Trecho do livro UMA HISTÓRIA DA GUERRA

1. A GUERRA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE O QUE É A GUERRA? A guerra não é a continuação da política por outros meios. O mundo seria mais fácil de compreender se essa frase de Clausewitz fosse verdade. Clausewitz, um veterano prussiano das guerras napoleônicas que aproveitou seus anos de aposentadoria para compor o que estava destinado a ser o mais famoso livro sobre a guerra - chamado justamente Da guerra -, na verdade escreveu que a guerra era a "continuação das relações políticas" (des politischen Verkehrs) "com a entremistura de outros meios" (mit Einmischung anderer Mittel). O original alemão expressa uma idéia mais complexa e sutil que a tradução mais freqüentemente citada. Nas duas formas, no entanto, o pensamento de Clausewitz está incompleto. Ele implica a existência de Estados, de interesses de Estado e de cálculos racionais sobre como eles podem ser atingidos. Contudo, a guerra precede o Estado, a diplomacia e a estratégia por vários milênios. A guerra é quase tão antiga quanto o próprio homem e atinge os lugares mais secretos do coração humano, lugares em que o ego dissolve os propósitos racionais, onde reina o orgulho, onde a emoção é suprema, onde o instinto é rei. "O homem é um animal político", disse Aristóteles. Clausewitz, herdeiro de Aristóteles, disse apenas que um animal político é um animal que guerreia. Nenhum dos dois ousou enfrentar o pensamento de que o homem é um animal que pensa, em quem o intelecto dirige o impulso de caçar e a capacidade de matar. Não se trata de uma idéia que seja mais fácil de enfrentar para o homem moderno do que para um oficial prussiano, neto de um clérigo e educado no espírito do Iluminismo do século XVIII. Pois, apesar de toda a influência que Freud, Jung e Adler tiveram sobre nossa visão das coisas, nossos valores morais continuam a ser os das grandes religiões monoteístas, que condenam matar as almas irmãs, exceto nas circunstâncias mais inevitáveis. A antropologia nos diz e a arqueologia infere que nossos ancestrais incivilizados podiam ser selvagens com unhas e dentes; a psicanálise busca persuadir-nos de que o selvagem que há em todos nós espreita não muito abaixo da pele. No entanto, preferimos reconhecer a natureza humana tal como ela se exibe no comportamento cotidiano da maioria civilizada na vida moderna - imperfeita, sem dúvida, mas certamente cooperativa e freqüentemente benevolente. Para nós, a cultura parece ser a grande determinante de como os seres humanos se comportam; nos inexoráveis debates acadêmicos entre "natureza e cultura", é a escola da cultura que obtém mais apoio dos espectadores. Somos animais culturais e é a riqueza de nossa cultura que nos permite aceitar nossa indiscutível potencialidade para a violência, mas também acreditar que sua expressão é uma aberração cultural. As lições da história nos advertem que os Estados em que vivemos, suas instituições, até mesmo suas leis, chegaram-nos por meio de conflitos, amiúde do tipo mais sangrento. Nossa dieta diária de notícias traz relatos de derramamentos de sangue, muitas vezes em regiões bem próximas a nossas terras natais, em circunstâncias que negam completamente nossa concepção de normalidade cultural. Mesmo assim, conseguimos confinar as lições da história e das reportagens em uma categoria especial e separada de "alteridade" que invalida nossas expectativas de como nosso próprio mundo será amanhã e o dia seguinte de forma alguma. Nossas instituições e leis, dizemos para nós mesmos, estabeleceram tantas restrições à potencialidade humana para a violência que, na vida cotidiana, nossas leis irão puni-la como criminosa, enquanto sua utilização pelas instituições de Estado tomará a forma particular de "guerra civilizada". Os limites da guerra civilizada são definidos por dois tipos humanos antitéticos, o pacifista e o "portador legal de armas". Este último sempre foi respeitado, quando mais não seja por possuir os meios para fazer-se respeitar; o pacifista passou a ser valorizado nos 2 mil anos da era cristã. A reciprocidade deles aparece no diálogo entre o fundador do cristianismo e o soldado profissional romano que pedira que curasse um criado com sua palavra milagrosa. "Também sou um homem colocado sob autoridade", explicou o centurião. Cristo exclamou diante da crença do centurião no poder da virtude, que o soldado considerava como complemento da força da lei que ele personificava. Podemos supor que Cristo estava reconhecendo a posição moral do portador legal de armas, que deve entregar sua vida por exigência da autoridade, e que, portanto, pode ser comparado ao pacifista disposto a entregar sua vida em vez de violar a autoridade de seu próprio credo? Trata-se de um pensamento complicado, mas ao qual a cultura ocidental não acha difícil se acomodar. Dentro dela, o soldado profissional e o pacifista militante encontram espaço para coexistir - às vezes lado a lado; no Comando 3, uma das unidades britânicas mais rijas da Segunda Guerra Mundial, os padioleiros eram todos pacifistas, mas eram tidos em alta conta pelo comandante devido a sua bravura e dedicação. Com efeito, a cultura ocidental não seria o que é se não respeitasse ao mesmo tempo o portador legal de armas e a pessoa que considera o porte de armas intrinsecamente ilegal. Nossa cultura busca compromissos, e o compromisso ao qual chegou sobre a questão da violência pública é desaprovar sua manifestação, mas legitimar seu uso. O pacifismo foi elevado a um ideal; o porte legal de armas - sob um código rigoroso de justiça militar e dentro de um corpus de leis humanitárias - foi aceito como uma necessidade prática. "A guerra como continuação da política" foi a fórmula que Clausewitz escolheu para expressar o compromisso estabelecido pelos Estados que conhecia. Mantinha-se o respeito pela ética dominante - de soberania absoluta, diplomacia ordenada e tratados legais -, ao mesmo tempo que se levava em conta o princípio superior do interesse de Estado. Se não se admitia o ideal de pacifismo, que o filósofo prussiano Kant acabava de traduzir da esfera religiosa para a política, com certeza distinguia-se claramente o portador legal de armas do rebelde, do pirata e do bandoleiro. Pressupunha-se um alto nível de disciplina militar e um grau imenso de obediência dos subordinados a seus superiores cumpridores da lei. Esperava-se que a guerra assumisse certas formas estreitamente definidas - cerco, batalha campal, escaramuças, incursões, reconhecimento, patrulha, postos avançados -, cada uma delas com suas próprias convenções reconhecidas. Pressupunha-se que as guerras tinham um começo e um fim. O que não se levava em conta de forma alguma era a guerra sem início ou final, a guerra endêmica de povos sem Estado, ou mesmo em estágio pré-estatal, nos quais não havia distinção entre portadores legais e ilegais de armas, uma vez que todos os homens eram guerreiros; uma forma de guerra que prevalecera durante longos períodos da história da humanidade e que ainda sobrevivia nas margens dos Estados civilizados e, com efeito, era posta a serviço desses Estados mediante a prática comum de recrutar seus praticantes como soldados "irregulares" de cavalaria ou infantaria. Os oficiais dos Estados civilizados desviavam seus olhares dos meios ilegais e incivilizados que esses guerreiros irregulares utilizavam para recompensar-se em campanha, bem como de seus métodos bárbaros de lutar; contudo, sem os serviços que ofereciam, os exércitos excessivamente treinados nos quais Clausewitz e seus pares tinham se formado dificilmente seriam capazes de se manter em campo. Todos os exércitos regulares, até mesmo os da Revolução Francesa, recrutavam soldados irregulares para patrulhar, reconhecer e travar escaramuças para eles; durante o século XVIII, a expansão desse tipo de força - cossacos, "caçadores", highlanders, "fronteiriços", hussardos - constituíra um dos acontecimentos militares mais notados. Seus patrões civilizados decidiram cobrir com um véu seus hábitos de saquear, pilhar, estuprar, assassinar, raptar, extorquir e sistematicamente vandalizar. Preferiam não admitir que se tratava de uma forma de guerrear mais antiga e mais disseminada que aquela que praticavam; "a guerra [...] continuação da política", uma vez formulado o pensamento por Clausewitz, o oficial pensante passou a ter um ângulo filosófico conveniente para contemplar os aspectos mais antigos, escuros e fundamentais de sua profissão. Contudo, o próprio Clausewitz viu de relance que a guerra não era totalmente o que ele afirmava ser. "Se as guerras dos povos civilizados são menos cruéis e destrutivas que as dos selvagens", começava ele de forma condicional uma de suas mais famosas passagens. Trata-se de um pensamento que não levou adiante porque, com toda a considerável força filosófica a seu dispor, ele estava batalhando para formular uma teoria universal do que a guerra deveria ser, em vez de tratar do que a guerra realmente era e fora. Nessa empreitada, obteve um alto grau de êxito. Na prática da guerra, é para os princípios de Clausewitz que o governante e o comandante supremo ainda se voltam; mas, para uma descrição fiel à realidade da guerra, a testemunha ocular e o historiador devem fugir dos métodos de Clausewitz, apesar de ele próprio ter sido testemunha ocular e historiador da guerra, alguém que deve ter visto e poderia ter escrito sobre muita coisa que não encontrou lugar em suas teorias. "Sem teoria, os fatos são silenciosos", escreveu o economista F. A. Hayek. Isso pode ser verdade para os fatos frios da economia, mas os fatos da guerra não são frios. Eles queimam com o calor dos fogos do inferno. Em sua velhice, o general William Tecumseh Sherman, que incendiara Atlanta e pusera fogo numa grande faixa do Sul dos Estados Unidos, exorcizou com amargura esse mesmo pensamento, em palavras que se tornaram quase tão famosas quanto as de Clausewitz: "Estou farto da guerra. Sua glória é pura quimera [...] A guerra é o inferno". Clausewitz vira os fogos infernais da guerra, vira, com efeito, Moscou em chamas. O incêndio de Moscou foi a maior catástrofe material das guerras napoleônicas, um evento de significação européia semelhante em seu efeito psicológico ao terremoto de Lisboa de 1755. Em uma época de crença, a destruição de Lisboa parecera uma evidência terrível do poder do Todo-Poderoso e estimulara um renascimento religioso em Portugal e Espanha; na época da revolução, a destruição de Moscou foi vista como um testemunho do poder do homem, como de fato era. Considerou-se o incêndio como um ato deliberado - Rostopchin, governador da cidade, arrogou-se a responsabilidade quanto a ele, enquanto Napoleão mandava prender e executar os supostos incendiários -, mas Clausewitz estranhamente não pôde convencer-se de que o incêndio fora deliberado, com o objetivo de negar a Napoleão o prêmio da vitória. Ao contrário: "que os franceses não foram os agentes, eu estava firmemente convencido", escreveu ele, "que as autoridades russas tinham cometido o ato, pareceu-me pelo menos não provado". Em vez disso, acreditava tratar-se de um acidente. A confusão que vi nas ruas enquanto a retaguarda [russa] se retirava; o fato de que a fumaça foi vista pela primeira vez elevando-se das extremidades dos subúrbios onde os cossacos agiam convenceram-me de que o incêndio de Moscou foi um resultado da desordem e do hábito dos cossacos de primeiro saquear e depois pôr fogo em todas as casas antes que o inimigo pudesse utilizá-las [...] Foi um dos acontecimentos mais estranhos da história, que um evento que tanto influenciou o destino da Rússia pudesse ser como um bastardo nascido de um caso de amor ilícito, sem um pai que o reconhecesse. No entanto, Clausewitz devia saber que não havia nada de verdadeiramente acidental no ato bastardo de incendiar Moscou, ou em qualquer das inúmeras ilegitimidades que acompanharam a campanha de Napoleão na Rússia em 1812. O envolvimento dos cossacos era em si mesmo uma garantia de que incêndios, saques, estupros, assassinatos e uma centena de outras atrocidades abundariam, pois para os cossacos a guerra não era política, mas uma cultura e um modo de vida. Os cossacos eram soldados do czar e, ao mesmo tempo, rebeldes contra o absolutismo czarista. A história de suas origens foi chamada de mito, e não há dúvida de que eles as mitificaram ao longo do tempo. Contudo, a essência do mito é simples e verdadeira. Os cossacos - o nome deriva da palavra turca que significa homem livre - eram cristãos fugitivos da servidão aos senhores da Polônia, da Lituânia e da Rússia que preferiram se arriscar nas terras ricas, mas sem lei, da grande estepe da Ásia central. Na época em que Clausewitz conheceu os cossacos, o mito de seu nascimento em liberdade tinha crescido na narração, mas diminuído na realidade. No início, tinham fundado sociedades genuinamente igualitárias - sem senhores, sem mulheres, sem propriedade, encarnação viva do bando de guerreiros livres e nômades que constitui um ingrediente poderoso e eterno das sagas de todo o mundo. Em 1570, Ivan, o Terrível, teve de trocar pólvora, chumbo e dinheiro - três coisas que as estepes não produziam - pela ajuda dos cossacos para libertar prisioneiros russos da escravização muçulmana, mas antes do final de seu reinado começou a usar a força para trazê-los para dentro do sistema czarista. Seus sucessores mantiveram a pressão. Durante as guerras da Rússia contra Napoleão, formaram-se regimentos regulares de cossacos, uma contradição em termos, embora acompanhasse a moda européia de então de incorporar unidades de povos das montanhas, das florestas e de cavaleiros às diferentes ordens de batalha dos Estados. Em 1837, o czar Nicolau I completou o processo ao proclamar seu filho "Atamã de todos os cossacos", cujos seguidores estavam representados no Corpo de Guarda Imperial por regimentos de cossacos do Don, dos Urais e do mar Negro, diferenciados de outras unidades de habitantes domesticados das fronteiras e montanheses do Cáucaso apenas por detalhes de seus uniformes exóticos. Mas apesar da amplitude da domesticação os cossacos foram sempre poupados da indignidade de pagar o "imposto por alma" que marcava um súdito russo como servo e estavam especificamente isentos de recrutamento, que os servos consideravam como uma sentença de morte. De fato, até o fim do regime czarista o governo russo preservou o princípio de tratar com as várias hostes de cossacos como se fossem sociedades de guerreiros livres, nas quais a responsabilidade de responder ao chamado às armas recaía sobre o grupo e não sobre seus indivíduos. Ainda no início da Primeira Guerra Mundial, o ministro da Guerra russo contava com os cossacos para fornecerem regimentos, não soldados, perpetuação de um sistema parte feudal, parte diplomático, parte mercenário, que numa variedade de formas provia os Estados com contingentes militares já treinados quase que desde o início da história da guerra organizada. Os cossacos que Clausewitz conheceu estavam muito mais próximos dos piratas saqueadores originais que os próprios andarilhos arrojados que Tolstoi romantizaria em seus primeiros romances, e tocar fogo na periferia de Moscou em 1812, o que levou à conflagração da capital, estava bem dentro do espírito deles. Os cossacos continuavam a ser um povo cruel, e incendiar não estava entre seus atos mais cruéis, embora fosse suficientemente cruel - milhares de moscovitas ficaram sem teto em pleno inverno subártico. Na grande retirada que se seguiu, os cossacos demonstraram uma crueldade que lembrou suas vítimas, os europeus ocidentais, das visitas dos povos das estepes, cavaleiros nômades impiedosos cujos estandartes lançavam a sombra da morte por onde quer que suas hordas galopassem, visitas que estavam enterradas nos recessos mais escuros da memória coletiva. As longas colunas do Grande Exército que se arrastavam enterradas até o joelho na neve esperando encontrar segurança eram espreitadas, além da distância de um tiro de mosquetão, por esquadrões de cossacos que caíam rapidamente sobre os que se deixavam abater pela fraqueza; quando um grupo sucumbia, era dominado e aniquilado; e quando os cossacos alcançaram os remanescentes do exército francês que não conseguiram cruzar o rio Berezina antes que Napoleão mandasse queimar as pontes, o massacre foi em massa. Clausewitz contou a sua esposa que testemunhara "cenas medonhas [...] Se meu coração não tivesse sido endurecido, eu teria enlouquecido. Ainda assim, demorará muitos anos até que eu consiga relembrar o que vi sem me arrepiar de horror". Clausewitz era um soldado profissional, filho de um oficial, educado para a guerra, veterano de vinte anos de campanha e sobrevivente das batalhas de Iena, Borodino e Waterloo, a segunda batalha mais sangrenta de Napoleão. Ele vira o sangue jorrar em galões, tinha atravessado campos de batalha onde os mortos e feridos jaziam espalhados como feixes na colheita, vira homens serem mortos ao seu lado, tivera um cavalo ferido e escapara da morte por pura sorte. Seu coração devia estar realmente endurecido. Por que então achou os horrores da perseguição dos cossacos aos franceses tão particularmente horríveis? A resposta é, evidentemente, que ficamos endurecidos para o que conhecemos e racionalizamos e até justificamos as crueldades praticadas por nós e nossos semelhantes ao mesmo tempo que retemos a capacidade de nos chocar e nos enojar diante de práticas igualmente cruéis que, nas mãos de estranhos, assumem uma forma diferente. Entre Clausewitz e os cossacos a estranheza era mútua. Ele estava revoltado com hábitos cossacos tais como derrubar os inimigos retardatários a ponta de lança, vender prisioneiros aos camponeses por dinheiro e deixar nus os invendáveis para ficar com seus trapos. Provavelmente sentia desprezo por eles, pois, como observou um oficial francês, "quando defrontamos abertamente com eles, jamais oferecem resistência - mesmo [quando nós] estamos inferiorizados em dois para um". Os cossacos, em resumo, eram cruéis para com os fracos e covardes diante dos bravos, exatamente o padrão oposto de comportamento que um oficial e cavalheiro prussiano aprendera a observar. O padrão perduraria. Na batalha de Balaclava, durante a guerra da Criméia de 1854, dois regimentos de cossacos foram enviados para enfrentar a carga da Brigada Ligeira; um oficial russo que observava registrou que "assustados pela ordem disciplinada da massa da cavalaria [britânica] caindo sobre eles, [os cossacos] não sustentaram posição e, girando para a esquerda, começaram a atirar em suas próprias tropas numa tentativa de abrir caminho para a fuga". Quando a Brigada Ligeira foi expulsa do vale da Morte pela artilharia russa, "os primeiros a se recuperar", registrou outro oficial russo, "foram os cossacos e, fiéis a sua natureza, dedicaram-se à tarefa que se apresentava - recolher os cavalos abandonados pelos ingleses e oferecê-los à venda". O espetáculo certamente aumentaria o desprezo de Clausewitz, reforçando sua convicção de que os cossacos não mereciam a dignidade do título de "soldados"; apesar de sua conduta mercenária, não podiam nem ser chamados propriamente de mercenários, que são normalmente fiéis a seus contratos; Clausewitz os consideraria provavelmente meros carniceiros, que viviam dos restos da guerra, mas se esquivavam do matadouro. O verdadeiro trabalho da guerra na época de Clausewitz era realmente de matadouro. Os soldados ficavam silenciosos e inertes em fileiras para serem abatidos, às vezes durante horas; em Borodino, diz-se que os corpos de infantaria de Ostermann-Tolstoi ficaram diante do fogo à queima-roupa da artilharia por duas horas, "durante as quais o único movimento era a agitação das linhas provocada pelos corpos que caíam". Sobreviver à matança não significava o fim do matadouro. Larrey, o cirurgião mais antigo de Napoleão, realizou duas centenas de amputações na noite seguinte a Borodino, e seus pacientes eram felizardos. Eugène Labaume descreveu "o interior das valas" que entrecruzavam o campo de batalha: "quase todos os feridos, por um instinto natural, tinham se arrastado para lá em busca de proteção [...] empilhados uns sobre os outros e nadando desamparadamente no próprio sangue, alguns pediam aos que passavam que os livrassem de sua miséria". Essas cenas de matadouro eram o resultado inevitável de uma forma de guerrear que fazia os povos que Clausewitz considerava selvagens, como os cossacos, fugirem quando ameaçavam envolvê-los, mas, se não as tivessem testemunhado, rirem quando alguém as descrevia. O treinamento europeu, quando demonstrado pela primeira vez por Takashima, o reformador militar japonês, a alguns samurais de alta patente em 1841, provocou escárnio; o mestre da artilharia disse que o espetáculo de "homens levantando e manipulando suas armas todos ao mesmo tempo e com o mesmo movimento parecia que estavam participando de alguma brincadeira de criança". Era a reação de guerreiros que lutavam corpo a corpo, para quem lutar era um ato de auto-expressão pelo qual um homem exibia não apenas sua coragem, mas também sua individualidade. Os klephts gregos - meio bandidos, meio rebeldes contra o domínio turco, cujos simpatizantes, filelenos franceses, alemães e britânicos, muitos deles ex-oficiais das guerras napoleônicas, tentaram instruir em exercícios de ordem unida no início da guerra de independência da Grécia, em 1821 - também reagiram com zombaria, mas antes com descrença que com desprezo. Seu estilo de luta - muito antigo, encontrado por Alexandre, o Grande, em sua invasão da Ásia menor - era construir pequenos muros no lugar mais provável de encontro com o inimigo e então provocá-lo à ação com motejos e insultos; quando o inimigo atacava, fugiam. Sobreviviam para lutar outro dia, mas não para ganhar a guerra, objetivo que não conseguiam entender. Os turcos também tinham uma maneira própria de lutar: avançavam numa carga desconexa com desdém fanático pelas baixas. Os filelenos argumentavam que, se os gregos não enfrentassem os turcos, jamais ganhariam uma batalha; os gregos objetavam que, se fizessem frente ao inimigo à maneira européia, peito aberto aos mosquetes turcos, seriam todos mortos e perderiam a guerra de qualquer modo. "Para os gregos, um rubor - para a Grécia, uma lágrima", escreveu Byron, o mais famoso dos filelenos. Ele tinha esperança, com outros amantes da liberdade, "de fazer uma nova Termópilas" ao lado dos gregos. Sua descoberta de que eles eram invencíveis apenas em sua ignorância de táticas racionais deprimiu-o e desiludiu-o, assim como aos outros idealistas europeus. No centro do filelenismo estava a crença de que os gregos modernos eram, sob sua sujeira e ignorância, o mesmo povo da Grécia antiga. Shelley, em seu prefácio a Hellas - "A grande época do mundo começa novamente/ Os anos dourados retornam" -, expõe essa crença em sua forma mais sucinta: "O grego moderno é o descendente daqueles seres tão gloriosos que a imaginação quase se recusa a vê-los como pertencendo a nossa espécie, e ele herda muito da sensibilidade, da rapidez de concepção, do entusiasmo e da coragem deles". Mas os filelenos que entraram em um campo de batalha com os gregos não apenas abandonaram rapidamente a crença numa identidade comum entre os antigos e os modernos; os que sobreviveram para voltar à Europa, "quase sem exceção", escreve o historiador do filelenismo William Saint Clair, "odiavam os gregos com asco profundo e maldiziam-se por sua estupidez de terem sido enganados". A proclamação poética ingênua da coragem dos gregos modernos feita por Shelley foi particularmente exasperante. Os filelenos queriam acreditar que eles exibiriam a mesma tenacidade em ordem unida, na "batalha até a morte a pé" que os antigos hoplitas tinham demonstrado em suas guerras contra os persas. Foi aquele estilo de luta que, por caminhos tortuosos, veio a caracterizar seu próprio estilo de guerrear na Europa ocidental. Eles esperavam ao menos que os gregos modernos se mostrassem dispostos a reaprender a tática de ordem unida, quando mais não fosse porque isso era a chave para libertarem-se dos turcos. Quando descobriram que não havia essa disposição - que os "objetivos de guerra" dos gregos se limitavam a conquistar a liberdade para continuar como bons klephts a fazer fiau para as autoridades em suas montanhas fronteiriças, subsistindo pelo banditismo, mudando de lado quando lhes convinha, matando seus inimigos religiosos quando surgia a oportunidade, exibindo atavios de mau gosto, brandindo armas ferozes, enchendo suas bolsas com subornos desonrosos e nunca, nunca morrendo até o último homem, ou até o primeiro, se conseguissem -, aos filelenos restou a conclusão de que somente um rompimento na linhagem entre os gregos antigos e modernos poderia explicar o colapso de uma cultura heróica. Os filelenos tentaram - mas falharam - fazer os gregos aceitarem sua cultura militar. Clausewitz não tentou, mas teria fracassado se quisesse fazer os cossacos aceitarem sua cultura militar. O que eles deixaram de ver é que seu próprio modo ocidental de lutar, tipificado pelo grande marechal francês de Saxe, do século XVIII, em sua crítica aguda das deficiências militares dos turcos e de seus inimigos como sendo "l'ordre, et la discipline, et la manière de combattre", era bem uma expressão de sua própria cultura, tanto quanto a tática do "viver para lutar outro dia" dos cossacos e dos klephts. Em resumo, é no plano cultural que a resposta de Clausewitz à pergunta "o que é a guerra" é falha. Isso não é de forma alguma surpreendente. Todos nós achamos difícil tomar distância suficiente de nossa própria cultura para perceber como ela faz de nós, como indivíduos, o que somos. Para o homem ocidental moderno, com seu compromisso com o credo da individualidade, essa dificuldade é tão grande quanto o foi para gente de outros lugares e épocas. Clausewitz era um homem de seu tempo, filho do Iluminismo, contemporâneo dos românticos alemães, um intelectual, um reformista prático, um homem de ação, um crítico de sua sociedade e um apaixonado crente na necessidade de mudá-la. Era um observador perspicaz do presente e um devoto do futuro. No que fracassou foi em ver quão profundamente enraizado estava em seu próprio passado, o passado de um oficial profissional de um Estado centralizado europeu. Se sua mente tivesse apenas mais uma dimensão intelectual - e se tratava de uma mente já muito sofisticada -, talvez pudesse ter percebido que a guerra abarca muito mais que a política, que é sempre uma expressão de cultura, com freqüência um determinante de formas culturais e, em algumas sociedades, é a própria cultura. [...]