1. MORRO PORQUE NÃO MORRO Limparam seu rosto, já sereno e claro, e descobriram-lhe o peito dizimado por quarenta anos de asma e um de fome no árido Sudeste boliviano. Depois o estenderam no leito do hospital de Nuestra Senora de Malta, alçando sua cabeça para que todos pudessem contemplar a presa caída. Ao recostá-lo na lápide de concreto, soltaram as cordas que serviram para atar suas mãos durante a viagem de helicóptero desde La Higuera, e pediram à enfermeira que o lavasse, penteasse e inclusive escanhoasse parte da barba rala que tinha. Quando os jornalistas e populares curiosos começaram a desfilar, a metamorfose já era completa: o homem abatido, iracundo e esfarrapado até as vésperas da morte se convertera no Cristo de Vallegrande, refletindo nos límpidos olhos abertos a tranqüilidade do sacrifício consentido. O exército boliviano cometeu o único erro da campanha depois de consumada a captura de seu máximo troféu de guerra. Transformou o revolucionário resignado e encurralado, o indigente da quebrada del Yuro, vencido por todos os preceitos da lei, envolto em trapos, com o rosto sombreado pela fúria e a derrota, na imagem de Cristo da vida que sucede à morte. Seus verdugos deram feição, corpo e alma ao mito que percorreria o mundo. Quem examinar cuidadosamente essas fotos há de querer entender como o Guevara da escolinha de La Higuera se transfigurou no ídolo beatificado de Vallegrande, captado para a posteridade pela lente magistral de Freddy Alborta. A explicação vem do general Gary Prado Salmón, o mais lúcido e profissional dos caçadores do Che: Lavaram-no, vestiram-no, acomodaram-no, sob a supervisão de um médico forense. Era preciso mostrar a identidade, mostrar ao mundo que o Che fora derrotado, que nós o tínhamos vencido. Não seria o caso de mostrá-lo como sempre se mostravam guerrilheiros, por terra, cadáveres, mas com expressões que a mim chocavam muitíssimo, uns rostos como que retorcidos. Essa foi uma das razões que me levou a colocar o lenço na mandíbula do Che: para que não se deformasse. Instintivamente, todos só queriam mostrar que aquele era o Che, poder dizer: "Aqui está ele, vencemos". Esse era o sentimento que existia nas forças armadas da Bolívia: que tínhamos vencido a guerra; e que não restassem dúvidas quanto à sua identidade, pois se o apresentássemos como estava, sujo, andrajoso, despenteado e tudo o mais, a dúvida teria permanecido. O que seus perseguidores evidentemente não previram foi que a mesma lógica haveria de se impor tanto aos que arquejavam de medo como aos que portariam durante anos o seu luto. O impacto emblemático de Ernesto Guevara é inseparável da noção do sacrifício: um homem que tinha tudo - glória, poder, família e conforto - e tudo entrega em troca de uma idéia, e o faz sem ira nem dúvidas. A disposição para a morte não é confirmada pelos discursos e mensagens do próprio Che, ou pelas orações fúnebres de Fidel Castro, nem pela exaltação póstuma e imprópria do martírio, mas por uma visão: a de Guevara morto, vendo seus algozes e perdoando-os, porque não sabiam o que faziam, e ao mundo, asseverando que não há sofrimento quando se morre por idéias. O outro Guevara, cuja fúria não cabia na expressão ou no gesto, dificilmente teria se convertido no emblema do heroísmo e da abnegação. O Che aniquilado, com os cabelos sujos, a roupa rasgada e os pés envoltos em abarcas bolivianas, irreconhecível por seus amigos e adversários, jamais teria despertado a simpatia e admiração que a vítima de Vallegrande despertou. As três fotos existentes de Guevara preso só circularam vinte anos após sua execução; nem Felix Rodríguez, o agente da CIA que bateu uma delas, nem o general Arnaldo Saucedo Parada, que tirou as outras, as divulgaram. O motivo mais uma vez era perverso. Embora se tenha admitido, poucos dias após a emboscada do Yuro, que o Che não morrera em combate, era preferível dissimular as provas evidenciando sua execução a sangue-frio, os instantâneos do Che vivo e prisioneiro. As imagens só foram levadas à telinha nos anos 90, pelas mesmas razões. O Che morto convencia e não acusava ninguém, mas engendrava um mito inesgotável; o Che vivo, na melhor das hipóteses, despertava piedade, porém suscitava ceticismo quanto à sua identidade, ou provava o assassinato inconfessável, embora conhecido de todos. Prevaleceu a imagem do Cristo; desvaneceu-se a outra, sombria e destroçada. Ernesto Guevara conquistou seu direito de cidadania no imaginário social de toda uma geração por muitos motivos mas antes de mais nada pelo encontro místico de um homem com a própria época. Nos anos 60, repletos de cólera e doçura, outra pessoa teria deixado um leve rastro; o mesmo Che, em outra época menos turbulenta, idealista e paradigmática, teria passado em branco. A permanência de Guevara enquanto figura digna de interesse, investigação e leitura não deriva diretamente da geração à qual pertence. Não brota da obra nem sequer do ideário guevarista; vem da identificação quase perfeita de um lapso da história com um indivíduo. Outra vida jamais teria captado o espírito da época; outro momento histórico nunca se reconheceria em uma vida como a dele. A convergência existencial se deu por vários caminhos. Um fio condutor da vida de Ernesto Guevara foi a exaltação da vontade, lidando com o voluntarismo, ou, diriam alguns, a onipotência. Na enigmática e depurada carta em que se despede dos pais, ele próprio se refere a ela: "Uma vontade que aperfeiçoei com deleite de artista me sustentará as pernas frouxas e os pulmões cansados". Desde o rúgbi de sua mocidade em Córdoba até o calvário nas selvas da Bolívia, partiu sempre de um critério: bastava desejar alguma coisa para que ela acontecesse. Não existia limite irremovível nem obstáculo insuperável para a vontade: a sua e a dos distintos atores sociais e individuais que encontraria pelo caminho. Seus amores e suas viagens, a visão política e a conduta militar e econômica se impregnaram de um voluntarismo a toda prova, que autorizaria façanhas extraordinárias, arrebataria vitórias maravilhosas e o conduziria a repetidas e por fim fatais derrotas. As origens desse voluntarismo quase narcisista são múltiplas: seu próprio empenho, a luta perene do Che contra a asma e um onipresente olhar materno, de adoração e culpa inesgotáveis. Se alguém chegou a acreditar que bastava querer o mundo para tê-lo num átimo, esse alguém foi Che Guevara. Se algo caracterizou seus arautos nos anos 60, esse algo foi a bandeira: "We want the world, and we want it now". Outro princípio que governou a vida do Che - a eterna recusa em conviver com a ambivalência, a qual o perseguiria como uma sombra desde a asma infantil até Nancahuazú - também se entrelaçaria com as características comportamentais de uma geração. Os anos 60 significaram, em grande medida, a negativa a coexistir com as contradições da vida; assistiram a uma perpétua fuga para a frente da primeira geração do pós-guerra, que considerava intolerável a coexistência com sentimentos, desejos e objetivos políticos contraditórios. Quem melhor que o Che para encarnar a incompatibilidade individual e generacional com a ambivalência, para simbolizar a incapacidade de conviver com pulsões dadas de antemão? As idéias, a vida, a obra, até o exemplo do Che pertencem a uma etapa da história moderna, motivo por que será difícil recuperarem no futuro sua atualidade. As principais teses teóricas e políticas vinculadas ao Che - a luta armada e o foco guerrilheiro, a criação do homem novo e o primado dos incentivos morais, o internacionalismo combatente e solidário - virtualmente deixaram de existir. A Revolução Cubana - seu maior êxito, seu verdadeiro triunfo - agoniza ou sobrevive graças ao abandono de boa parte da herança ideológica de Guevara. Porém, a nostalgia persiste: o subcomandante Marcos, dirigente aguerrido e acossado das hostes zapatistas nos fundos vales de Chiapas, costuma invocar, gráfica ou explicitamente, as imagens e analogias do Che, sobretudo aquelas que evocam traições ou derrotas. Respondeu à ofensiva das forças armadas mexicanas em 9 de fevereiro de 1995 com dois ícones: Emiliano Zapata em Chinameca e o Che em Vado del Yeso e na quebrada del Yuro. Em compensação, o intervalo em que o Che se movimentou e alcançou a glória ainda não se encerrou. Continua a provocar saudade como a última convocação das utopias modernas, o último encontro com as grandes e generosas idéias de nosso tempo - a igualdade, a solidariedade, a libertação individual e coletiva -, com as mulheres e homens que as encarnaram. A importância de Che Guevara para o mundo e para a vida de hoje se verifica por osmose ou por controle remoto. Reside na atualidade dos valores de sua era, jaz na relevância das esperanças e sonhos dos anos 60 para um fim de século órfão de utopias, carente de projeto coletivo e dilacerado pelos ódios e tensões próprias de uma homogeneidade ideológica sem jaça. Seu instante de fama sobrevive ao Che, e ele, por seu turno, confere luz e sentido a esse momento cuja memória empalidece mas ainda perdura. Em sua infância e juventude, em sua maturidade e morte, jazem as chaves para decifrar o encontro do homem com seu mundo. Comecemos. [...]