1. CECÉU Antônio Frederico de Castro Alves nasceu em 14 de março de 1847, na fazenda Cabaceiras, a sete léguas de Nossa Senhora de Conceição de Curralinho (hoje Castro Alves), na Bahia, filho do médico Antônio José Alves e de sua mulher, Clélia Brasília da Silva Castro. O avô paterno, que também se chamava Antônio José, era um comerciante minhoto solteiro. Da avó, igualmente solteira, não se guardou sequer o nome. O avô materno, o coronel José Antônio da Silva Castro, era um sertanejo de antepassados paulistas, grande senhor de terras - de seu inventário constam dezesseis fazendas - e famoso por sua valentia e participação em quase todas as insurreições militares antes e depois da Independência, como revoltoso ou como repressor. No assentamento de batismo de Clélia não consta o nome de sua mãe, mas apenas a anotação de que era filha natural do então major Silva Castro. A mãe seria, porém, Ana Viegas, uma cigana espanhola que faleceu quando Clélia era ainda pequenina. Havia, contudo, quem dissesse, e há ainda quem diga, que Clélia devia a sua cor morena a sangue negro ou mouro. Os pais de Castro Alves eram, portanto, filhos ilegítimos, gerados fora de casamento formal. A situação, embora pudesse dar motivo a comentários à boca pequena, não provocava maior estranheza na região de Curralinho, onde ainda prevaleciam os modos de vida dos pioneiros, os rapazes raptavam as moças, os padres tinham amásias e as disputas de coração, de honra, de dinheiro e de poder se resolviam freqüentemente a punhal e a bala. A paisagem da fazenda Cabaceiras, com a montanha por linha do horizonte, era rude, de savana, e dela não destoava a casa, térrea, atijolada, de paredes de adobe, pintada de branco, com quatro águas cobertas por telha-vã, três lados protegidos por alpendres, oito janelas de frente, quatro de fundo e seis de cada lado, todas, como era de regra no sertão, de madeira inteiriça, sem persianas nem postigos envidraçados. A planta era um quadrado, dividido ao meio por um longo corredor que levava da porta de entrada até a sala de jantar, no fundo. De um lado, havia a sala de receber, a capela e um quarto; do outro, uma segunda sala, outro quarto, uma alcova, a despensa e a cozinha. O banheiro e a latrina ficavam do lado de fora. E próximas, as habitações dos escravos. O interior da casa mostrava-se simples, apenas com os móveis essenciais: os sofás e as cadeiras de palhinha, a mesa de jantar, as arcas e as camas, se as havia em mais de um quarto, em vez de apenas ganchos para as redes. O único recinto aparatoso seria a capela, com seu altar abarrocado e os seus santos. Nessa casa vieram ao mundo, além do poeta, os seus três irmãos, José Antônio, João e Guilherme, o segundo falecido alguns dias após o nascimento. A primeira irmã, Elisa, só veria a luz na vizinha São Félix, defronte a Cachoeira, do outro lado do rio Paraguaçu, para onde a família se mudou em 1852, depois de ligeira passagem por Muritiba. Dois anos mais tarde, estavam na capital da província, onde os meninos ganhariam mais duas irmãs, Adelaide e Amélia. A família passou algum tempo no centro da cidade, em duas diferentes casas. A primeira, à rua do Rosário de João Pereira, número 1, estava marcada pela tragédia. Nela, um professor, João Estanislau da Silva Lisboa, apaixonado por sua jovem aluna, Júlia Feital, em desespero por já não poder alcançá-la, matara-a. Diz a lenda que, romanticamente, com uma bala de ouro. A segunda ficava no número 47 da rua do Passo, próxima ao largo do Pelourinho. A família vivia no andar de cima do sobrado. Nos quartos de baixo, o dr. Alves atendia escravos, nada recebendo - declara num anúncio publicado no Jornal da Bahia em 12 de abril de 1855 - dos senhores daqueles que não saíssem curados. E dispunha também de cômodos necessários para receber e tratar outros doentes. Os Alves foram depois, em 1858, por exigências da má saúde de d. Clélia, para um dos arrabaldes da cidade, Brotas, com suas chácaras, granjas, sítios, vacarias e terrenos baldios. É possível também que já então, ao procurar uma chácara no subúrbio, o dr. Alves trabalhasse a idéia, que se tornaria uma obsessão, de criar um hospital modelar, um hospital que fazia falta a Salvador. Como já sucedera na rua do Passo, também em Brotas, na quinta ou roça da Boa Vista, como se chamava a nova morada, reservou quartos para receber doentes: a diária era de mil a 1500 réis para os escravos; de 3 mil a 5 mil-réis para as pessoas livres. A quinta exigia certo número de servidores escravos, o que era compatível com o progresso profissional do dr. Alves, já então com boa clínica, lecionando na faculdade de medicina e às vésperas de ser feito cavaleiro da Ordem da Rosa. Um pouco mais tarde ele receberia a do Cruzeiro. Esta fora criada em 1o. de dezembro de 1822, logo após a Independência, e aquela, em 17 de outubro de 1829, para celebrar o casamento de d. Pedro I com d. Leopoldina. Não eram condecorações concedidas com facilidade, e ainda menos fora do círculo da corte. Que um médico de província fosse agraciado com as duas indica o renome e prestígio que conquistara o dr. Alves, principalmente como médico humanitário, durante um forte surto de cólera na Bahia. Os Alves se tinham mudado para os arredores da cidade, mas para uma bela propriedade, que existe até hoje. A chácara, cercada por um muro alto, tem um amplo portão de ferro gradeado na entrada. Bem em frente ao portão, no fundo, fica a sede da quinta: um casarão tão grande que viria a ser, a partir de 1874, o hospital de alienados, tendo por nome, primeiro, Asilo de São João de Deus e, bem mais tarde, Hospital Juliano Moreira. Com dois andares, paredes grossas e amplas portas e janelas, mostra num dos lados uma grande torre, com mais dois andares, cada qual com duas janelas por face. Em cima dessa torre, vê-se um campanário com um sino de bronze. No vasto terreno, cheio de árvores, havia uma fonte, com sua carranca e redoma de azulejos, e, separada do prédio principal por uma grande mangueira, a senzala. O recheio da quinta era todo contrário àquele da fazenda Cabaceiras. Os sofás de palhinha deviam harmonizar-se com o mobiliário afrancesado que se punha de moda nas residências aristocráticas e burguesas. Nas paredes, havia quadros, pois o dr. Alves, homem culto e de sensibilidade artística, se tornaria dono de uma das melhores coleções de pintura de Salvador, ainda que composta principalmente de cópias oitocentistas de quadros flamengos e holandeses. Depois de formado em medicina, passara, a expensas do futuro sogro, cerca de três anos na Europa, entre 1841 e 1844. Fora especializar-se em Paris, mas viajara extensamente pela França, Bélgica, Holanda e Alemanha, a ver toda a arquitetura, a pintura e a escultura que podia. O dr. Alves gostava de desenhar, e manteve sempre vivas suas inquietações intelectuais. Dono de uma biblioteca considerada excelente, foi o principal responsável pela criação da Sociedade de Belas Artes e figurou entre os fundadores do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e do Grêmio Literário. Era reconhecido, portanto, pela elite intelectual da província como um dos seus, pois seria nessas entidades que ajudou a conceber que se desenvolveria grande parte da vida cultural de Salvador. Nelas reuniam-se os homens de saber e de bom gosto, para comentar suas leituras, revelar suas descobertas, trocar experiências e ser admirados pelo resto da cidade. No terreno que circundava o casarão da Boa Vista, sob as grandes árvores - cajueiros, mangueiras, jaqueiras, cajazeiras -, Antônio e seus irmãos continuaram a vida de liberdade de que gozavam em Cabaceiras e São Félix. Brincavam de cabra-cega, de esconde-esconde e de chicote-queimado, pulavam carniça, jogavam bolinhas de gude, tascavam piões e, nos amplos espaços abertos, empinavam papagaios de papel de seda. Não seria de estranhar-se, pois não era incomum naquela época, que tivessem meninos escravos como companheiros de folguedos, os moleques, na maioria das vezes levando a culpa e sofrendo os castigos pelas traquinagens do grupo. Cada qual tinha seus bichos de estimação: cachorro, gato, preá, passarinhos em gaiolas, que trocavam trinados com os que faziam ninhos nas árvores - sabiás, gaturamos, sanhaços, bem-te-vis, corrupiões, tico-ticos, galos-de-campina -, os quais os garotos tentavam capturar em arapucas e perseguiam com atiradeiras. Antônio - Cecéu, para os de casa - teve provavelmente, como os outros meninos das famílias de posses de seu tempo, o seu carneiro de sela. Foi então que aprendeu a andar a cavalo. E havia na quinta - como recordou mais tarde sua irmã Adelaide - quem lhe repetisse as histórias que, ainda no sertão, sua ama-de-leite Leopoldina, escrava de seu pai, tantas vezes lhe contara, e lhe narrasse outras, sobre a vida em cativeiro. Era uma velhinha de oitenta anos, sinhá Janinha, que morava numa casinhola dentro dos muros da chácara. Esses relatos somaram-se às cenas a que Cecéu assistiu, tão comuns no dia-a-dia da época, de humilhação e castigo de escravos, para despertar em sua alma de menino sensível piedade e revolta. E experimentou, com os irmãos - quem isto lembra é ainda Adelaide -, uma emoção muito forte, quando viu, na quinta da Boa Vista, os troncos de supliciar escravos - os de pés, os de pescoço, os de mãos e os de pés e mãos -, que lá se encontravam, com outros instrumentos de tortura, quando o dr. Alves, em 1856, adquiriu o imóvel. Talvez sinhá Janinha tenha revelado aos meninos o passado da quinta. A propriedade pertencera, antes da Independência, a um português do Minho, Manoel José Machado, grande contrabandista e mercador de escravos, senhor impiedoso, estuprador de negrinhas e dono de um considerável número de filhos mulatos. O "Machado da Boa Vista", como era conhecido, tinha, como tantos outros traficantes negreiros, um segundo perfil, que sinhá Janinha provavelmente ignorava: o de comerciante bem estabelecido e cidadão de prestígio. Colaborara, por exemplo, com grandes dinheiros para que se construíssem a praça do Comércio e o Teatro São João, do qual foi diretor até a morte. E, a fim de pagar seus pecados, deixou a maior parte de seus bens para a Santa Casa de Misericórdia - onde foi depois enterrado com o hábito de Cristo, que em 1808 lhe conferira o príncipe regente d. João -, para a Ordem Terceira de São Francisco e a de São Domingos, o convento das Mercês, o recolhimento dos Perdões e o de São Raimundo. A torre da Boa Vista fora construída para servir de mirante: como dela se avistava o mar, ali se postava permanentemente um escravo, para, com o bater do sino, avisar da chegada, fosse de dia ou de noite, dos navios negreiros. Quando Cecéu se mudou para a quinta, os tumbeiros não entravam mais na barra, mas não faltava quem dissesse que a alma penada de seu Machado continuava a descer, apressada, a escadaria da torre.