O ARQUIPÉLAGO DAS TORMENTAS 1 Voltamos para Porto Alegre em setembro de 1956. Três meses mais tarde o noivo de Clarissa chegou para o casamento. Era a primeira vez que visitava um país estrangeiro. Não sabia uma palavra de português. Tivemos uma pequena dificuldade a resolver (os mitos! os ritos!) com a ajuda do pároco da igreja de Nossa Senhora do Rosário. Como meu futuro genro fosse de origem judaica, a Igreja não permitia que a cerimônia religiosa se realizasse, como de costume, à frente do altar-mor. Assim Clarissa e Dave casaram-se na sacristia, às onze horas duma clara e morna manhã de dezembro. À uma da tarde Mafalda forrou-se de Belergal e até hoje me assegura que não se lembra muito claramente do que aconteceu naquele dia. Quanto a mim, recorri a um expediente não bioquímico: disfarcei-me psicologicamente de fotógrafo e andei dum lado para outro, subindo em cadeiras e mesas, de câmara e flash em punho, tirando fotografias em cores dos recém-casados e dos convidados à boda. Quem pronunciou a frase áurea do dia foi minha mãe. Ao apertar a mão do noivo, d. Bega, que não sabia patavina de inglês, encarou-o e, à sua melhor maneira gaúcha, murmurou: "Então este é o filho-da-puta que vai roubar a minha neta?". Dois dias depois Clarissa e Dave tomaram um avião da Varig, rumo do Rio, onde deviam embarcar para Nova York num dos navios da Moore-McCormack. Mafalda recusou ir ao aeroporto. Levei o casal no meu carro. ("Sire, um tamboreiro inglês não sabe tocar retirada!") De instante a instante eu olhava furtivamente para o mostrador de meu relógio, cuja pulseira de metal apertava um pulso que devia estar batendo mais depressa que de costume. Os amigos e amigas de Clarissa que tinham ido despedir-se dela cercavam-na em alegre algazarra. Eu mal ousava encarar meu filho, que estava a meu lado, taciturno como eu. Chegou por fim a hora dos adeuses. Chamei Clarissa à parte e, com um ar patético de último ato de tragédia, sussurrei: "Vou fazer-te o meu último pedido. Quando chegares a Washington, compra uma gravata nova para o teu marido. Essa que ele está usando agora é pavorosa". Ao deixar o aeroporto, de volta para casa, veio-me à mente a figura de lord Tantamount, o biólogo amador do Contraponto de Huxley, que costumava cortar o rabo de salamandras para observar depois como se regeneravam os seus tecidos e como elas recuperavam a parte mutilada de seus corpos. Que tipo de salamandra psicológica seria eu? Quanto tempo levaria para me refazer da mutilação sentimental que acabava de sofrer? 2 Em fins de outubro de 1956, realizava-se no auditório da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre um ato público de protesto contra a brutal intervenção militar soviética na Hungria. Convidado a tomar parte nessa reunião, fiz o discurso que passo a transcrever na sua essência porque, dum modo geral, isto é, no que diz respeito a princípios básicos, seu conteúdo deixa clara minha posição política, que tanta gente até hoje parece não ter ainda compreendido: Minha solidariedade ao povo húngaro, neste momento tão barbaramente agredido, e meu protesto contra a criminosa intervenção armada soviética não terão nenhum valor e nenhum sentido se eu antes não deixar bem claro meu pensamento em face de certos acontecimentos políticos e sociais de nosso tempo. Sei que vou ferir suscetibilidades, tocar em pontos nevrálgicos. Sinto muito. É inevitável. Esta é a hora de falar alto e claro, e afinal de contas aqui estamos para, entre outras coisas, proclamar o direito que cada membro da raça humana tem de dizer e escrever o que pensa. Não quero que a minha presença nesta sala e as minhas palavras esta noite sejam interpretadas como um voto que faço para que a Hungria volte ao tipo de governo que tinha antes da guerra. Quero deixar inequivocamente expressa a minha repulsa ao aspecto feudalista, fascista e racista do antigo regime húngaro. Quando em 1935 as tropas de Mussolini invadiram a Abissínia, firmei o manifesto em que intelectuais brasileiros protestavam contra a bárbara agressão fascista. Protestei também, não uma mas mil vezes, quando em 1937 o Generalíssimo Francisco Franco aceitou o auxílio de tropas da Alemanha e da Itália, que massacraram parte do povo espanhol, usando-o como cobaia para experiências com as armas modernas que aqueles dois países, então totalitários, haveriam de usar na guerra que em breve viriam a provocar. O pacto russo-alemão que em 1939 permitiu a invasão e a mutilação da Polônia, abrindo aos nazistas o caminho para a conquista da Europa, teve também o meu repúdio, que foi manifestado repetidamente em público. Incontáveis vezes lancei meu protesto apaixonado contra as perseguições e atrocidades de que tem sido vítima o povo judeu em tantas partes do mundo. As violências praticadas pela Inglaterra contra os patriotas de Chipre e as da França contra os nacionalistas da Argélia têm a minha mais decidida antipatia. Para que ponto cardeal do comportamento humano convergem esses sentimentos e manifestações? Em que partido político me enquadram? É muito simples a resposta. Eles indicam que o escritor que agora vos fala coloca acima de conveniências político-partidárias, acima de doutrinas filosóficas, econômicas ou sociais, a causa da dignidade do homem, de seu direito a uma vida decente, produtiva e bela, de seu privilégio de escolher livremente a própria religião e os próprios governantes, e manifestar-se publicamente, sem qualquer tipo de pressão física ou psicológica. E é em nome dessa causa e desses direitos que venho hoje trazer a minha solidariedade de homem e de escritor ao povo húngaro, que está sendo vítima de uma das mais brutais e revoltantes agressões da história dos tempos modernos. Ficar calado ou indiferente diante de tal intervenção armada é o mesmo que consentir tacitamente na volta da humanidade à barbárie, ao horrendo império do direito da força. Se nesta hora elevarmos os motivos partidários, ideológicos ou de "realismo político" acima dos sentimentos de fraternidade humana, teremos, no mais imbecil dos suicídios coletivos, assinado a nossa própria sentença de morte tanto civil como biológica. É preciso alertar a consciência do mundo e exigir-lhe ao menos alguma coerência. Não me parece lógico condenar a esquerda pelos mesmos crimes que toleramos ou mesmo aplaudimos quando cometidos pela direita. Sempre repeli com horror aqueles que, sob o pretexto de nos salvarem a alma, querem queimar-nos os corpos. Não aprovo a idéia totalitária de que os fins justificam os meios. Odeio todos os tipos de ditadura, inclusive os chamados benignos ou paternalistas. Detesto qualquer forma de coação. A causa daqueles que lutam pela liberdade será sempre a minha causa. Não aceito como são e válido nenhum regime político e econômico que não tenha como base o respeito à pessoa humana. Nos sistemas totalitários esse desrespeito se exprime numa ditadura policial; na manutenção de campos de concentração; no sacrifício do indivíduo, que é um ente real, em benefício da coletividade, que é uma mera abstração; nos expurgos físicos e na ausência dos mais elementares direitos civis. Mas é preciso não esquecer que no nosso mundo capitalista também não se respeita a pessoa humana, pois aceitamos um regime de privilégios, monopólios e injustiças sociais crônicas, o qual permite que milhões de pessoas vivam miseravelmente alienadas, num plano mais animal do que humano. Dias depois desse comício, Maurício Rosenblatt manifestou-me em particular sua opinião sobre o meu discurso. Como eu, abomina a violência e os regimes totalitários, mas, olhando os acontecimentos com um olho frio, concluía que Nikita Kruchev nada mais fizera que seguir o realismo político stalinista. Se perdesse a Hungria para o Ocidente, a Rússia soviética teria uma cunha inimiga permanente e perigosamente cravada no seu flanco. "Não te iludas", concluiu o meu clarividente amigo, "em situação idêntica o governo americano teria agido da mesma maneira que o soviético." Repeli essa hipótese como absurda, porém menos de dez anos mais tarde eu viria a lançar o meu protesto público contra a intervenção militar dos Estados Unidos no Vietnã e na República Dominicana. 3 Decidimos passar janeiro e fevereiro de 1957 na cidade. ("Chega de viagens", dissera-me minha mãe, acrescentando: "Agora sosseguem o pito".) Examinei as muitas notas que tinha com sugestões para O arquipélago. Comecei a fazer-me perguntas... Uma delas me deixou desconcertado. Não teria eu aceito o convite de João Neves da Fontoura levado pelo desejo inconsciente de encontrar um "pretexto honroso" para não ter de enfrentar a tarefa de escrever o último volume da trilogia, que sabia complexo e difícil? Sim, porque todas as minhas inibições, preguiças, temores ficariam perfeitamente coonestados: o senhor diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana seria um homem muito ocupado com assuntos interamericanos e portanto não teria tempo cronológico nem psicológico para escrever romances... E agora que desculpa podia apresentar eu a mim mesmo? Nenhuma! Precisava começar a trabalhar imediatamente. Havia comprado em Washington uma máquina de escrever portátil dum vermelho da China (sem a menor alusão política, creiam-me) e a bela mancha de tão viva cor estava agora sobre a mesa, diante de mim. Fiquei mais uma vez a olhar para uma folha de papel em branco. Afastei a máquina e, segundo um velho hábito ou mania, entrei a fazer desenhos com lápis de massa de várias cores, a atenção longe daquele tempo e daquele espaço. Um impulso do "computador" guiou-me a mão. Desenhei um chapéu de copa alta e cônica, com largas abas. E outro chapéu... E mais outro e outro. Sob os sombreros, caras indiáticas cor de terra-de-siena queimada. As figuras do primeiro plano tinham as faces voltadas para mim, mas as outras estavam de costas e afastavam-se numa perspectiva que terminava numa porta... Já então eu conscientemente havia decidido que aqueles homens - estava claro que eram mexicanos! - entravam numa igreja. Desenhei sumariamente a fachada plateresca do templo, encimada por uma cúpula coberta de mosaicos amarelos e azuis. Era domingo e repicavam os sinos. México! Veio-me uma súbita saudade das imagens, da luz e da música desse país esplendorosamente plástico. Senti então uma vontade irresistível de escrever minhas impressões de viagem à pátria de Orozco, Rivera, Siqueiros e Juan Rulfo. Mas, afinal de contas, que podia eu saber do México? Passara na sua capital uma única noite, em 1941, entre um avião e outro, rumo da América Central. Minha segunda viagem ao México não durara mais de uma semana. A terceira, em 1955, prolongara-se durante quase um mês e me levara a diversas regiões do país. Fosse como fosse, eu me sentia de maneira misteriosa identificado com aquela terra e seu povo. Bom, identificado talvez não fosse a palavra exata. O melhor seria dizer que eu não conhecia o México, mas amava-o. Não era a mesma coisa? Claro que era! O amor, como a arte, é uma das mais legítimas formas de conhecimento. A gente e as coisas mexicanas fascinavam em mim o romancista, o pintor irrealizado e possivelmente o remoto índio que dormita agachado em algum abscôndito recanto de meu ser. Passei todo aquele verão e parte do outono que se seguiu absorvido a escrever sobre o México, com um enorme gosto e ímpeto. De certo modo a luz e o calor desse país mágico e trágico tiveram o dom de acelerar o processo de descongelamento da cidade de Santa Fé e das personagens d'O arquipélago. 4 Foi em abril do ano seguinte que pela primeira vez meu coração deu um forte sinal de alarma. No momento em que comecei a fazer, de improviso, o discurso inaugural dum congresso, em Porto Alegre, num auditório repleto de gente, à luz de holofotes e diante de fotógrafos e de cinegrafistas de televisão, meu coração disparou e ficou a bater com assustada fúria, ao mesmo tempo que eu sentia um aperto na garganta, uma opressão no peito, um estonteamento... Fiz um enorme esforço para controlar a voz e os pensamentos, evitando que minha sintaxe seguisse o desordenado ritmo cardíaco. Creio que ninguém percebeu o que se passava comigo. Havia muito meu primo, o dr. Franklin Verissimo, excelente cardiologista, insistira para que eu começasse um sério tratamento cardíaco preventivo - conselho este que não segui. Levou-me ele a seu consultório várias vezes, para exames gerais. Receitou-me medicamentos que não tomei. Recomendou-me um tipo de vida que não levei. Por quê? Talvez porque, seguindo um pensamento mágico mas estúpido, eu achava que nada de grave me poderia acontecer... Entra em cena agora uma personagem por mais dum título importante na minha vida. Havia algum tempo que eu conhecia, de longe, o dr. Eduardo Faraco, de quem Moysés Vellinho mais de uma vez me falara com grande admiração intelectual e humana. Confesso que não me havia ainda detido no exame da personalidade desse médico. Nossos caminhos raramente se cruzavam. A imagem que eu guardava dele no complicado arquivo da memória era a dum homem muito bem-apessoado, de ares um tanto agressivos - garboso gladiador permanentemente no centro da arena, à espera do próximo retiário. Algo em seu rosto - talvez o desenho da boca - dava-lhe uma quase permanente expressão de desdém. Só em 1955 é que, em Washington, tive a oportunidade de conviver com Eduardo Faraco e conhecê-lo melhor. Para resumir numa frase simples um processo complexo, direi que nos tornamos amigos. Rasguei sua "ficha" antiga, substituindo-a por uma nova, que se foi aos poucos enriquecendo de anotações mais acuradas. Lembro-me de que uma vez estávamos discutindo não me lembro exatamente quê, quando em dado momento Faraco fez uma dessas perguntas retóricas que são, por assim dizer, trampolins numa conversação. "Sabes o que são as cores, não?" Interrompi-o: "As cores são doenças da luz". Ele me olhou, franziu a testa, e disse: "Deixa de literatura, índio!". Vencendo a minha tradicional preguiça, dei um salto-mortal que me levou meio às cegas de volta a uma certa página dum texto ginasial de física. É curioso como nesse clínico e professor de medicina a capacidade de raciocinar com fria objetividade científica pode coexistir - nem sempre pacificamente, é verdade - com seu temperamento inflamável de meridional. (Tem nas veias sangue italiano, tanto pelo lado paterno como pelo materno.) Pois foi esse "calabrês do Alegrete", que me chamava de "índio da Cruz Alta", que, em fins daquele 1957, me alertou para os perigos dum distúrbio cardiovascular, repetindo, de modo mais dramático, as recomendações do dr. Franklin. Até havia seis anos passados eu jogara regularmente tênis, mal mas com prazer. Disputava vários sets, sem interrupção, correndo muito, sem que meu coração jamais protestasse. Agora, porém, sempre que subia uma escada ou uma ladeira, ficava ofegante, sentia uma opressão no peito, uma espécie de ardência na garganta... Decidi levar a sério o tratamento sugerido com tanta veemência por dois grandes médicos. Dentro de poucos meses, porém, relaxei-o, passando a me interessar mais pelo coração duma certa personagem do que pelo meu próprio. É que, finalmente, tinha começado a escrever O arquipélago. O dr. Rodrigo Cambará sofrera já dois enfartes e exigia toda a minha atenção e cuidado. Em janeiro de 1958 Mafalda e eu fomos para a praia de Torres, onde nos instalamos numa vivenda que os Dantas, um casal de amigos, nos emprestaram pela metade da temporada de verão. Quando chegamos, chovia torrencialmente. Nossa casa ficou ilhada em meio de charcos e pequenas lagoas. A chuva continuou quase ininterruptamente durante três ou quatro dias. Assim, foi contra um fundo musical feito por um coral de sapos que escrevi as páginas iniciais do último volume da trilogia. Meti-me no corpo do dr. Rodrigo Cambará no momento em que ele sofreu um edema pulmonar agudo. A chuva finalmente parou. Surgiu o sol. Entrei na minha rotina de veranista. Acordava às oito da manhã, às nove estava batendo na máquina de escrever, às onze ia para a praia, fazia a minha caminhada pela beira do mar, até à foz do rio Mampituba, e depois me deitava na areia e ficava conversando com amigos. Após o almoço, entregava-me a uma rápida sesta, da qual despertava estonteado, com um desejo danado de continuar a dormir. Mas reagia, vencia a sonolência, sentava-me junto à máquina de escrever, relia o que havia escrito pela manhã e de súbito, magicamente, entrava na dimensão do romance, e eu já não era mais eu, mas sim, alternadamente, Rodrigo, Floriano, Toríbio, Maria Valéria, Flora, Tio Bicho... Tinha às vezes a impressão de que meu organismo produzia, sem o auxílio de qualquer droga, uma espécie de dexedrina que me excitava, aguçando-me o espírito e fazendo-me trabalhar horas e horas com tão apaixonada intensidade que se me tornava difícil, quase doloroso, parar. Era, pois, com certa tristeza que eu via o sol sumir-se por trás dos montes, pois a qualidade da luz elétrica de que dispúnhamos não me permitia escrever à noite. Fiz um dia, à margem duma das folhas dos originais d'O arquipélago, esta anotação a lápis: 16 de janeiro de 1958. Cinco da tarde. Recebo a visita inesperada de I. J., pessoa que admiro e estimo. Contrariado, paro de escrever mas não consigo sair de dentro do romance. I. conversa animadamente durante uns quarenta minutos. É como se ele estivesse falando aramaico. Não entendo nada do que diz, porque não estou nesta sala nem nesta hora.