros diários do país a favor do New Deal. Em suas páginas, Stone escreveu de tudo, até editoriais, entre 1933 e 1939. Como correspondente do Daily Compass, mandou-se para a Europa em agosto de 1950, montando uma base em Paris. Seria lá, justo na terra do Caso Dreyfus, que criaria o seu primeiro grande caso de repercussão internacional. Depois de acreditar por algum tempo nas versões oficiais sobre a guerra na Coréia, começou a notar discrepâncias entre os despachos dos jornalistas europeus e os de seus colegas que operavam sob as asas do general MacArthur, e resolveu investigar. Ao comprovar que o governo americano mentia deslavadamente - que na verdade a guerra na Coréia fora precipitada pelos EUA, como parte de um plano para assumir o controle do Sudeste asiático -, deixou seus colegas com as calças na mão. Publicados simultaneamente em Paris pelo L'Observateur, um semanário liberal editado pelo herói da Resistência Claude Bourdet, os artigos de Stone agitaram o círculo diplomático europeu, mas permaneceram convenientemente ignorados pela grande imprensa americana. Entusiasmado com eles, Jean-Paul Sartre cogitou de editá-los em livro, mas, antes que essa idéia se concretizasse, Stone e os soldados ianques já estavam em casa novamente. O livro afinal saiu, em 1952, na Inglaterra, com o título de The hidden history of the Korean war, depois de ter sido recusado por 28 editoras, todas, evidentemente, receosas de represálias por parte dos macarthistas, que então mandavam e desmandavam nos destinos da América. Não teria saído sem o empenho pessoal das duas estrelas da revista marxista The Monthly Review, Paul M. Sweezy e Leo Huberman, este bastante conhecido no Brasil por um best-seller das Ciências Sociais, História da riqueza do homem, permanentemente reeditado pela Zahar. Também em 1952, o Daily Compass fechou e Stone se viu obrigado a partir para a maior aventura de sua vida. Sem emprego fácil na grande imprensa, decidiu montar o seu próprio veículo de informação, inspirado na experiência de Gilbert Seldes e seu In Fact, na década anterior. A época era a menos propícia possível para qualquer aventura editorial que não se situasse à direita do menos liberal dos liberais. O quixotesco Izzy deu de ombros e partiu para cima dos seus moinhos de concreto. Com a indenização do Daily Compass (3500 dólares) e mais 3 mil dólares de um amigo, criou uma newsletter sem paralelos na história da imprensa mundial. Dispondo da listagem de assinantes de três publicações para as quais havia trabalhado (uma delas o Daily Compass), assegurou de saída 5300 leitores, entre os quais se destacavam Bertrand Russell, Albert Einstein e Eleanor Roosevelt. Preço da assinatura: cinco dólares. O suficiente para cobrir as despesas de gráfica e tirar dois salários: um, de 125 dólares, para ele e outro, de 75 dólares, para uma secretária, logo substituída por Esther, a abnegada sra. Stone. O primeiro número do I. F. Stone's Weekly chegou aos seus assinantes no dia 17 de janeiro de 1953. Nos três primeiros anos, não foi além de 10 mil exemplares, dobrando a tiragem em 1963. Pouco antes de virar quinzenal, em 1968, por conta de um infarto e de um descolamento de retina sofridos por seu factótum, o alternativo mais bem informado do planeta ultrapassou a barreira dos 40 mil leitores. A sucessão de parlapatões na Casa Branca contribuiu bastante para o seu êxito, consolidado sobretudo com a escalada da guerra no Vietnã. Nos três primeiros anos da gestão Nixon, o I. F. Stone [Bi] Weekly registrou um aumento de 10 mil novos assinantes por ano. Chegou a um pique de 74 mil exemplares e a ser incluído entre as 25 publicações regularmente resumidas para o presidente. "Os primeiros anos foram solitários", Stone recordaria na última edição do jornal, em dezembro de 1971. Sou naturalmente gregário, mas me puseram no ostracismo. Meus leitores me sustentaram. Ninguém jamais teve um público tão carinhoso como eu, e as cartas (poucas das quais - por favor, desculpem - pude responder) compensaram a frieza com que me tratavam em Washington. Ninguém pode ter sido mais feliz do que eu com o Weekly. Dar um pouco de conforto aos oprimidos, expressar a verdade exatamente como eu a vejo, não aceitar imposições, exceto aquelas ditadas pelas minhas deficiências naturais, não ter outro senhor que não minhas próprias compulsões, procurar viver à altura da minha imagem idealizada do que deve ser um verdadeiro jornalista, e ainda assim conseguir que minha família sobrevivesse - o que mais pode um homem pedir? Seu artigo de despedida terminava de forma comovente: Tenho podido viver de acordo com minhas convicções. Politicamente, acredito que não pode existir uma sociedade decente sem liberdade de crítica: a grande tarefa de nosso tempo é uma síntese de socialismo e liberdade. Filosoficamente, creio que a vida do homem se reduz, em última análise, a uma fé - cujos fundamentos estão além de qualquer prova - e que esta fé é uma questão estética, um sentimento de beleza e harmonia. Acho que todo homem é o verdadeiro Pigmaleão de si próprio. E em recriando a si próprio, bem ou mal ele recria a raça humana e o futuro. O I. F. Stone's Weekly fechou as portas porque seu dínamo não tinha mais forças (nem saúde) para editar sozinho quatro páginas cuja confecção exigia intermináveis leituras, pesquisas e conversas, para oferecer aos seus assinantes o que o resto da mídia impressa ora desprezava, ora apurava sem rigor. Cansou de dar furos. O furo de que mais se orgulha deixou mal o físico Edward Teller, o pai da bomba de hidrogênio. Flagrou-o mentindo sobre os efeitos de explosões atômicas subterrâneas, em 1957, e o denunciou com a veemência que o ersatz do Dr. Fantástico merecia. Bem que Stone tentou passar o bastão para um herdeiro de sua estirpe, mas não o encontrou. Stone é insubstituível. O cineasta Jerry Bruck Jr. teve a sorte de pegá-lo ainda na trincheira e documentou sua faina jornalística no média-metragem I. F. Stone's Weekly, de 62 minutos de duração, que em 1973 causou sensação no Festival de Cannes e foi sucesso de crítica e público nas principais capitais americanas. As novas gerações se surpreenderam com o seu singular método de trabalho, revelado pelo filme: cercado por pilhas e mais pilhas de publicações, Stone pega um jornal e divide-o ao meio, rasgando pela dobra. Impaciente, não usa tesoura para fabricar recortes, apenas os dedos. É capaz de localizar qualquer referência no meio da sua aparente bagunça. Em questão de segundos. Ou imediatamente, se ela estiver na sua cabeça, onde em geral costuma estocar a maioria das informações. Obcecado pelos problemas da liberdade de pensamento e de expressão, aproveitou a aposentadoria (relativa, pois continuou escrevendo com regularidade para a New York Review of Books e volta e meia envia o que chama de stonegramas ao The Nation) para vasculhar as raízes dessa questão. Primeira baldeação: as revoluções inglesas do século XVII. Passou um ano estudando-as. Até descobrir que só poderia entendê-las a contento entendendo bem a Reforma. Ao baldear para a Reforma, sentiu a necessidade de investigar alguns movimentos premonitórios ocorridos na Idade Média. Quando se deu conta, aterrissara no período clássico, tendo à sua frente as várias pistas que cruzam pela palavra isologia, ou seja, o direito de todos à palavra, à expressão de um pensamento. Stone estava na Grécia. Fechando um ciclo. Sua primeira obra, o jornalzinho doméstico que aos catorze anos ia entregar de porta em porta, montado numa bicicleta, foi apresentada aos leitores com uma citação de Sófocles. A obra que ele, contrariando as expectativas dos seus admiradores, acredita ser a última, o envolveu com Sócrates. Teria mesmo havido uma caça às bruxas em Atenas? Teria Sófocles sido de fato uma vítima do autoritarismo? Como explicar o súbito e incongruente surto de autoritarismo na terra natal da democracia? Atormentado por essas e outras dúvidas, Stone, que conhece bem francês, alemão e latim, dedicou a década de 1970 ao estudo do grego arcaico para compreender a fundo a Grécia antiga. Xerocou e retraduziu todos os textos disponíveis - históricos, filosóficos, literários, teatrais -, comparando as traduções existentes e confirmando a cada passo que a fidelidade, em tradução, por mais competente que ela seja, é uma utopia. Em sua viagem pelos léxicos helênicos, deparou-se com quatro vocábulos diferentes para liberdade de expressão. O processo contra Sócrates (em 399 a.C.) - acusado de corromper a juventude grega com suas idéias e condenado a beber cicuta, segundo a versão corrente - foi o ponto final inevitável do seu périplo. Crente, de início, que Sócrates fora uma vítima da intolerância, resolveu acumular as funções de repórter investigativo com as de advogado de defesa do filósofo. Conforme ia enfronhando-se no caso, obteve mais um furo de reportagem: segundo Stone apurou, o inventor da maiêutica não foi propriamente um santo, nem a Atenas daquele tempo o berço da democracia relativa. Seu livro despertou polêmicas nos EUA, principalmente nas páginas da revista Harper's (maio de 1988). Nem todo mundo gostou de saber que Sócrates só se preocupava com sua liberdade de expressão e, no fundo, cavou sua própria execução. Maiores detalhes nas páginas seguintes. Minha única intenção, nesta apresentação, foi mostrar aos leitores o seu ator: uma extraordinária figura humana, que se tornou um paradigma da sua profissão. Acho que nem é necessário acrescentar que Stone é o meu herói jornalístico número um. Sérgio Augusto Prefácio COMO ESTE LIVRO VEIO A SER ESCRITO O presente livro é, na verdade, um fragmento do que foi originariamente concebido como uma obra maior - muito maior. É impossível compreender um livro completamente se o autor não revela a motivação que o levou a empreender uma tarefa tão onerosa. Como foi que, após toda uma vida dedicada ao jornalismo investigativo crítico e independente - designado em inglês pelo termo pejorativo muckraking -, fui levado a me dedicar aos estudos clássicos e à questão do julgamento de Sócrates? Quando tive que abandonar meu periódico I. F. Stone's Weekly no final de 1971, após dezenove anos de publicação, por estar sofrendo de angina do peito, resolvi utilizar minha aposentadoria para empreender um estudo da liberdade de pensamento na história da humanidade - não a liberdade em geral, conceito que encerra ambigüidade demais, podendo até mesmo ser identificada com a liberdade dos fortes de explorar os fracos, mas a liberdade de pensamento e expressão. Este projeto tinha suas raízes na idéia de que nenhuma sociedade é boa, quaisquer que sejam suas intenções e pretensões utópicas e libertárias, se as pessoas que nela vivem não têm liberdade para manifestar o que pensam. Meu objetivo era, com esse estudo, ajudar uma nova geração não apenas a preservar a liberdade de expressão nos lugares onde ela existe - e ela está constantemente sendo ameaçada por intenções boas e más -, mas também ajudar os dissidentes combativos do mundo comunista a promover uma síntese libertadora entre Marx e Jefferson. Quando jovem, senti-me atraído tanto pela filosofia quanto pelo jornalismo. Li os fragmentos de Heráclito no verão após a conclusão de meu curso secundário. Fui estudar filosofia na universidade, porém já trabalhava como jornalista full time quando abandonei os estudos no terceiro ano para me dedicar ao jornalismo o resto da vida. No entanto, jamais perdi o interesse pela filosofia e pela história, e assim que me aposentei voltei a elas. Minha investigação sobre a liberdade de pensamento começou com um ano dedicado ao estudo das duas revoluções inglesas do século XVII, as quais vieram a exercer grande influência sobre o desenvolvimento do sistema constitucional americano. Logo passei a achar que não me seria possível compreender integralmente as revoluções inglesas seiscentistas se não conhecesse melhor a Reforma protestante e as íntimas ligações entre a luta pela liberdade religiosa e a luta pela liberdade de expressão. Para compreender a Reforma, foi necessário andar para trás mais uma vez e estudar os movimentos premonitórios e os pensadores ousados da Idade Média que semearam as sementes da liberdade de pensamento. Isso, por sua vez, estava intimamente ligado ao impacto que teve sobre a Europa ocidental a redescoberta de Aristóteles, através de traduções e comentários em árabe e hebraico, no século XII. Daí fui levado às fontes dessas influências libertadoras, situadas na Atenas da Antigüidade, uma sociedade em que a liberdade de pensamento e de expressão floresceu num grau jamais visto antes e que pouquíssimas vezes foi igualado posteriormente. E então, como já aconteceu com tantos outros antes de mim, apaixonei-me pelos gregos. Quando voltei à Grécia antiga, julguei de início, em minha ignorância, que poderia fazer um apanhado rápido da liberdade de pensamento na Antigüidade clássica, baseado nas fontes canônicas. Mas logo descobri que não havia fontes canônicas. No campo dos estudos clássicos, quase todas as questões eram profundamente controvertidas. Nossos conhecimentos formam uma espécie de quebra-cabeça gigantesco, do qual muitas peças estão irremediavelmente perdidas. Com base nos fragmentos restantes, estudiosos igualmente eminentes constroem visões contraditórias de uma realidade desaparecida, as quais tendem a refletir as idéias preconcebidas que tomaram como ponto de partida. Assim, resolvi estudar as fontes eu mesmo. Então constatei que não se podiam fazer inferências políticas ou filosóficas que fossem válidas com base em traduções, não porque os tradutores fossem incompetentes, mas porque os termos gregos não eram inteiramente congruentes - para empregar um conceito de geometria - com os termos equivalentes do inglês. O tradutor era obrigado a optar por uma entre várias alternativas apenas aproximadamente satisfatórias. Para compreender um termo conceitual do grego, seria necessário aprender ao menos o suficiente do idioma grego para poder trabalhar com o original, pois era apenas nele que se podiam captar todas as implicações e conotações potenciais do termo. Assim, por exemplo, como entender a palavra logos com base em uma tradução inglesa, quando a definição desse termo famoso - com toda a sua rica complexidade e evolução criativa - exige mais de cinco colunas, em letras miúdas, na edição integral do enorme Greek-English lexicon, de Liddell, Scott e Jones? Um milênio de pensamento filosófico está contido num termo que começa, em Homero, designando a idéia de "fala", transforma-se em "Razão" - com R maiúsculo como senhora divina do universo - nos estóicos e termina, no Evangelho segundo são João - por meio de um sutil empréstimo tomado às fontes bíblicas -, como o Verbo criativo de Deus, Seu instrumento na tarefa da Criação. No meu tempo, mesmo numa escola secundária do interior, os alunos estudavam quatro anos de latim para se preparar para a universidade, e Catulo e Lucrécio foram alguns dos primeiros escritores por quem me entusiasmei. Mas só fiz um semestre de grego na faculdade antes de abandonar os estudos no terceiro ano. Ao me aposentar, resolvi estudar grego o bastante para poder compreender os termos conceituais. Comecei a estudar sozinho, com uma edição bilíngüe do Evangelho segundo são João, e depois passei para o primeiro livro da Ilíada. Mas o estudo do grego acabou levando-me à leitura dos poetas gregos e da literatura grega em geral, uma exploração que continua a me deliciar. Quanto mais me apaixonava pelos gregos, porém, mais me incomodava a cena de Sócrates diante dos juízes. Aquilo feria minha sensibilidade de defensor das liberdades civis; abalava minha fé jeffersoniana no homem comum. Era uma nódoa na reputação de Atenas e da liberdade que ela simbolizava. Como poderia o julgamento de Sócrates ter ocorrido numa sociedade tão livre? Como pôde Atenas trair seus próprios princípios de tal modo? Este livro é o fruto desse tormento. Resolvi descobrir como pôde acontecer tal coisa. Quando iniciei meu trabalho, não podia defender o veredicto dos juízes, e continuo não podendo. Mas me interessava descobrir o que Platão não nos revela, ver a coisa pelos olhos de Atenas, atenuar o crime da cidade e remover, desse modo, uma parte do estigma que o julgamento representa para a democracia e para Atenas.