Li a carta de Mundo num bar do beco das Cancelas, onde encontrei refúgio contra o rebuliço do centro do Rio e as discussões sobre o destino do país. Uma carta sem data, escrita numa clínica de Copacabana, aos solavancos e com uma caligrafia miúda e trêmula que revelava a dor do meu amigo. "Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de ponta-cabeça, mas não posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever é quase um milagre... Sinto no corpo o suor da agonia", é o que se lê pouco antes do fim. Na margem da última página, estas palavras: "meia-noite e pouco". Talvez tenha morrido naquela madrugada, mas eu não quis saber a data nem a hora: detalhes que não interessam. Uns vinte anos depois, a história de Mundo me vem à memória com a força de um fogo escondido pela infância e pela juventude. Ainda guardo seu caderno com desenhos e anotações, e os esboços de várias obras inacabadas, feitos no Brasil e na Europa, na vida à deriva a que se lançou sem medo, como se quisesse se rasgar por dentro e repetisse a cada minuto a frase que enviou para mim num cartão-postal de Londres: "Ou a obediência estúpida, ou a revolta". 1 Caminhavam juntos, sob o sol ou nos dias de chuva, Fogo e Jano, seu dono. O cachorro se adiantava, virava o focinho para o lado, esperava, se empinava um pouco, farejava o cheiro do homem, escutava os sons roucos da voz: "Vamos logo, Fogo... Vai, vai andando". Eram inseparáveis: Fogo dormia perto da cama do casal, e Alícia não suportava isso. Quando o cão trazia carrapatos para a cama, ela o enxotava, Jano protestava, o bicho soltava ganidos, ninguém dormia. Então Fogo voltava, quieto e mudo, e se aninhava no cantinho dele, forrado com uma pele de jaguatirica. Ela ia dormir no quarto do filho. Nos últimos meses da vida de Jano foi assim: Fogo e seu dono num quarto, e a mulher, sozinha, no quarto do filho ausente. O cachorro tinha na pelagem umas manchas amareladas que o menino detestava porque um dia o pai dissera: "Manchas que brilham que nem ouro. Aliás, Fogo é um dos meus tesouros". Antes de conviver com Mundo no ginásio Pedro II, eu o vi uma vez no centro da praça São Sebastião: magricelo, cabeça quase raspada, sentado nas pedras que desenham ondas pretas e brancas. Ao lado de uma moça, ele mirava a nau de bronze do continente Europa; olhava o barco do monumento e desenhava com uma cara de espanto, mordendo os lábios e movendo a cabeça com meneios rápidos como os de um pássaro. Parei para ver o desenho: um barquinho torto e esquisito no meio de um mar escuro que podia ser o rio Negro ou o Amazonas. Além do mar, uma faixa branca. Dobrou o papel com um gesto insolente, me encarou como se eu fosse intruso; de repente se levantou e estendeu a mão, me oferecendo o papel dobrado. "Mundo?", perguntei, antes de agradecer. Sorriu com o canto da boca, os olhos escuros ainda assustados. "Naiá, esse aí é o sobrinho do Ranulfo?" A moça o agarrou pela cintura, e os dois se afastaram, o rosto de Mundo voltado para mim e em seguida para o monumento. Foi o primeiro desenho que ganhei dele: um barco adernado, rumando para um espaço vazio, e toda vez que passava perto da nau Europa, lembrava do desenho de Mundo. Só fui tornar a encontrá-lo em meados de abril de 1964, quando as aulas do ginásio Pedro II iam recomeçar depois do golpe militar. Os bedéis pareciam mais arrogantes e ferozes, cumpriam a disciplina à risca, nos tratavam com escárnio. Bombom de Aço, o chefe deles, mexia com as alunas, zombava dos mais tímidos, engrossava a voz antes de fazer a vistoria da farda: "Bora logo, seus idiotas: calados e em fila indiana". Naquela manhã, o portão do colégio estava fechado durante o recreio, e a chuva confinava os ginasianos sob os pórticos revestidos de mármore. Antes de soar a sirene, apareceu uma mulher segurando uma sombrinha vermelha que protegia apenas o corpo do estudante que a acompanhava; tinham quase a mesma altura. Bombom se precipitou para abrir o portão para os dois, que subiram lentamente a escadaria. Os alunos se dispersaram para que eles atravessassem o saguão; não olharam para ninguém, foram observados por todos. O bedel os conduziu à sala do diretor, e quando a sirene disparou, a mulher reapareceu, sozinha, o cabelo ondulado úmido; a blusa de seda, molhada, provocou assobios dos veteranos. A morena de cerca de trinta anos desceu com pressa a escadaria; na calçada, abriu a sombrinha e aproximou o rosto das grades de ferro. Viu-me encostado a uma coluna e me chamou: era um absurdo não ir visitá-la, mas de agora em diante eu não teria mais desculpas, seu filho ia estudar no Pedro II. Concordei com um gesto tímido, e ela ainda disse: "Penso na tua mãe como se estivesse viva". Era Alícia, a mãe de Mundo. No começo ele foi apenas um colega de sala. Esquivo, o mais estranho de todos, e dono de certas regalias. Nas manhãs chuvosas, um DKW preto vinha pela Rui Barbosa e estacionava no pátio lateral. Mundo subia a escada, protegido por um guarda-chuva que o chofer segurava. Este dizia ao bedel: "Aí está o menino". Mas, quando Mundo chegava atrasado, tinha que esperar o intervalo seguinte. Nós o víamos rondar o coreto da praça das Acácias, depois sentar num banco e desenhar um bicho-preguiça, uma garça, o rosto de um transeunte. As regras disciplinares o transtornavam; mesmo assim, o desleixo da farda e do corpo crescia, enraivecendo os bedéis: cabelo despenteado, rosto sonolento, mãos sujas de tinta; a insígnia dourada inclinada na gravata, o nó frouxo no colarinho, ombreiras desabotoadas. Ele usava uma meia de cada cor, arregaçava as mangas, não polia a fivela do cinturão. Bombom o barrava e ameaçava: preguiçoso, displicente, pensava que filhote de papai tinha vez ali? Mundo não respondia: sentava atrás da última fila, isolado, perto da janela aberta para a praça. Nos dias de chuva forte, passava o recreio em pé, diante dessa janela, observando as árvores que a tempestade derrubara, os jacarés entre as pedras, as aves aninhadas à beira do pequeno lago, alguém sentado num banco, solitário, à mercê das rajadas, e, mais longe - naquela época o horizonte ainda era visível -, as casinhas de madeira inundadas ou submersas e os barcos e canoas emborcados ou à deriva nos igarapés do centro de Manaus. Nos intervalos, caminhava sem medo no meio dos veteranos valentões, ignorando as ameaças, arriscando-se a levar um empurrão ou tapa. No silêncio nervoso de uma prova de matemática, ouvíamos o ruído da ponta do lápis no papel, rabiscando seres e objetos; mesmo assim, ele respondia às questões e era o primeiro a terminar a prova. No fim do ano, Mundo nos surpreendeu: aprovado em todas as disciplinas. Quando eu me aproximava para puxar conversa, mostrava umas caricaturas a bico-de-pena e perguntava se eu tinha gostado. Fechava o caderno se via certos colegas por perto, desprezando-os com uma altivez que os irritava. "A gente estuda que nem condenado, como é que ele consegue passar de ano?", reclamava o Minotauro. E o Delmo: "Os pais dele devem dar uma boa gorjeta aos professores e bedéis. Já se livrou até dos Jogos da Arena". Jogos da Arena era um torneio de luta livre num círculo de areia suja. Nas tardes de sábado, o professor de educação física sorteava os participantes entre veteranos e calouros. Os estudantes do Pedro II cercavam o areal, e, na calçada, alunos de outros colégios e soldados de folga assistiam ao espetáculo pela grade, torcendo e se divertindo, como se fossem bichos fora da nossa jaula. Aos poucos os lutadores perdiam o medo, ficavam ferozes, competiam que nem animais acurralados. Num desses torneios morreu Chiado. Seu adversário, um veterano do último ano, foi tão aplaudido que nem notou a cabeça engastada nas barras de ferro. Ergueu os braços vitoriosos enquanto o outro sangrava; alguém soltou um grito, ele virou o corpo e deparou com os olhos fechados de Chiado. Com mãos de gancho separou as barras, a cabeça esmagada caiu, e vimos a boca ensangüentada e depois o corpo sendo carregado até o professor. Uma semana de luto, o círculo de areia em silêncio. Olhávamos para a arena e lembrávamos do Chiado, o rosto esmurrado e chutado pelo aluno parrudo. Sua morte foi comentada durante o ano inteiro. Em novembro, depois de um processo que não deu em nada, o veterano foi expulso do Pedro II, os jogos recomeçaram, ainda mais violentos: lutadores que prometiam vingança e apontavam as barras de ferro retorcidas, evocando a valentia do amigo punido, e os covardes que se cuidassem. Mundo não participava dos torneios, nem praticava os demais esportes: fora dispensado graças a um atestado médico arranjado por Alícia; mas tinha que ficar na quadra e responder à chamada nas aulas de educação física. Ela ainda apareceu duas ou três vezes com o filho: chegavam abraçados, no portão se despediam com beijos e afagos; ele subia a escada virando o rosto para a mãe, e a cada degrau seu sofrimento parecia aumentar. Ela ia embora antes que ele entrasse; andava com pressa até o carro, enquanto Mundo a seguia com os olhos, esperando um aceno. Aos treze anos já era mais alto que Alícia, de quem herdara o rosto anguloso e os olhos grandes e escuros, meio repuxados, "de alguma tribo esquecida", como ele próprio escreveu anos depois. Quando chovia, os veteranos o cercavam no saguão: "Tua mãe não veio? Molhada é ainda mais bonita", e ele, com o rosto crispado, mordia os lábios e devolvia com um olhar desafiador os gracejos idiotas. E logo percebemos que seu poder, além de emanar das mãos, vinha também do olhar. As primeiras caricaturas causaram alvoroço no Pedro II: apareceram na capa dos quatrocentos exemplares do Elemento 106, o jornaleco do grêmio. Destacava-se o desenho do semblante carrancudo do marechal-presidente: a cabeça rombuda, espinhenta e pré-histórica de um quelônio, o corpo baixote e fardado envolto numa carapaça. Ao redor das patas, uma horda de filhotes de bichos de casco com feições grotescas; o maior deles, o Bombom de Aço, segurava uma vara e ostentava na testa o emblema do Pedro II. Um mês de suspensão para os redatores, dez dias para o artista, e apreensão do jornal. Mesmo assim, a capa do Elemento 106ficou exposta por toda parte: nos banheiros, na cantina, nas lousas, na porta da sala da direção. Era arrancada e rasgada, e reaparecia no dia seguinte, apesar das rondas dos bedéis, e das ameaças de punição e até de expulsão. Quando Mundo voltou, o professor de educação física o repreendeu: mais uma brincadeira como aquela, e rua! Foi xingado de subversivo pelo Delmo, insultado pelo Minotauro: artista de araque, neto de galegos. Ficava sozinho no fundo da sala, atento aos nossos gestos, os olhos fisgando um e outro; depois inclinava a cadeira, encostando-a na parede, abaixava a cabeça, concentrado, o rosto perto do papel. No bate-bola do aquecimento, sentava à sombra da marquise dos laboratórios e espiava; os olhos graúdos e pestanudos nos seguiam, mangando talvez do nosso esforço, alheio às ordens do professor: "Bora, rapaz, entra no jogo, porra". Quando o apito trilava, e os bandos se precipitavam na quadra de cimento, Mundo se deslocava para a arquibancada, abria a caixinha de lápis e desenhava os corpos que corriam, trombavam, se contorciam, giravam, caíam. Corpos caídos foi a primeira seqüência que ele deixou sobre sua carteira numa manhã em que foi à cantina. Vimos nossos corpos tombados, nossos rostos fazendo caretas medonhas: o Minotauro, meio monstruoso e o único sem cabeça, o Delmo com cara de gafanhoto, e o professor, no centro da quadra, um arlequim atarracado, a cabeça separada do corpo. Os desenhos distorciam e misturavam nossos corpos, reconhecíamos traços de nós mesmos e dos outros, de modo que todos se sentiram ultrajados. Delmo, enfezado, quis rasgar tudo e partir pra porrada: "Que tal umas cacholetas? um sabacu?". Minotauro, muito mais forte, pinçou com os dedos da mãozorra o pescoço do Delmo: "Nada disso, rapaz. Tenho uma idéia melhor". Foi na manhã de um sábado de novembro, antes dos exames finais do segundo ano. Minotauro se aproximou de Mundo: por que não iam até a praça? As meninas estavam loucas para ver os desenhos. Ele concordou. Uma roda de alunas cercou o banco enquanto Mundo mostrava os corpos caídos; Minotauro colou com carrapicho um chumaço de rabiola na traseira do artista, tocou fogo com álcool e se afastou; eu ia correr para alertá-lo, Minotauro me segurou, tapou minha boca com a mãozorra e curvou com força minha cabeça. Mundo estranhou a risada das garotas, viu a fumaça entre suas pernas, deu um pinote e se atirou no lago. Depois sentou na pequena ponte de pedra, tirou os sapatos e o cinturão, e ficou ali, todo molhado, fitando os bichos, ouvindo a zombaria dos ginasianos. Dezenas. Não se mexeu; esperou o sinal do fim do recreio, a praça sem fardas, urros ou gargalhadas. Parecia mais triste que raivoso. "Estou acostumado", disse, sem olhar para mim. E não respondeu quando perguntei se ia dar queixa à diretoria. Mais tarde, da janela da sala, eu o vi caminhar descalço, sem camisa, o cinturão no pescoço, os cadarços dos sapatos enroscados nas mãos. Seu corpo sumia nos caminhos sinuosos da praça e reaparecia na sombra das acácias. Passou perto das sentinelas de bronze do quartel da Polícia Militar e contornou o edifício, como se rumasse para o porto.