AS ÚLTIMAS PALAVRAS SOBRE A TERRA Quando escreverem meu obituário. Amanhã. Ou no dia seguinte. Vai estar escrito: LEO GURSKY DEIXOU UM APARTAMENTO CHEIO DE MERDA. Fico surpreso de não ter sido enterrado vivo. O lugar não é grande. Tenho de me esforçar para manter uma passagem livre entre a cama e o banheiro, o banheiro e a mesa da cozinha, a mesa da cozinha e a porta da frente. Se quero ir do banheiro para a porta da frente, impossível, tenho de passar pela mesa da cozinha. Gosto de imaginar a cama como a base principal, o banheiro como a primeira, a mesa da cozinha como a segunda, a porta da frente como a terceira: se a campainha toca quando estou deitado, sou obrigado a passar pelo banheiro e pela mesa da cozinha para chegar à porta. Quando acontece de ser Bruno, eu o deixo entrar sem dizer uma palavra e, em seguida, corro de volta para a cama, os brados da multidão invisível ecoando nos ouvidos. Muitas vezes me pergunto quem vai ser a última pessoa a me ver com vida. Se tivesse de apostar, eu apostaria no entregador de comida chinesa. Eu a peço em quatro de cada sete noites. Sempre que ele vem, faço da busca pela minha carteira uma grande cena. Ele fica na porta com o saco engordurado enquanto eu imagino se vai ser essa a noite em que vou acabar com o rolinho primavera, me enfiar na cama e ter um ataque do coração durante o sono. Faço de tudo para ser visto. Às vezes, quando estou na rua, compro um suco mesmo sem estar com sede. Se a loja estiver cheia, sou capaz de derramar meus trocados no chão, espalhando os centavos por todo lado. E me ponho de joelhos. Ajoelhar é para mim um grande esforço, e me erguer, um esforço ainda maior. E no entanto. Talvez eu pareça um idiota. Entro no Pé de Atleta e digo: Que tipos de tênis vocês têm? O balconista identifica em mim o pobre schmuck que eu sou e me leva até o par de Rockports que eles têm em estoque, alguma coisa branquíssima. Não, eu digo, esses eu já tenho, e em seguida vou até os Reeboks e escolho um que nem parece um sapato, uma botinha à prova d'água quem sabe, e peço uma número 9. O rapaz olha de novo para mim, com mais cuidado. Ele me examina para valer. Número 9, repito, enquanto agarro o calçado trançado. Ele meneia a cabeça e vai buscá-lo no fundo, e, quando volta, eu já estou desenrolando as meias. Dobro a perna da calça e encaro aquela coisa decrépita, meus pés, e passa um minuto embaraçoso até ficar evidente a minha expectativa de que ele calce as botinhas neles. Eu nunca compro de verdade. Tudo o que quero é não morrer num dia em que passei despercebido. Alguns meses atrás, vi um anúncio no jornal. Dizia: PRECISA-SE: MODELO NU PARA AULAS DE DESENHO. $15/HORA. Parecia bom demais para ser verdade. Ser tão olhado. Por tanta gente. Liguei para o número. Uma mulher me disse para aparecer na terça seguinte. Tentei me descrever, mas ela não estava interessada. Qualquer coisa serve, disse. Os dias custaram a passar. Contei ao Bruno, mas ele entendeu mal e pensou que eu tinha me inscrito numa aula de desenho para ver garotas nuas. Ele não queria ser corrigido. Elas mostram os peitos?, perguntou. Dei de ombros. E a parte de baixo? Depois que a sra. Freid do quarto andar morreu, e passaram três dias até que alguém a encontrasse, Bruno e eu criamos o hábito de nos controlar um ao outro. Inventávamos pequenas desculpas - Meu papel higiênico acabou, eu dizia, quando Bruno abria a porta. Passava um dia. Havia uma batida na minha porta. Perdi o guia de programação da TV, ele explicava, e eu procurava o meu, embora soubesse que o dele estava no lugar de sempre, no sofá. Uma vez ele desceu num domingo à tarde. Preciso de uma xícara de farinha, disse. Fui grosseiro, mas não resisti. Você não sabe cozinhar. Houve um instante de silêncio. Bruno me olhou nos olhos. Você não sabe de nada, disse, estou assando um bolo. Quando cheguei na América, eu não conhecia quase ninguém, a não ser um primo de segundo grau, que era chaveiro, e, assim, trabalhei para ele. Se ele fosse sapateiro, eu teria me tornado sapateiro; se ele varresse merda, eu também teria varrido. Porém. Ele era chaveiro. Ensinou-me o ofício, e foi isso que eu me tornei. Possuíamos um pequeno negócio, e num determinado ano ele pegou TB, tiveram de extrair seu fígado, e ele fez uma febre de quarenta e morreu, de modo que assumi tudo sozinho. Mandava metade do lucro para a esposa dele, mesmo depois que ela se casou com um médico e se mudou para Bay Side. Fiquei com o negócio durante mais de cinqüenta anos. Não era o que eu teria imaginado para mim. E no entanto. A verdade é que acabei gostando. Eu ajudava alguns que haviam sido deixados do lado de fora, e outros eu ajudava a manter do lado de fora o que não se devia deixar entrar, para que pudessem dormir sem pesadelos. E um dia eu estava olhando pela janela. Talvez contemplasse o céu. Ponha um imbecil diante da janela, e você terá um Spinoza. A tarde passou, a escuridão me envolveu. Procurei a corrente da lâmpada, e de súbito parecia que um elefante havia pisado no meu coração. Caí de joelhos. Pensei: não vivi para sempre. Passou um minuto. Um minuto mais. Mais um. Grudei no chão e me arrastei até o telefone. Vinte e cinco por cento do meu músculo cardíaco morreu. A recuperação foi demorada, e eu nunca voltei a trabalhar. Passou um ano. Eu tinha consciência da passagem do tempo pelo próprio tempo em si. Eu olhava pela janela. Vi o outono virar inverno. O inverno virar primavera. Em alguns dias, Bruno descia para ficar comigo. Nós nos conhecíamos desde meninos; fomos colegas de escola. Ele era um dos meus amigos mais próximos, com óculos de aro grosso, cabelo avermelhado que ele odiava e uma voz entrecortada quando se emocionava. Eu não sabia que ele ainda estava vivo quando um dia descia a East Broadway e ouvi sua voz. Eu me virei. Ele estava de costas para mim, diante de uma mercearia, e perguntava o preço de umas frutas. Pensei: Você está ouvindo coisas, você é um sonhador, qual é a chance... seu amigo de infância? Fiquei paralisado na calçada. Ele está em terra firme, disse para mim mesmo. Aqui está você nos Estados Unidos da América, ali está o McDonald's, acorde. Esperei só para ter certeza. Não teria reconhecido seu rosto. Porém. O modo de andar era inconfundível. Ele ia passar por mim, estendi o braço. Não tinha consciência do que fazia, talvez estivesse vendo coisas, agarrei a manga da camisa dele. Bruno, disse. Ele se deteve e se virou. Primeiro pareceu assustado e, depois, confuso. Bruno. Ele olhou para mim, seus olhos começaram a se encher de lágrimas. Agarrei sua outra mão, eu agora tinha uma das mangas e uma das mãos. Bruno. Ele começou a tremer. Encostou a mão na minha bochecha. Estávamos no meio da calçada, pessoas passavam apressadas, era um dia quente de junho. O cabelo dele era fino e branco. Ele deixou as frutas caírem. Bruno. Alguns anos depois a mulher dele morreu. Ficar no apartamento sem ela era demais, tudo remetia a ela, e, assim, quando um apartamento vagou no andar acima do meu, ele se mudou. É comum ficarmos sentados à mesa da minha cozinha. Pode passar uma tarde inteira sem que troquemos uma palavra. Quando conversamos, nunca falamos em iídiche. As palavras da infância se tornaram estranhas para nós - não podíamos usá-las da mesma forma e, portanto, escolhemos não usá-las nunca. A vida exigia uma língua nova. Bruno, meu velho companheiro. Não o descrevi o suficiente. Basta dizer que ele não pode ser descrito? Não. É melhor tentar e não conseguir do que nem tentar. O contorno suave do cabelo branco envolvia seu crânio com delicadeza como um dente-de-leão meio aberto. Muitas vezes, Bruno, tive vontade de soprar sua cabeça e fazer um pedido. Somente um resto de decoro me impede de fazê-lo. Ou quem sabe eu deveria começar pela sua estatura, que é muito pequena. Num dia bom você mal chega à altura do meu peito. Ou deveria começar pelos óculos que você pescou numa caixa e afirmou serem seus, umas coisas redondas enormes que aumentam os olhos de modo que sua reação permanente parece ser de quatro e meio na escala Richter? São óculos de mulher, Bruno! Nunca tive coragem de lhe dizer. Tentei muitas vezes. E mais uma coisa. Quando éramos meninos, você era o melhor escritor. Na época eu me orgulhava muito de dizê-lo a você. Porém. Eu sabia. Acredite em mim se o digo, eu sabia então como sei hoje. Dói pensar que eu nunca lhe disse, e também dói pensar em tudo o que você poderia ter sido. Perdoe-me, Bruno. Meu amigo mais antigo. O melhor. Não fui justo com você. Você me fez tão boa companhia no final da minha vida. Você, especialmente você, que teria encontrado as palavras para tudo aquilo. Uma vez, há muito tempo, encontrei Bruno deitado no meio da sala junto de um vidro de comprimidos vazio. Ele não agüentava mais. Tudo o que queria era dormir para sempre. Preso em seu peito havia um bilhete com três palavras: ADEUS, MEUS AMORES. Eu gritei. NÃO, BRUNO, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO! Bati no seu rosto. Por fim, os olhos dele se abriram, trêmulos. O olhar parecia vazio e amortecido. ACORDE, SEU DUMKOP!, gritei. OUÇA-ME AGORA: VOCÊ PRECISA ACORDAR! Os olhos dele se fecharam de novo. Disquei para o 911. Enchi uma tigela com água fria e a joguei nele. Encostei o ouvido no seu coração. Distante, um sussurro vago. A ambulância veio. No hospital, bombearam seu estômago. Por que você tomou todas aquelas pílulas?, o médico perguntou. Bruno, nauseado, exausto, ergueu os olhos friamente. POR QUE VOCÊ ACHA QUE EU TOMEI TODAS AQUELAS PÍLULAS?, guinchou. A sala de recuperação caiu no silêncio; todos olharam. Bruno gemeu e se virou para a parede. Naquela noite eu o pus para dormir. Bruno, eu disse. Sinto muito, ele disse. Tão egoísta. Suspirei e me voltei para sair. Fique comigo!, ele gritou. Depois, nunca mais falamos daquilo. Como nunca falamos da nossa infância, dos sonhos que partilhamos e perdemos, de tudo o que aconteceu e do que não aconteceu. Uma vez, estávamos sentados em silêncio. De repente, um de nós começou a rir. Foi contagiante. Não havia razão para o riso, mas começamos com uma risadinha e no instante seguinte nos balançávamos na cadeira, uivando, uivando, de tanto rir, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Uma mancha úmida vicejou na minha virilha e nos fez rir ainda mais, eu esmurrava a mesa, com falta de ar, e pensei: Talvez eu morra assim, num surto de riso, o que seria melhor, rir e chorar, rir e cantar, rir para esquecer que estou só, que minha vida está no fim, que a Morte espera por mim do outro lado da porta. Quando eu era menino, gostava de escrever. Era a única coisa que eu queria fazer na vida. Inventava pessoas imaginárias e enchia cadernos com suas histórias. Escrevi sobre um menino que cresceu e ficou tão peludo que as pessoas o caçavam interessadas em seu pêlo. Ele teve de se esconder nas árvores, e se apaixonou por um pássaro que pensava que ele era um gorila de cento e cinqüenta quilos. Escrevi sobre irmãos siameses, um dos quais estava enamorado de mim. Eu achava que as cenas de sexo eram inteiramente originais. E no entanto. Quando fiquei mais velho, decidi que desejava ser um escritor de verdade. Tentei escrever sobre coisas reais. Pretendia descrever o mundo, porque viver num mundo não descrito era muito solitário. Escrevi três livros antes dos vinte e um anos, ninguém sabe o que aconteceu com eles. O primeiro era sobre Slonim, a cidade onde eu vivia, que às vezes era Polônia, outras vezes Rússia. Desenhei o mapa para a folha de rosto, assinalei as casas e as lojas, aqui ficava Kipnis, o açougueiro, e aqui Grodzenski, o alfaiate, e aqui morava Fishl Shapiro, que ou era um grande tzaddik ou um idiota, ninguém conseguia decidir, e aqui a praça e o descampado onde brincávamos, e aqui o rio se alargava e aqui se estreitava, e aqui começava a floresta, e aqui ficava a árvore em que Beyla Asch se enforcou, e aqui e aqui. E no entanto. Quando o mostrei à única pessoa em Slonim cuja opinião importava, ela só deu de ombros e disse que achava melhor quando eu inventava as coisas. Assim, escrevi um segundo livro, e inventei tudo. Eu o enchi de homens que criavam asas e de árvores com raízes que cresciam para o céu, de gente que esquecia do próprio nome e de gente que não conseguia esquecer de nada; cheguei a inventar palavras. Quando ele estava terminado, corri para a casa dela. Irrompi na porta, escada acima, e o entreguei à única pessoa em Slonim cuja opinião importava. Apoiei-me na parede e observei seu rosto enquanto ela lia. Lá fora escureceu, mas ela continuou a ler. Passaram-se horas. Escorreguei para o chão. Ela lia e lia. Quando terminou, ergueu os olhos. Durante muito tempo, não falou nada. Depois, disse que talvez eu não devesse inventar tudo, porque ficava difícil acreditar em alguma coisa. Outro talvez tivesse desistido. Eu comecei de novo. Dessa vez, não escrevi sobre coisas reais e não escrevi sobre coisas imaginárias. Escrevi sobre a única coisa que eu conhecia. As páginas se empilharam. Mesmo depois que a única pessoa cuja opinião me importava partiu num navio para a América, eu continuei a encher páginas com o nome dela. Depois que ela se foi, tudo desmoronou. Nenhum judeu estava seguro. Havia rumores de coisas inimagináveis, e, porque não podíamos imaginá-las, deixamos de acreditar nelas, até não termos mais escolha e já ser tarde. Eu trabalhava em Minsk, mas perdi o emprego e voltei para casa, para Slonim. Os alemães arremetiam para o leste. Chegavam cada vez mais perto. Na manhã em que ouvimos a aproximação dos tanques, minha mãe mandou que eu me escondesse na mata. Eu quis levar meu irmão mais novo, ele tinha apenas treze anos, mas ela disse que ela mesma o levaria. Por que lhe dei ouvidos? Porque era mais fácil? Corri para a mata. Deitei-me no chão, imóvel. Cães latiam à distância. Passaram-se horas. E depois os disparos. Muitos disparos. Por alguma razão, ninguém gritava. Ou talvez eu não pudesse ouvir os gritos. Em seguida, apenas silêncio. Meu corpo estava amortecido, lembro de sentir gosto de sangue na boca. Não sei quanto tempo passou. Dias. Nunca voltei. Quando me levantei, tinha largado a única parte de mim que um dia pensara que eu seria capaz de encontrar palavras para o menor dos detalhes da vida. E no entanto. Alguns meses depois do meu ataque de coração, cinqüenta e sete anos depois de ter desistido, comecei a escrever de novo. Eu o fazia somente para mim, para mais ninguém, e essa era a diferença. Não importava se não encontrasse as palavras, e, mais que isso, eu sabia que era impossível encontrar as certas. E porque aceitei que na realidade era impossível o que um dia eu acreditara ser possível, e porque eu sabia que jamais mostraria uma palavra daquilo a ninguém, escrevi uma frase: Era uma vez um menino. Ela ficou ali, fitando-me da página, de resto em branco, durante dias. Na semana seguinte, acrescentei mais uma. Logo havia uma página inteira. Ela me fez feliz, como se falasse em voz alta para mim mesmo, o que às vezes faço. Uma vez eu disse a Bruno: Adivinhe, quantas páginas você acha que eu já tenho? Não faço idéia, ele disse. Escreva um número, eu disse, e me passe sobre a mesa. Ele deu de ombros e tirou uma caneta do bolso. Pensou por um ou dois minutos, estudou meu rosto. Um palpite aproximado, eu disse. Ele se curvou sobre o guardanapo, rabiscou um número e o virou. Eu escrevi o número correto, 301, no meu próprio guardanapo. Aproximamos os dois guardanapos sobre a mesa. Eu peguei o de Bruno. Por razões que não sei explicar, ele havia escrito 200 000. Peguei meu guardanapo e o virei. Ele ficou de queixo caído. Às vezes eu acreditava que a última página do meu livro e a última página da minha vida eram uma coisa só, que o término do meu livro seria o meu fim, um vento forte sopraria pelos quartos levando as páginas, e, quando o ar se livrasse das folhas brancas esvoaçantes, o quarto cairia no silêncio e a cadeira em que eu me sentava estaria vazia. Toda manhã eu escrevia um pouco mais. Trezentas e uma: é melhor do que nada. Vez ou outra, ao parar, eu ia ao cinema. É sempre um grande acontecimento para mim. Talvez comprasse umas pipocas e, se houvesse gente em volta olhando, as derrubasse. Gosto de sentar na frente, gosto que a tela preencha todo o meu campo de visão para que nada me distraia do instante. E depois desejo que o instante dure para sempre. Nem sei como dizer quanto me faz feliz assistir a tudo lá no alto, ampliado. Eu diria maior que a realidade, mas nunca entendi a expressão. O que é maior que a realidade? Sentar na primeira fila e olhar o rosto de dois andares de altura de uma garota bonita e sentir as vibrações da voz dela massageando suas pernas é ser lembrado das dimensões da realidade. Assim, eu me sento na primeira fila. Se saio com uma cãibra no pescoço e uma ereção se acabando, o lugar foi bom. Não sou um homem sujo. Sou um homem que ansiou estar à altura da vida. Há trechos do meu livro que eu sei de cor. De cor não é uma expressão que uso com desprendimento. Meu coração é fraco e indigno de confiança. Minha partida será por causa do meu coração. Procuro sobrecarregá-lo o mínimo possível. Se alguma coisa vai representar um impacto, eu a desvio para outro lugar. Para o meu intestino, por exemplo, ou para os meus pulmões, que podem se deter por um instante mas nunca deixaram de dar mais uma respirada. Quando passo por um espelho e me surpreendo num relance, ou se estou no ponto de ônibus e alguns garotos surgem atrás de mim e dizem: Quem está com cheiro de merda?, essas pequenas humilhações cotidianas eu, de modo geral, assimilo no fígado. Outros estragos absorvo em outros lugares. O pâncreas eu guardo para ser atingido por tudo o que foi perdido. É verdade que são muitas coisas, e o órgão é muito pequeno. Porém. Você se surpreenderia de saber quanto ele é capaz de suportar, tudo o que sinto é uma dor aguda, momentânea, e depois acaba. Às vezes imagino minha própria autópsia. Desapontamento comigo mesmo: rim direito. Desapontamento dos outros comigo: rim esquerdo. Fracassos pessoais: kishkes. Não quero dar a impressão de que fiz disso uma ciência. Não é tão bem pensado. Assimilo a coisa onde ela aparece. Acontece que percebo certos padrões. O anoitecer, antes que eu esteja pronto, porque os relógios foram atrasados, sinto, por razões que não consigo explicar, nos meus pulsos. E, quando acordo e os dedos estão enrijecidos, eu quase certamente sonhava com a infância. O terreno onde costumávamos brincar, o terreno onde tudo se descobriu e onde tudo era possível. (Nós corríamos tanto que achávamos que íamos cuspir sangue: para mim, esse é o som da infância, respiração difícil e sapatos esmagando a terra dura.) Rigidez nos dedos é o sonho da infância como ele voltou no final da minha vida. Tenho de corrê-los sob água quente, com vapor embaçando o espelho, lá fora o arrulho de pombos. Ontem vi um homem chutando um cachorro, e a sensação se alojou atrás dos meus olhos. Não sei que nome dar a ele, ao lugar antes das lágrimas. A dor de esquecer: na espinha. A dor de lembrar: na espinha. Todas as vezes em que de repente eu me dava conta de que meus pais estavam mortos, e, ainda hoje, me surpreende que eu exista no mundo se os que me fizeram deixaram de existir: meus joelhos requerem meio tubo de Ben-Gay e uma grande produção só para se dobrarem. Para tudo, o seu tempo, para cada vez que acordei e cometi o erro de acreditar por um instante que alguém dormia a meu lado: uma hemorróida. Solidão: não há órgão que possa suportá-la inteira. Toda manhã, um pouco mais. Era uma vez um menino. Ele morava numa aldeia que não existe mais, numa casa que não existe mais, na extremidade de um campo que não existe mais, onde tudo foi descoberto e tudo era possível. Um pedaço de pau podia ser uma espada. Um pedregulho podia ser um diamante. Uma árvore, um castelo. Era uma vez um menino que morava numa casa no terreno de frente para uma menina que não existe mais. Inventaram mil jogos. Ela era Rainha e ele era Rei. Na luz do outono, o cabelo dela brilhava como uma coroa. Eles juntavam o mundo em pequenos punhados. Quando o céu escurecia, separavam-se com folhas nos cabelos. Era uma vez um menino que amava uma menina, e a risada dela era uma pergunta que ele desejava passar a vida a responder. Quando tinham dez anos, ele a pediu em casamento. Quando tinham onze, ele a beijou pela primeira vez. Quando tinham treze, eles brigaram e não se falaram por três semanas. Quando tinham quinze, ela mostrou a ele a cicatriz no seio esquerdo. O amor deles era um segredo que não contavam para ninguém. Ele prometeu a ela que jamais amaria outra menina enquanto vivesse. E se eu morrer?, ela perguntou. Nem assim, ele disse. No aniversário de dezesseis anos, ele deu a ela um dicionário de inglês, e juntos eles aprenderam as palavras. O que é isso?, ele perguntou, passando o dedo indicador no tornozelo dela, e ela procurou. E isso?, ele perguntou, beijando o cotovelo dela. Cotovelo! Que palavra é essa?, e depois ele o lambeu, e a fez rir. E o que acha disso?, ele perguntou, tocando a pele macia atrás da orelha dela. Não sei, ela disse, e apagou a lanterna e rolou, com um suspiro, sobre as costas. Quando tinham dezessete, fizeram amor pela primeira vez, numa cama de palha num galpão. Mais tarde - quando aconteceram coisas que eles nunca poderiam ter imaginado - ela lhe escreveu uma carta que dizia: Quando você vai aprender que não existem palavras para todas as coisas? Era uma vez um menino que amava uma menina cujo pai foi esperto o bastante para juntar todos os zlotis que tinha para mandar a filha mais nova para a América. Primeiro, ela se opôs, mas o menino também sabia que devia insistir, jurando pela sua vida que ganharia algum dinheiro e acharia um meio de ir atrás dela. Assim, ela partiu. Ele arranjou um emprego na cidade mais próxima, trabalhou como porteiro num hospital. De noite ficava acordado e escrevia o livro. Mandou para ela uma carta em que copiou onze capítulos numa letra miúda. Ele nem tinha certeza de que o correio chegaria. Guardou todo o dinheiro que pôde. Um dia, foi despedido. Ninguém disse por quê. Ele voltou para casa. No verão de 1941, os Einsatzgruppen penetraram mais para o leste e mataram centenas de milhares de judeus. Num dia claro, quente, de julho, entraram em Slonim. Àquela hora o menino estava deitado de costas na mata e pensava na menina. Poderia se dizer que foi o amor dele por ela que o salvou. Nos anos seguintes, o menino se transformou num homem que se tornou invisível. Assim, ele escapou da morte. Era uma vez um homem que, tornado invisível, chegou na América. Ele havia passado três anos e meio escondido, na maior parte do tempo em árvores, mas também em frestas, porões, buracos. Depois, acabou. Os tanques russos chegaram. Durante seis meses ele morou num campo de refugiados. Enviou uma mensagem ao primo dele, que era chaveiro na América. Em sua cabeça ele praticava as únicas palavras que conhecia em inglês. Joelho. Cotovelo. Orelha. Finalmente, os papéis saíram. Ele tomou um trem até um navio, e depois de uma semana chegou à baía de Nova York. Num dia frio de novembro. Dobrado na mão, levava o endereço da menina. Naquela noite, ficou acordado no chão do quarto do primo. A estufa tinia e chiava, mas ele se sentia agradecido pelo calor. De manhã o primo lhe explicou três vezes como se tomava o metrô para o Brooklyn. Ele comprou um maço de rosas, mas elas murcharam, porque, embora o primo tivesse explicado o caminho três vezes, ele ainda assim se perdeu. Por fim, ele encontrou o lugar. Somente quando seu dedo pressionou a campainha, cruzou-lhe a mente o pensamento de que talvez devesse ter ligado. Ela abriu a porta. Usava um lenço azul no cabelo. Ele ouviu a transmissão de um jogo através da parede do vizinho. Era uma vez a mulher que havia sido uma menina e embarcara num navio para a América e vomitara durante a viagem inteira, não porque estivesse mareada, mas porque estava grávida. Quando descobriu, escreveu para o menino. Todos os dias ela esperou por uma carta dele, mas não chegou nenhuma. Ela foi ficando cada vez maior. Tentou esconder para não perder o emprego na fábrica de vestidos onde trabalhava. Algumas semanas antes de nascer o bebê, alguém lhe disse ter ouvido que judeus estavam sendo mortos na Polônia. Onde?, ela perguntou, mas ninguém sabia. Ela parou de ir ao trabalho. Não conseguia sair da cama. Passada uma semana, o filho do patrão foi vê-la. Levou comida para ela e pôs um buquê de flores num vaso junto da sua cama. Quando descobriu que ela estava grávida, chamou uma parteira. Nasceu um menino. Um dia a menina sentou-se na cama e viu que o filho do patrão embalava a criança ao sol. Alguns meses mais tarde, ela concordou em se casar com ele. Dois anos depois, teve outro filho. O homem que havia se tornado invisível ficou de pé na sala da casa dela e escutou isso tudo. Ele tinha vinte e cinco anos de idade. Havia mudado tanto desde que a vira pela última vez, e naquela hora uma parte dele desejou rir, uma risada dura e fria. Ela deu a ele uma pequena fotografia do menino, que tinha cinco anos. Sua mão tremia. Ela disse: Você parou de escrever. Pensei que estivesse morto. Ele olhou para a fotografia do menino que cresceria para se tornar parecido com ele, que, embora àquela altura o homem ainda não soubesse, entraria na universidade, se apaixonaria, se desapaixonaria, se tornaria um escritor famoso. Como ele se chama?, ele perguntou. Ela disse: Eu o chamei de Isaac. Ficaram em silêncio durante um longo tempo, enquanto ele fitava a fotografia. Por fim, ele conseguiu dizer duas palavras: Venha comigo. Da rua vinha o som de gritos de crianças. Ela apertou os olhos. Venha comigo, ele disse, e estendeu a mão. Lágrimas correram pelo rosto dela. Ele pediu três vezes. Ela balançou a cabeça. Não posso, disse. Olhou para o chão. Por favor, ele disse. E assim ele fez a coisa mais difícil que havia feito na vida: pegou o chapéu e foi embora. E, se o homem que um dia havia sido um menino e prometera não se apaixonar por outra menina enquanto vivesse cumpriu a promessa, não foi porque fosse teimoso ou mesmo fiel. Ele não podia fazer diferente. E, por ter se escondido durante três anos, esconder o amor por um filho que não sabia da sua existência não parecia impensável. Não, se fosse o que a única mulher jamais amada por ele lhe pedisse. Afinal, o que significa para um homem esconder uma coisa a mais se ele desapareceu completamente? [...]