Chamemos o nosso homem, o herói da história, de Amargo. Imaginamos um homem e, para ele, um nome. Ou, ao contrário: imaginamos o nome e, para ele, o homem. Embora isso tudo seja secundário, pois o nosso homem, o herói da história, chama-se, na realidade, Amargo. O pai dele se chamava assim. E o avô também. Por conta disso, Amargo foi registrado como Amargo no cartório: essa é, portanto, a realidade, a que - como cabe à realidade - Amargo hoje em dia não atribui muita importância. Nos últimos tempos - num dos anos derradeiros do milênio que se encerra, digamos, no início da primavera de 1999, num final de manhã ensolarado -, a realidade se tornara, para Amargo, um conceito problemático, e, o que era mais grave, um estado problemático. Um estado em que - segundo os sentimentos mais íntimos de Amargo - a realidade era o que mais faltava. Se de algum modo o obrigavam a usar a palavra, Amargo sempre acrescentava: "a assim chamada realidade". Entretanto, isso era apenas uma frágil compensação, que não o satisfazia. Amargo, nos últimos tempos, ficava muito à janela e olhava para a rua. A rua oferecia a visão comum e costumeira do cotidiano costumeiro das ruas de Budapeste. Junto da calçada imunda e manchada de lixo, óleo e sujeira de cachorros, havia carros, nos recessos de um metro entre as paredes leprosas, descascadas, das casas, os pedestres comuns e costumeiros perseguiam seus afazeres, e a expressão contrariada dos rostos refletia os pensamentos sombrios. Alguns deles, talvez na pressa, para se desviar da fileira de gansos rastejantes, desciam da calçada, e nisso o coro das buzinas rancorosas dos automóveis derrubava toda esperança irracional depositada no abandono da fila. Nos bancos da praça em frente que ainda conservavam o assento, sentavam-se à toa os desabrigados da redondeza, com os embrulhos, as sacolas, as garrafas plásticas. Acima de uma barba desgrenhada vibrava um gorro vermelho tricotado, e a borla pendente balançava alegre junto da pelugem repugnante. Um homem com o barrete puído de oficial de um exército inexistente vestia um sobretudo pesado de inverno, sem botões, desbotado, preso na cintura por um elegante cinto de seda, de flores coloridas, que lembrava o adereço de um robe de mulher. Numa perna feminina cheia de nódulos que emergia de uma calça jeans, um sapato de noite prateado com a sola gasta; mais adiante, no gramado estreito, ralo, jazia de joelhos encolhidos, numa imobilidade catatônica, como uma bola de trapos, uma figura indistinta, derrubada pelo álcool ou pela droga, quem sabe pelos dois. Enquanto observava os desabrigados, Amargo de súbito percebeu que uma vez mais observava os desabrigados. Sem dúvida, ultimamente Amargo dedicava muita atenção aos desabrigados. Era capaz de dissipar - na verdade, de seu tempo sem valor - até meias horas à janela, fascinado como um voyeur, que não consegue se desligar da visão obscena estendida em sua frente. Além disso, a posição de espreita sensual era acompanhada em Amargo de uma culpa, uma aversão enojada que por fim resultava num medo da existência, numa angústia nauseante. No instante em que a angústia ganhava contornos inconfundíveis, Amargo, como se tivesse alcançado o objetivo mais obscuro de seu ato obscuro, dava as costas à janela, satisfeito, e se dirigia à mesa, onde se espalhavam diversos papéis datilografados, revirados e dispersos, como pássaros mortos. O próprio Amargo sabia que, na ligação imperiosa que, ultimamente, a despeito de sua consciência e discordância, estabelecera com os desabrigados, havia alguma coisa de preocupante. Na verdade, sofria como se fosse de uma doença. Deveria decidir deixar de se aproximar da janela. Ou somente se aproximaria dela pela necessidade de arejar o quarto ou por uma razão assim prática. Porém, depois, de súbito se surpreendia de novo à janela a observar os desabrigados. Amargo desconfiava que por trás da estranha obsessão se escondia um significado apreensível. Ou melhor, sentia que, se conseguisse decifrar o significado, compreenderia melhor sua própria vida, que, ultimamente, não compreendia. Sentia que da continuidade palpável um dia conhecida como individualidade o separavam abismos. Para Amargo, a pergunta hamletiana não soava como ser ou não ser, mas como sou ou não sou. Amargo folheou distraído um dos escritos sobre a mesa. Tratava-se de uma pilha espessa de papéis, o manuscrito de uma peça de teatro. Na folha de rosto, o título, Liquidação, e o gênero, "Comédia em três atos". Embaixo, "Passada em Budapeste, em 1990". Pegou a folha de papel entre os dedos para seguir folheando, mas acabou por se entregar ao prazer discutível de ler os detalhes do cenário: (A sala sombria do editor numa editora sombria. Paredes gastas, estantes de livros decrépitas, entre os livros expostos faltas gritantes, abandono; embora não haja nenhum sinal de mudança, em tudo impera a provisoriedade desoladora das mudanças. Na sala, quatro escrivaninhas, quatro lugares de trabalho. Sobre as mesas, máquinas de escrever, manuscritos, dossiês. Janelas dando para um quintal. Uma porta no fundo, para o corredor. Em algum lugar, ao longe, o brilho do sol de um fim de manhã, na sala sombria da editora, iluminação sombria artificial. Na sala, Kürti, a esposa, Sára, e o dr. Obláth. Constrangidos, expectantes, sentam-se ao redor de uma mesa que mais tarde se revela pertencer a Amargo.)