1. OS ANOS DE FORMAÇÃO E A EXPERIÊNCIA REGIONAL Quando Getúlio Vargas nasceu, em 1882, o Brasil era ainda uma monarquia, batizada pomposamente de Império, quem sabe numa tentativa de ocultar suas muitas fragilidades e contradições. Dentre elas, avultava a persistência da escravidão, embora àquela altura fosse claro que o sistema escravista, tido como natural desde a colônia, vivia seus últimos tempos. Como se dizia na época, aquele país de apenas cerca de 17 milhões de habitantes, com amplas porções de seu território ainda inexploradas, era essencialmente agrícola. Havia diversidade de produtos do campo, mas o café despontava como o grande item de exportação. Para dar uma saída ao problema da força de trabalho, a imigração subsidiada ganhara ímpeto, com destino às fazendas do centro-sul. A vida urbana era representada por umas poucas cidades, com a capital do país à frente. Mas mesmo no Rio de Janeiro ainda não começara um período de urbanização, de plena afirmação dos costumes europeus, restritos às classes altas, que só se tornaria nítido na virada do século. A precariedade do abastecimento de água, a lentidão dos bondes puxados a burro, a devastação produzida pela febre amarela e pela varíola sobrepunham-se a certo progresso e ao encanto da vegetação tropical. Pouco mais de 72 anos depois, quando Getúlio morreu, o país tinha se transformado. A população ultrapassara os 50 milhões de habitantes, a industrialização se afirmava, contando com a mão-de-obra gerada pelas grandes migrações internas, a partir das pequenas cidades e do campo, de Minas Gerais e do Nordeste. O saneamento básico fizera progressos, e não só a capital da República, mas também outras grandes cidades, como São Paulo, destacavam-se por sua intensa atividade, em tempos de índices confortáveis de segurança pública. Em espaços antes praticamente vazios ou habitados por tribos indígenas, como o oeste do estado de São Paulo, agora se desenvolviam atividades produtivas, o que não quer dizer que os imensos vazios e os territórios indígenas tivessem deixado de existir em outras regiões do país. É preciso ressalvar, porém, que graves e renitentes problemas não tinham sido superados, e haviam surgido novos. Eram e ainda são os de sempre: a pobreza, a desigualdade social, a carência de educação e de saúde. Em poucas palavras, o progresso era real, e os inúmeros problemas também. Getúlio teve muito a ver com essas transformações, embora várias delas constituíssem processos sociais que não podem ser personalizados. Afinal, ele governou o país por mais de dezoito anos, de várias formas: como ditador, presidente por eleição indireta e presidente por eleição direta. Em torno de sua personalidade e de sua ação política, ergueram-se um culto e uma repulsa. O culto foi tecido com a imagem do homem que esteve à frente das transformações econômicas e sociais, como um nacionalista que resistiu aos trustes estrangeiros, como o primeiro estadista a vir em socorro dos "humildes", implantando no país uma legislação trabalhista. A repulsa batia em teclas pessoais - a frieza, o caráter dissimulado - e em traços negativos do homem público, entre eles o autoritarismo, que atingiu sua forma plena no Estado Novo, e a manipulação assistencialista dos trabalhadores. A origem regional de Getúlio foi também fonte das imagens opostas. As peculiaridades do Rio Grande do Sul foram associadas por muitos a uma série de virtudes, entre as quais a gestão mais limpa da coisa pública. Não por acaso, os líderes gaúchos da revolução de 1930 enfatizaram que seu estado estava à frente de um movimento cívico destinado a regenerar o Brasil. Para outros, entretanto, o Rio Grande era uma terra bárbara, semeada de violências perpetradas por bandos armados conduzidos por seus chefes. Daí saltou-se para a personalização: Getúlio, segundo seus inimigos, não passava de um caudilho dos pampas, e seu polimento não ia além de um enganoso verniz. Quem foi esse homem, na definição de seus traços psicológicos, de sua vida familiar, de suas idéias e, principalmente, de suas ações políticas? Um ser dissimulado, que escondia seus propósitos e ambições, ou apenas um personagem reservado? Um homem acossado por ameaças reais ou imaginárias, ou um governante seguro de seu poder? Um ditador fascista, ou um político pragmático que agia de acordo com as condições de sua época? Um benfeitor dos trabalhadores e dos "humildes", ou um manipulador das grandes massas? As respostas a estas e muitas outras perguntas não são simples, mas trilhar o caminho da combinação das alternativas propostas, evitando o maniqueísmo, nos levará a conhecer melhor a figura de Getúlio. Um dos paradoxos de sua personalidade chama logo a atenção. O governante que mais do que qualquer outro combateu o regionalismo e a autonomia dos estados, em nome da centralização do poder, nunca deixou de ser um gaúcho. Foi no clima social e político do Rio Grande do Sul que formou muitas de suas concepções, nutriu aversões e criou amizades que iriam constituir seu círculo de íntimos. Também os hábitos arraigados dizem muito a esse respeito. Por exemplo, ao ser destituído da Presidência da República, em 1945, Getúlio retornou para sua fazenda no Rio Grande e, livre dos constrangimentos protocolares, voltou a usar bombachas e botas de couro e a sorver o chimarrão, que, aliás, nunca abandonara inteiramente. Para tentar entender a figura de Getúlio é preciso, pois, ter ao menos uma noção da "peculiaridade gaúcha", que vem dos tempos da colônia e chega aos nossos dias. Vivendo em uma área de fronteira com os domínios da Coroa espanhola, a gente do então chamado Rio Grande de São Pedro se destacou pelos contatos e lutas com seus vizinhos, tendo derivado deste último fator a importância dos quadros militares formais e informais. Assim, nos últimos anos da colônia e no curso do Império, o Rio Grande esteve envolvido em extensos conflitos externos: as intervenções armadas de d. João VI e d. Pedro I, pela posse da província Cisplatina; a chamada "guerra grande", contra Oribe, no Uruguai, à qual se seguiu a travada contra Rosas (1848-52) e a Guerra do Paraguai (1864-70). Por outro lado, o Rio Grande diferenciou-se de outras regiões dinâmicas do país, como o Nordeste açucareiro, nos tempos coloniais, e o complexo cafeeiro do centro-sul, a partir do século XIX, pela importância da produção voltada para o mercado interno, como é o caso dos couros e sobretudo do charque - carne-seca consumida essencialmente nos centros urbanos pela população escrava e os pobres em geral. Ao mesmo tempo, os imigrantes alemães e depois os italianos, que acorreram à província ao longo do século XIX, após uma fase em que tiveram de limitar-se a uma agricultura e a uma criação de subsistência, passaram a fornecer produtos como arroz, banha, milho e trigo às cidades do Rio Grande e de outras regiões do país. Do ponto de vista político, a província destacou-se pelas correntes que defendiam sua autonomia e se ressentiam do que consideravam ser o descaso e as injustiças do poder central. A expressão mais alta da insatisfação foi a Revolução Farroupilha, que se estendeu de 1835 a 1845, lutando por reivindicações federalistas e republicanas. Ainda que a adesão à revolução não fosse total, a Farroupilha tornou-se um dos mitos mais expressivos da identidade gaúcha, evocada todas as vezes que o Rio Grande do Sul emergiu com uma feição própria no cenário nacional. No tocante à constituição de partidos políticos, a província também tinha traços peculiares, pela diferenciação mais clara, no Império, entre o Partido Liberal e o Partido Conservador. Enquanto os conservadores vinculavam-se ao poder central, os liberais levantavam a bandeira do federalismo e da descentralização, com forte apelo entre os estancieiros gaúchos. Dois nomes ganharam relevo entre os chamados liberais históricos: Manuel Luís Osório - o general Osório - e principalmente Gaspar Silveira Martins, estancieiro em Bagé, proprietário de terras no Uruguai, figura carismática com grandes dotes de oratória. Crítico sem meias palavras do reinado de d. Pedro II, tornou-se figura popular entre os jovens, na qualidade de deputado federal, ao defender eleições diretas, responsabilidade ministerial, descentralização da autoridade, plena liberdade de culto e a emancipação dos escravos. Desse programa progressista não se deve deduzir um apego de Silveira Martins às fórmulas democráticas. Se ele afirmava, em suas críticas à monarquia, ser o "governo tudo, o parlamento nada, e o povo mais que nada", era ao mesmo tempo um rígido disciplinador, orgulhoso de conduzir o Partido Liberal gaúcho "como um regimento de Frederico, o Grande". O republicanismo introduziu um elemento novo nas disputas entre liberais e conservadores, nos últimos anos do Império. A rigor, descontadas algumas incipientes tentativas, o movimento chegou tarde ao Rio Grande do Sul: mais de onze anos mediaram entre a fundação do Partido Republicano do Rio de Janeiro, em 1870, e a do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), constituído em fevereiro de 1882. E aí surge outra peculiaridade gaúcha: a forte influência das idéias de Augusto Comte entre os membros do PRR, a exemplo do que ocorreu com movimentos modernizadores, ao mesmo tempo avessos a mobilizações sociais, em vários países da América Latina. Comte (1798-1857), pensador francês discípulo de Saint-Simon, foi a figura central do positivismo. Essa corrente, em oposição ao idealismo da primeira metade do século XIX, ganhou considerável irradiação no mundo ocidental. Sob a influência do grande avanço das ciências naturais na época de sua aparição, o positivismo tratou de aplicar o rigor científico no campo da sociedade e da política. Comte imaginou uma sucessão de ciências que se tornaram "positivas" ao longo da história, partindo das matemáticas até chegar à física social, ou seja, a sociologia, expressão que ele consagrou. À sociologia estaria destinado o papel fundamental de estudar as condições gerais de toda a vida da sociedade e de sua evolução, coroando o edifício científico. Sua concepção evolucionista, do progresso dentro da ordem, sintetizou-se na chamada lei dos três estados, segundo a qual a humanidade teria passado pelo estado teológico, pelo estado metafísico, chegando finalmente às portas do estado positivo. Defensor da incorporação do proletariado à sociedade moderna, pela via de uma legislação protetora, Comte era um adversário do liberalismo e da democracia, considerados doutrinas metafísicas. Sua concepção de poder foi marcada por um nítido elitismo, pretendendo atribuir o comando da sociedade positiva ao poder temporal - industriais e banqueiros - e ao poder espiritual, situado em nível superior, constituído pelos sábios, tendo à sua testa o grão-sacerdote da humanidade. No Brasil, afora sua conhecida penetração no âmbito do Exército, a doutrina positivista só alcançou grande influência, entre as elites civis, no caso do Rio Grande do Sul. Sua figura maior foi Júlio de Castilhos, uma espécie de Robespierre gaúcho, determinado, autoritário e incorruptível. Embora fosse filho de um estancieiro da região serrana, Castilhos teve infância e juventude difíceis, entre oito irmãos, e seu pai morreu quando ele tinha apenas onze anos. Apesar de seus escassos recursos oratórios - um importante trunfo nas condições da época - e da baixa estatura, destacou-se nas páginas de A Federação, jornal republicano do qual foi editor. Por suas idéias e temperamento, Castilhos gerou lealdades inabaláveis e ódios profundos. O positivismo castilhista era uma versão pragmática da ideologia comtiana, instrumentalmente adaptada à realidade gaúcha e brasileira. Defendia a ditadura republicana, sob a forma de um governo em que o Executivo fosse dotado de extensos poderes, assessorado apenas por uma câmara de representantes das atividades profissionais, que votariam os tributos e o orçamento, na linha de "Apelo aos conservadores", ensaio de Augusto Comte. Defendia também a tese da liberdade irrestrita no exercício das profissões, não sujeita à obtenção de diplomas. A Constituição estadual de 14 de julho de 1891, entre outros preceitos, dotou o Executivo de extensos poderes, inclusive legislativos; previu a possibilidade de reeleição; declarou "livre o exercício de todas as profissões de ordem moral, intelectual e industrial"; estendeu aos "simples jornaleiros" as vantagens de que gozavam os funcionários públicos; e estabeleceu uma estrita separação entre Igreja e Estado. Na prática, Castilhos e seus seguidores, apesar da adesão aos princípios comtianos, não seguiram os preceitos do mestre ao atentar seguidamente contra a liberdade de expressão, como demonstra a perseguição encarniçada aos opositores. Nesse e em outros aspectos, "a doutrina científica da política" cedia às realidades da política oligárquica, tratando de garantir a perpétua permanência do PRR na cúpula do poder regional. Na área econômica, em harmonia com a centralidade do Executivo, os positivistas gaúchos defendiam a intervenção do Estado, condicionada ao interesse social, que deveria prevalecer sempre que houvesse conflito com os interesses individuais. Se o intervencionismo na defesa de produtos vitais de exportação - em primeiríssimo lugar o café - foi um dos traços característicos da Primeira República, é certo que a crítica ao laissez-faire, por parte do PRR, teve caráter doutrinário, além de pragmático, bem menos freqüente em outras regiões. Nessa linha, a partir de 1912, o estado do Rio Grande do Sul empreendeu uma intensa atividade que culminaria com a encampação de uma parte da rede ferroviária, assim como dos serviços portuários de cidades como Rio Grande e Porto Alegre, essenciais para incentivar o comércio exterior. No setor financeiro, os positivistas gaúchos defenderam uma política responsável, que deveria traduzir-se em orçamentos equilibrados e no combate à inflação. O último objetivo tinha também razões bastante pragmáticas, tendo em vista o fato de que a alta do custo de vida restringiria a demanda, nos maiores centros urbanos, de bens produzidos no Rio Grande. Por exemplo, a política emissionista de Ruy Barbosa, ministro da Fazenda do primeiro governo republicano, foi fortemente combatida pelos representantes gaúchos no Congresso. Quando foi proclamada a República, o PRR era minoritário na então província do Rio Grande. Embora Castilhos e Assis Brasil, entre outros, tivessem contatos e boas relações com o marechal Deodoro, sua influência na articulação do golpe republicano foi insignificante. Logo após o 15 de novembro, o marechal abriu espaço para o prr ao mandar prender e exilar Silveira Martins, sob a acusação de envolvimento em uma conspiração monárquica. Desse modo, Deodoro favorecia o PRR, mas ao mesmo tempo potencializava as divergências regionais. Os primeiros tempos da República foram marcados por profunda instabilidade política, com uma rápida sucessão de presidentes, até a eleição de Júlio de Castilhos, nas eleições diretas de novembro de 1892. Mas a eleição de Castilhos não estabilizou o quadro político. Ao contrário, agravou os descontentamentos, que chegaram ao ponto de fervura, desembocando na Revolução Federalista de 1893. A revolução foi de uma violência inaudita, caracterizando-se, entre outros horrores, pela degola sumária dos prisioneiros. Ela deixou uma fratura profunda na política rio-grandense, sintetizada na divisão entre chimangos e maragatos. "Chimango" - uma ave de rapina comum no Prata -, ou mais raramente "pica-pau", era a designação pejorativa dada pelos federalistas aos republicanos. Estes, por sua vez, a partir da revolução de 1893, passaram a chamar seus adversários de "maragatos", aparentemente porque uruguaios que acompanharam os rebeldes, a partir da fronteira sul, provinham de um departamento do Uruguai colonizado por espanhóis provenientes de Maragataria, na província de León. Os federalistas se apropriaram desse epíteto, cujo objetivo era mostrar que eles não eram propriamente brasileiros, mas gente da fronteira, e passaram a ostentá-lo com orgulho. A fratura radical, por várias décadas, tem muito a ver com a cultura política da região e com a constituição de famílias políticas de um lado e de outro. Isso não quer dizer que não existissem claras diferenças programáticas e mesmo de base social entre chimangos e maragatos. Os maragatos tinham como corrente fundamental os federalistas, juntando-se a eles dissidentes do prr, cuja figura proeminente era Assis Brasil, fundador do Partido Republicano Democrático (PRD), em 1908. Se o partido não era forte, a figura de Assis Brasil - cunhado de Júlio de Castilhos, a quem se referiu certa vez como um "cínico oportunista" - era, entretanto, muito representativa. Grande estancieiro, culto, cosmopolita, ao contrário dos líderes do prr, Assis Brasil foi um aristocrata liberal. Crítico do castilhismo, defendia a plena representação da cidadania, a garantia de representação das minorias, a eliminação da fraude, a imparcialidade da justiça, a centralidade do Legislativo na elaboração das leis. Ao longo do tempo, passou a sustentar com maior ênfase a necessidade do voto secreto e obrigatório como instrumento essencial da representação. No tocante ao regime político, divergia dos federalistas. Enquanto estes, seguindo a tradição do Império, eram parlamentaristas, Assis Brasil defendia o presidencialismo. Socialmente, os maragatos tiveram sua maior base entre os estancieiros ricos e tradicionais da região da Campanha, situada no sul do estado. Tem-se sugerido também que a maioria dos fundadores do PRR atraía fazendeiros menos privilegiados do norte da província. Na zona colonial, habitada sobretudo por imigrantes, os chimangos tiveram grande influência, pois, ao deter o poder, estavam em condições de colocá-los sob suas asas, concedendo-lhes favores, entre os quais se incluía a concessão de terras. Desse modo, eles reverteram a simpatia pelos maragatos que vinha na esteira dos liberais do Império, defensores da liberdade de culto, tema particularmente sensível aos imigrantes de religião protestante. Nos maiores centros urbanos, os republicanos foram majoritários, entre outros fatores pela influência que a pregação da moralidade administrativa exercia na classe média. Um fato a destacar são os laços estreitos que os republicanos criaram com setores do Exército. Esses laços, acrescidos de uma poderosa brigada militar (força estadual) e ainda dos chamados provisórios - milícias civis, chefiadas pelos caudilhos políticos -, garantiram o domínio do PRR, numa combinação de favores e coerção. [...]