PARTE I AS DUAS ARTES Examinou a arma com a delicadeza de quem examina uma peça rara. Sentiu-lhe o peso, correu o dedo pelo cano até a alça de mira, abriu o tambor, fazendo-o girar, fechou-o com um movimento de mão e testou o gatilho; experimentou a empunhadura sem apontar para nada, olhos fechados, apenas tato. A inscrição Detective Special, ao longo do cano, lembrou-lhe velhos filmes policiais. Retirou da caixa e introduziu no tambor, uma de cada vez, lentamente, seis balas. Fechou o tambor, guardou a caixa de balas e a flanela no fundo da gaveta e colocou a arma dentro da pasta. Sobre a mesa, o dinheiro e o envelope. Colocou-os em outra divisão, separados do revólver. Percorreu a sala com os olhos, pegou a pasta, destrancou a porta do escritório e saiu. Na sala contígua despediu-se de Rose, a secretária, e no hall do elevador encontrou Cláudio Lucena. Preferia não ter discutido com ele, mas agora não fazia diferença, já haviam discutido inúmeras vezes sem que a amizade fosse abalada. Antes de o elevador chegar ao térreo, todo resíduo de animosidade se dissipara. Trocaram algumas palavras na calçada e se separaram. Caminhou pela rua São José, na direção do edifício-garagem Menezes Cortes. Não tinha pressa, não tinha dúvidas. Sua vaga cativa ficava no segundo piso e o acesso é feito pelas escadas rolantes da galeria. Estacionara a poucos metros da porta que dá para a escada. A escuridão do estacionamento contrastava com a luminosidade exterior. O movimento de saída ainda era pequeno. Entrou no carro, sentou-se à direção, colocou a pasta no banco ao lado, recostou a cabeça e ficou algum tempo pensando nos últimos acontecimentos. A sensação era de paz. Abriu o porta-luvas e retirou o maço de cigarros, guardado desde que decidira deixar de fumar, pouco mais de dois meses antes. Saboreou o cigarro lentamente; as tragadas fortes, após longo tempo de abstinência, deixaram-no ligeiramente tonto, mas não o suficiente para alterar-lhe a lucidez. Assim que terminou, fechou novamente os vidros, abriu a pasta, retirou o revólver, encostou o cano na têmpora direita e puxou o gatilho. 1 Espinosa atravessou lentamente a rua, olhar no chão, mãos nos bolsos, em direção à praça. O sol ainda brilhava forte na tarde de primavera. Procurou um banco vazio, de frente para o porto, tendo às costas o velho prédio do jornal A Noite. À sombra de um grande fícus, deixou as idéias surgirem anarquicamente. Poucas pessoas considerariam a praça Mauá um lugar adequado à reflexão, exceto ele e os mendigos. No começo era visto com desconfiança mas aos poucos eles foram se acostumando a sua presença. Nunca freqüentou a praça à noite, respeitava a metamorfose produzida pelos freqüentadores do Scandinavia Night Club ou da Boite Florida. Enquanto prestava minuciosa atenção ao movimento dos guindastes no porto, deixou o pensamento emaranhar-se livremente em sua própria trama. Formara, havia tempos, a idéia de que momentos de solidão eram propícios à reflexão. Sentado naquele banco, acabara por concluir que isso não se aplicava a si próprio. A forma mais comum como transcorria sua vida mental era a de um fluxo semi-enlouquecido de imagens acompanhado de diálogos inteiramente fantásticos. Não se julgava capaz de uma reflexão puramente racional, o que, para um policial, era no mínimo embaraçoso. A praça, apesar de pequena e situada num dos lugares mais movimentados do Rio, era o escape ao ambiente físico da delegacia. Terça-feira não era um dia particularmente ruim, especialmente se comparado às noites de sexta e aos fins de semana, quando a delegacia ficava repleta de prostitutas e punguistas da região do porto. Essa era sua clientela: prostitutas, punguistas, bêbados e drogados, anões do submundo portuário. Os grandes delitos cometidos nos escritórios do centro jamais chegavam à 1a dp. Mesmo a prostituição de luxo que acontecia em prédios localizados a poucos metros da delegacia ficava ao abrigo da ação policial. Assassinatos eram raros no centro da cidade. 2 Apesar de ser uma tarde de terça-feira, o auditório da universidade na ilha do Fundão estava com quase todos os lugares ocupados quando o coordenador da mesa anunciou Bia Vasconcelos como a conferencista da tarde. Fazia um ano que se haviam visto pela primeira vez. No ano anterior, ela participara como debatedora e Júlio como conferencista; desde então haviam-se encontrado três vezes, acidentalmente, em dois vernissages e numa semana de arte no parque Lage. Estava vestida com simplicidade mas indiscutível elegância. Os cabelos negros e cheios, cortados na altura da nuca, realçavam o rosto e o pescoço. Aos trinta e quatro anos de idade, corpo e gestos harmonizavam-se como numa bailarina. Terminados os debates, Júlio ofereceu-lhe carona e convidou-a para um chope no centro da cidade. Ao saírem do prédio foram tomados pela luminosidade da tarde de setembro e pelo ronco de um grande jato comercial que decolava do Galeão. No carro, a sensação de privacidade e intimidade fez com que permanecessem em silêncio. Quando a primeira frase foi dita, já estavam na saída do campus universitário. Durante o percurso, houve mais silêncio do que conversa. Encontraram vaga na avenida Chile, perto da catedral, e caminharam até a rua da Carioca. Nas calçadas repletas, pessoas tentavam arrematar um dia mal alinhavado. Na porta do Cinema Íris um cartaz escrito à mão anunciava "Dois filmes e dois shows com garotas selecionadas", enquanto outro, fartamente ilustrado, apresentava o filme Exterminadora de orgasmos. O movimento intenso e o barulho das lojas de discos impediam a conversa. Chegaram ao Bar Luiz faltando cinco minutos para as cinco horas. Escolheram uma mesa para duas pessoas, junto à parede. Na mesa ao lado, um turista estudava atentamente o mapa da cidade; numa outra mais distante, um grupo discutia; atrás de Bia, um mulato alto, camiseta de seda sem mangas, duas pulseiras de prata em cada pulso, corrente no pescoço e muitos anéis, argumentava em voz baixa com uma loura. O interior art déco do Bar Luiz é protegido da rua por um painel de madeira e vidro canelado até a altura de dois metros. A parte de cima do painel é vazada, permitindo a visão dos sobrados fronteiriços com suas fachadas em cantaria e pequenas sacadas com grades de ferro batido. Júlio olhava apenas para Bia. Pela primeira vez estavam frente a frente, a pouco mais de dois palmos de distância. Pediram chope e salsichão, e Bia teve dificuldade para romper o invólucro de plástico que protegia os talheres; Júlio ajudou-a, as mãos se tocaram. Enquanto conversavam, captavam detalhes um do outro; sob a mesa pequena, os joelhos se esbarravam ocasionalmente. A beleza de Bia não se oferecia toda ao primeiro olhar; era acrescida, a cada vez, de um traço ainda não revelado, e Júlio colhia cada revelação como se fosse uma epifania. Na conversa foram cautelosos, ela falou sobre o curso de artes gráficas que fizera na Itália, ele sobre sua dupla atividade como professor da faculdade de arquitetura e profissional liberal. O encontro durou pouco mais de uma hora. Às seis e quinze, Bia disse que precisava ir embora, recusou o oferecimento de Júlio para levá-la. Ao se despedirem, os lábios se tocaram levemente.