PARTE I PRIMA SCRIPTA 1. UM MISTICISMO SEM DEUSES Tanto as formas mais baixas como as mais elevadas da vida mística se encontram no cerne das religiões - quer das religiões emergentes, que se criam em meio a crises de êxtase, estranhos enlevos e exaltações coletivas, quer das religiões já constituídas - e se apresentam então como protesto da consciência religiosa contra o formalismo antiquado, a rotina eclesiástica e as dogmáticas mortas. Essa união do misticismo com a religião é tão estreita que quando se fala em misticismo sempre se subentende o qualificativo religioso. Não será possível, no entanto, descobrir um misticismo sem deuses e alheio a toda e qualquer vida religiosa? Ao colocar essa pergunta tomamos, bem entendido, o termo místico no seu sentido rigoroso, tradicional, e não no sentido em que é comumente, demasiadamente empregado, quando se fala, por exemplo, em mística do poder, mística da caridade, mística da ciência. No sentido próprio do termo, o misticismo é uma transformação da personalidade, que se esvazia de seu ser próprio, de seus instintos, de suas tendências distintivas, para de certa forma sair de si mesma e comungar com o objeto de sua adoração. Essa experiência vivida pode igualmente se traduzir em termos intelectuais: se todo conhecimento supõe uma relação entre um sujeito e um objeto, o sujeito conhecedor e o objeto conhecido, o misticismo irá eliminar o primeiro desses dois termos; o sujeito que contempla se identifica plena e inteiramente com a coisa contemplada. Mas então esse fenômeno já não aparece a priori como um fenômeno essencialmente religioso. Pois não é só com os deuses que podemos, mediante um longo esforço de êxtase e oração, nos identificar. E iremos nos deparar com essa disposição para sair de dentro de nós mesmos, para nos comunicar misticamente com aquilo que nos cerca em quase todas as manifestações da atividade humana. É o que afirma, por exemplo, Maurice Blondel, quando escreve nos Cahiers de la Nouvelle Journée: Se um músico de talento (conforme o testemunho de Mozart) ouve simultaneamente uma sinfonia inteira na idéia soberana que constitui sua alma única; se, para um matemático como Descartes, o uso prolongado das revisões de conjunto e das enumerações completas liberta o espírito e o conduz a intuições simples que abrangem num só olhar uma cadeia de demonstrações; se o filósofo encontra a recompensa de uma vida de labuta na posse, afinal conquistada e familiar, de um pensamento já entrevisto e mais fecundo pelo fato de ser mais uno; se o homem que meditou e praticou dia e noite a doce lei do Senhor identificou-se com ela a ponto de trazê-la dentro de si feito um novo sentido dotado de delicadíssimas antenas, não será tudo isso - que é de ordem natural, de ordem intelectual, de ordem moral - acaso a expressão desse conhecimento pela conaturalidade? Não há, portanto, oposição entre os domínios do natural e do sobrenatural, e passa-se, através de transições imperceptíveis, de um para o outro, de Mozart e Descartes para santa Teresa e são João da Cruz. Encontraríamos uma tese análoga a essa no livro de Delacroix sobre Les Grands Mystiques chrétiens [Os grandes místicos cristãos]. A intuição mística não é, para ele, um mísero empobrecimento da consciência, uma espécie de encaminhamento para a estupidez, mas, ao contrário, uma magnífica exaltação do ser, o sentimento de uma plenitude de vida que nos eleva acima deste mundo terra-a-terra e tão cotidiano! Conseqüentemente, ela não difere, para os santos do cristianismo, da intuição dos artistas ou dos sábios "que um dia sentiram correr dentro de si a vida universal". O misticismo, para Delacroix, não é uma anomalia, uma raridade, uma excentricidade esquisita, e sim uma forma freqüente de espírito, "uma das reações do espírito humano". Mas nem todos os filósofos se alinham com essa opinião. E visto que citei, a favor da generalidade do temperamento místico, um cientista cristão e um cientista leigo, deixemos intervir, em favor da opinião contrária, um teólogo e um psiquiatra que declara não possuir, ele próprio, nenhuma convicção religiosa. O reverendo padre Poulain até concede que existem êxtases leigos no sentido amplo do termo, ou seja, no fundo, ataques catalépticos, sinais de debilidade mental, do que seríamos facilmente convencidos por uma visita ao Salpêtrière. Se concedermos, porém, à palavra êxtase toda a sua riqueza psicológica, então não existem êxtases naturais. Arquimedes, meditando em seu jardim no momento da tomada de Siracusa, oferece um excelente exemplo de atenção concentrada e intensa; mas não um exemplo de êxtase. O Sócrates platônico que teria ficado 24 horas imóvel no campo de batalha durante um cerco, absorto em suas reflexões, não passa de um mito literário, de uma página de biografia romanceada. Tirante as crises nervosas, só existe o misticismo religioso. Ora, curiosamente, Pierre Janet não está longe de partilhar essa mesma opinião. Ele acreditou por muito tempo, segundo reconheceu, que devia haver êxtases leigos, tão claramente caracterizados quanto os outros; estudou os textos de Plotino, as iluminações de Nietzsche; foi atrás de Rousseau, descobrindo a sua filosofia no bosque de Vincennes, em meio a um acesso de choro e a uma exaltação crescente; deteve-se principalmente em Martial, um doente do La Salpêtrière que se julgava um grande poeta porque compunha os seus versos num estado misterioso e que não parava de falar em revelações externas. Chegou a encontrar, nesses homens todos, algumas características do pensamento e da vida mística, como, por exemplo, o esmorecimento e o desinteresse pela ação, ou ainda a história continuada, eternamente ruminada dentro do pensamento, ou enfim um sentimento de certeza absoluta, de alegria transbordante que persiste mesmo após as crises. Esses êxtases, porém, além de serem raros, são sempre incompletos; faltam-lhes, para que façam realmente jus ao seu nome, esses fenômenos capitais de imobilidade cadavérica, de enlevo físico. Não existe, portanto, para esse psiquiatra, misticismo leigo. Tanto que o dr. Flournoy pôde citar o caso de um doente, totalmente irreligioso, que caíra em êxtase logo após uma grande fadiga: ora, esse doente, ao despertar, não conseguindo situar aquele êxtase dentro da sua irreligião, acabou se convertendo a fim de poder explicar a si mesmo aquele misterioso sentimento de presença que, por um momento, o invadira. Assim, para alguns, o misticismo é fato bastante genérico. Para outros, é fato puramente religioso. Vamos tentar, por nossa vez, retomar o problema. [...]