Trecho do livro BRÁS CUBAS EM TRÊS VERSÕES

BRÁS CUBAS EM TRÊS VERSÕES Nos sens n'aperçoivent rien d'extrême. Trop de bruit nous assourdit, trop de lumière nous éblouit; trop de distance et trop de proximité empêchent la vue. Pascal Com a criação de Brás Cubas, Machado de Assis passou a lidar com o foco narrativo de primeira pessoa. O estilo de memorialista poderia ser interpretado como um procedimento retórico escolhido para conferir verossimilhança ao relato, supondo-se que o narrador, ao assumir-se como sujeito do enunciado, seja a testemunha mais idônea para contar a sua própria história. Em princípio, o eu fala só do que viu e do que sabe ou lhe parece e, nesse sentido, a sua percepção seria mais realista que a do narrador onisciente que afeta conhecer tudo o que se passa fora e dentro das personagens. Na construção de Brás Cubas, porém, essa conquista de certo grau de verossimilhança é bifocal, pois mira dois horizontes diferentes. De um lado, fala o narrador que atesta, a cada lance, a sua presença física aos acontecimentos em que esteve envolvido, e cuja interpretação é confiada ao seu olhar sem a presunção da certeza universal suposta no historiador em terceira pessoa. De outro lado, Machado engendrou a ficção do defunto autor, um expediente aparentemente irrealista escolhido para facultar a exibição - até o limite do descaramento - dos sentimentos todos de um ego que a condição post-mortem permitiria desnudar. Junto ao verossímil da testemunha ocular haveria um lance de inverossimilhança? Na verdade, um falso inverossímil, porque se faz autoanálise joco-séria. É a verdade do humor que, sob as aparências da morte, é vida pensada. As conseqüências desse duplo jogo de presença e distanciamento do eu são tangíveis a cada passo e acabaram definindo a dicção singular das Memórias póstumas de Brás Cubas. Reiteração do eu vivo feita em regime de distância pelo eu defunto. Testemunho do passado e ponto de vista do homem já "desafrontado da brevidade do século" pedem interpretação que dê conta das razões do procedimento. O propósito deste ensaio é reconsiderar pelo menos três versões dadas a este bizarro narrador. Relembrar o enredo é sempre um bom começo. Brás conta a sua história trivial de menino mimado de uma família abastada e conservadora com fumos de aristocracia - um Cubas! O caráter estragado desde a infância e a adolescência, os estudos de Direito feitos à matroca em Coimbra, as viagens de recreio pela velha Europa, as aventuras eróticas precoces, uma paixão adulterina tecida de exaltações, tédios e saciedade, a sede de nomeada, que vai do projeto malogrado de inventar um emplasto anti-hipocondríaco à conquista de uma cadeira de deputado, enfim a solidão da velhice... uma trajetória movimentada mas banal enquanto típica de um certo segmento da burguesia no lapso da história do Brasil que cobre o primeiro e parte do segundo reinado. Um arco longo da história nacional está indiretamente evocado nesse itinerário. O discurso representativo em si, peculiar ao texto documental, não é manifestamente a mira daquelas páginas. O que marca a singularidade das Memórias póstumas, o seu salto qualitativo, é o modo pelo qual a presença do narrador junto aos fatos dobra-se em autoconsciência. A análise psicológica e moral é favorecida pela distância que medeia entre o testemunho direto e o gesto reflexivo potenciado pelo expediente do defunto autor. "Na vida, o olhar da opinião, o contraste de interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência. [...] Mas na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade!" O narrador concebe a paisagem social do seu tempo de uma forma que adensa o regime testemunhal: ele surpreende-se a si próprio como ator e espectador no processo das relações de força entre os sujeitos. Não há neste Machado maduro um espelho do mundo dissociado do olhar pensativo, como não há desenho de um quadro sem a projeção de alguma perspectiva. Essa constatação remete ao problema crucial do narrador machadiano, que se vale de um tipo socialmente localizado e datado sem deixar de descer à análise mais geral dos motivos do "eu detestável". Opor Machado brasileiro e Machado universal é separar arbitrariamente o quadro e a perspectiva, a imagem especular e a autoconsciência. Os extremos costumam ser fáceis de explorar: ou o Machado cronista da sociedade fluminense, curioso dos faits divers do jornal, comentador galhofeiro de notícias do jogo político circunstancial; ou o Machado explorador dos abismos da vacuidade humana. Cada posição-limite, ao descartar o seu oposto complementar, emperra o discurso da compreensão e alimenta polêmicas equivocadas. O OUTRO FORA E DENTRO DO EU A leitura de alguns episódios das Memórias póstumas oferece pistas para contemplar os dois lugares do eu narrativo: a plataforma da qual decolou e o horizonte para o qual dirige a sua mente. Em outras palavras: a matéria lembrada e a sua interpretação. O capítulo "Coxa de nascença" e os três que o seguem, "Bem-aventurados os que não descem", "A uma alma sensível" e "O caminho de Damasco", relatam um encontro em que vem ao primeiro plano a dura realidade de uma assimetria social e natural. Brás, rico e saudável, topa com Eugênia, filha bastarda de um antigo comensal dos Cubas, e coxa de nascença. Junto com a diferença de classe, o estigma no corpo. Eugênia mancava ao passo que Brás esplendia em juventude, todo garbo e presunção. O esperado acontece. Eugênia apaixona-se pelo rapaz e dá-lhe o seu primeiro beijo de adolescente tímida mas confiante. As duas marcas da assimetria, pobre e coxa, vão pesar, indefectíveis, provocando o fecho abrupto desse encontro sem amanhã. Brás pondera seus "riscos" e comunica a Eugênia a sua partida iminente, fazendo-o por meio de palavrinhas doces mas frias, de cuja hipocrisia ele tem plena consciência. Personagem e autoanalista, Brás consegue ao mesmo tempo mostrar-se qual foi e qual se vê e foi visto: leviano, satisfeito da sua superioridade e tentado a desfrutá-la, intimamente desprezador da mocinha bonita mas filha espúria e agravada por um defeito físico. No momento de lembrar o episódio, porém, a consciência lúcida do defunto autor desvela o sentido cruel dos seus atos e os julga com um critério de humanidade que o rapaz fútil e preconceituoso não quisera assumir: "Pobre Eugênia! Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos de 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não poderias mentir ao teu sangue, à tua origem..." Brás reporta-se a uma passagem da infância em que surpreendera o dr. Vilaça a namorar às escondidas dona Eusébia: desses encontros nascera Eugênia, a flor da moita. O trecho não se esgota no contraste social e existencial entre Brás e Eugênia. O eu que narra o acontecido não está só. Presume que terá algum leitor ou leitora e pressente que esse outro, dotado de "alma sensível", poderá censurá-lo pelo seu cinismo - palavra forte, mas dita com todas as letras. É deste outro imaginado e virtual que vem o juízo ético, mas é o eu narrador que o desentranha e o invoca e obriga-se a escutá-lo e a transmitir-nos a sua voz. Brás compõe um diálogo com a alma sensível do leitor que o exproba. E o mesmo Brás, que dera lugar à consciência universalizante respeitosa do outro, entra a defender-se, atenua a culpa e alega que, afinal, não tinha sido cínico: simplesmente, fora homem. "Eu fui homem." O que dá ocasião ao defunto autor de descrever a condição contraditória da sua alma: mistura de bem e mal, "barafunda de coisas e pessoas", enfim o pandemonium que é ser homem. A passagem é exemplar como salto universalizante, agora já não mais em termos de ética do respeito, mas em regime de justificação psicológica, que se quer realista. A regra moral induzida a partir do outro não coincide com a interpretação do passado a partir do eu. O interesse torce o conhecimento. A constatação vem de longe, está em Pascal e nos moralistas seis-setecentistas lidos e amados pelo criador de Brás Cubas. O processo das relações entre o eu e o outro (o qual está fora e está dentro do eu) não se limita à tensão entre o narrador e a alma sensível do leitor. Há Eugênia em carne e osso diante de Brás. Como a mocinha cândida e apaixonada vai comportar-se ao perceber com seus "olhos tão lúcidos" que Brás mente, que Brás jamais a desposaria? "Uma mulher coxa!" - era o pensamento dele, que ela cedo adivinhou. Tal como ocorre com personagens femininas que já encontramos nos romances da primeira fase (Helena e Estela) e em Casa velha (Lalau), Eugênia responde com altivez ao ferrete da discriminação, "ereta, fria e muda", digna em sua compostura antes do encontro amoroso e, com mais razões, na hora crua do desengano. Eugênia é o outro irredutível à pura tipicidade com que Brás, enquanto mero tipo, a olhara e a rebaixara. Machado sabia lidar com o mesmo e o diferente, o tipo e a pessoa. O fato é que já nos seus primeiros romances nem sempre a consciência da assimetria social gerava comportamentos assemelhados. Helena será o oposto de Guiomar. Estela não concorrerá astutamente com Iaiá Garcia na luta pela conquista do homem rico e desejado. Helena, Estela e Lalau mal toleram e afinal rejeitam a humilhação do favor, ao passo que Guiomar e Iaiá driblam e vencem ambiciosamente os mecanismos do mesmo favor. São as reações diversas ao destino social que tornam viva e concreta a galeria dos caracteres femininos concebidos pelo romancista. Há boas razões para supor que o Machado da primeira fase tenha sido ambivalente em relação ao paternalismo, regime protetor mas humilhante, pois requer dos dependentes uma alta dose de esperteza e hipocrisia. Quanto aos dignos, viverão à margem ou perecerão. Fixemos ainda uma vez a atenção neste outro, Eugênia, como figura introjetada na consciência de Brás. Imagem do desejo que o preconceito impediu que se transformasse em amor, Eugênia provoca, pela mediação inesperada do leitor de alma sensível, a autoanálise defensiva de Brás. A voz do superego assim mascarado censurou-o chamando-o cínico; logo, o eu de Brás precisou excogitar um argumento racionalizador que o justificasse; no caso, foi a alegação do caráter genericamente humano da sua conduta. No plano retórico, a racionalização funciona valendo-se também da velha praxe de alinhar os contrastes fatais de que seria feito o cérebro humano, agora comparado a um tablado, "em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro e austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos, as bufonerias, um pandemonium, alma sensível, uma barafunda de coisas e pessoas...". O ato foi narrado, a culpa é apontada com veemência pelo interlocutor virtual, mas depois é atenuada pelo discurso universalizante: "E eu fui homem". Mas o que é "ser homem" para o defunto autor? Uma mistura incongruente - um pandemônio? Sem dúvida, foi bem mais fácil para Brás tentar convencer o leitor hipotético do que enfrentar o olhar reto de Eugênia. Para tanto, em vez de recorrer ao expediente de borboletear com imagens e citações escapando ao desafio da consciência reflexiva, Brás teve de arremedar a linguagem retórica da tragédia para dar conta dos sentimentos contraditórios que por breves momentos lhe inspirou a moça apaixonada, mas coxa: a piedade e o terror. Glosando os Atos dos Apóstolos na passagem da conversão de Saulo a caminho de Damasco, Brás diz ter ouvido uma voz misteriosa que saía de si mesmo, e cuja origem era dupla, "a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la. Uma mulher coxa!". O terror, que no caso melhor se chamaria covardia, logo venceu a piedade, como seria de prever em um caráter como o de Brás, tangido pelo princípio do prazer e pela correlata aversão a praticar qualquer sacrifício que a consciência lhe pudesse exigir. Ainda uma vez, essa entrega previsível do sujeito à pura autoconservação (aquele cinismo de que o acusara a alma sensível do leitor) precisa afivelar provisoriamente a máscara do arrependimento. Brás profere juras de amor invocando todos os santos do céu para atenuar a decisão da partida, "tudo hipérboles frias que ela escutou sem dizer nada". Hipocrisia de ator (é o sentido do grego hypokritikés) que se sabe pífio e cuja retórica da exageração congela em vez de aquecer o interlocutor. A máscara faz-se, porém, necessária na medida em que permite ainda estirar um último fiapo de diálogo: - Acredita-me? - perguntei eu, no fim. - Não, e digo-lhe que faz bem. Por um átimo inverte-se, no plano moral, a situação de assimetria. O olhar que Eugênia lança a Brás "não foi já de súplica, senão de império". Império de flor da moita, bastarda, pobre e coxa de nascença? Na economia implacável do romance o olhar imperioso de Eugênia não a pouparia do destino de acabar os seus dias em um cortiço, onde Brás irá reencontrá-la encarando-o sempre com a mesma seca dignidade. De todo modo, aquele olhar imperioso não mudaria a vida do jovem Brás, que desceria da Tijuca na manhã seguinte, "um pouco amargurado, outro pouco satisfeito". Qual é o papel do episódio na teia de significações das Memórias? Parece-me que um dos seus alvos é o de configurar de modo bivalente o eu do narrador, fazendo-o capaz não só de praticar vilezas, como desfrutador que foi desde a infância, mas de sobrepensá-las e dizê-las promovendo o seu julgamento pelo outro, aquele leitor virtual que penetra como uma cunha na sua consciência. Ao desencadear esse processo, o narrador póstumo não se engana nem se propõe enganar-nos. Ao contrário do embusteiro, ele deixa-se ver. A transparência, flagrada no relance do olhar honesto do outro, não converterá o nosso Brás; mas revela a natureza do seu caráter, que é frívolo na descontinuidade dos seus pensamentos, é constante até a morte na prática do egoísmo indefectível, mas é capaz de abrir frestas de luz no subsolo da sua consciência - a luz crua do moralismo pessimista ou apenas cético, limite ideológico do defunto autor. Na justificativa que o narrador arquiteta para responder ao leitor sensível, vê-se que ele adota o recurso do termo universal - homem -, qualificando-se a si mesmo como ser confuso e, mais do que confuso, contraditório. O problema hermenêutico está em aferir o grau de adesão ou de rejeição do autor ao seu próprio discurso existencial. Se a interpretação pender resolutamente para o lado da sátira tipológica, a resposta será unívoca: o autor denuncia a racionalização que o tipo social faz da própria conduta quando a investe com o atributo geral de humano. A leitura alternativa, igualmente plausível, é a admissão, por parte do autor, da vigência de sentimentos contraditórios em todos os homens (isto é, em cada homem), com a predominância dos impulsos egóticos distribuídos por todas as classes. Ambas as hipóteses ganham em ser relativizadas mutuamente. A primeira, sociológica, concederá à segunda a evidência empírica do altíssimo grau de generalização dos comportamentos centrados na autoconservação que marcaram a história do gênero humano desde tempos remotos. A segunda, por sua vez, concederá à leitura tipológica o fato inegável de que, nas situações de assimetria social, o egoísmo vencedor costuma estar do lado do rico e do poderoso. O autor das Memórias póstumas se compraz nesse jogo relativizador, boca que morde e sopra, ora acusando em chave de sátira local, ora interpretando no registro de uma psicologia "realista" universalizada; em outras palavras, ora objetivando sarcasticamente o narrador-protagonista Brás Cubas, ora identificando-se com este em uma simbiose de crítica e autocrítica às vezes implacável, às vezes concessiva e condescendente. A dura acusação se atenua, o autor afinal parece tudo compreender e a tudo resignar-se, como o fará no seu último romance o Conselheiro Aires com a sua arte diplomática de descobrir e encobrir exposta em memórias quase póstumas. A autoanálise desencantada desloca então o discurso satírico para o universo complexo do humor. O episódio da flor da moita não é o único passo em que o intérprete se vê diante da mesma encruzilhada: ou sátira sem perdão nem complacência, ou enésima constatação do "barro humano". A primeira estrada, se percorrida sem desvios, leva necessariamente à pergunta pela ideologia de Machado de Assis. Progressismo democrático assumido versus conformismo liberal-burguês? Futuro versus passado? Responder afirmativamente à questão significa creditar a Machado maduro uma inabalável coerência ideológica, uma fé reiterada nos ideais das Luzes e, por extensão, da modernidade. Na esteira dessa ideologia, a alma sensível do leitor virtual reprova o cinismo de Brás, a figura de Eugênia revela a hipocrisia do rapaz, e a passagem assumiria, no seu todo, o significado preciso de uma denúncia. Admissível pontualmente, essa leitura é relativizada pelo contexto interno das Memórias. As evidências da atribuição dos comportamentos às forças cegas do egoísmo capaz de todas as vilanias e até mesmo de crueldades gratuitas não permitem que a primeira alternativa, tão simpática no seu ethos progressista, seja considerada absoluta, sem nenhuma dúvida ou reserva. O realismo satírico de âmbito local é atravessado por um segundo e mais acerbo realismo que enforma o primeiro dando-lhe uma dimensão ainda mais desolada e desoladora. As reações de Brás ao acaso que irrompe no cotidiano levam água ao moinho de uma leitura cética da História, alterando o teor cortante de denúncia pontual que o critério ideológico stricto sensu tende a propiciar. O dilema do intérprete assume, às vezes, o estatuto de enigma: culpa individual de origem psicossocial ou força do destino, astúcia do "gênio da espécie"? Libelo ou dura constatação? Eugênia aparecerá ainda uma vez no horizonte das reflexões do defunto autor. Este divaga sobre o grande prazer que é descalçar botas apertadas, "felicidade barata" que a vida nos concede ao pungir-nos com a fome só para dar-nos maior gozo na hora do alimento, e daí... o narrador póstumo revê "a aleijadinha perder-se no horizonte do pretérito". Brás vivo logo a arredara do coração, que "não tardaria também a descalçar as suas botas", mas Brás morto, isto é, homem capaz de pensar o vivido, não deixará de falar àquela imagem indelével: "Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca; foste aí pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era muito necessária ao século. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear a tragédia humana". O leitor sai com o sentimento de que, em certas passagens, o mundo das idéias e valores do defunto autor não só conserva, pela memória, como supera, pela reflexão, o pequeno mundo do jovem Brás. Nos capítulos da borboleta preta enxotada e morta, do almocreve e do embrulho misterioso achado na rua, a tônica recai no poder irracional do arbítrio, da mesquinharia ou da falta de escrúpulo. Nos três casos prevalece uma conjunção negativa de acaso objetivo e arbítrio subjetivo: nos três, a condição prévia de Brás homem abastado não será determinante, causa das causas, mas coadjuvante. Irrompe nos três o eu detestável de pascaliana memória, opaco, alheio ou avesso ao outro, seja este um inseto, um trabalhador anônimo ou simplesmente um desconhecido sem rosto que perdeu um maço de notas. A rejeição desse outro é irritadiça no caso da borboleta, mesquinha no encontro com o almocreve, especiosa no achado do embrulho; mas em todos os episódios faz-se tanto mais cômoda para o sujeito quanto menos testemunhada pela presença de um olhar perspicaz como era o de Eugênia. É sentença de La Rochefoucauld: "Esquecemos facilmente nossas faltas quando só nós as conhecemos". Topando em um embrulho na praia, Brás sente curiosidade de saber o que contém. Como primeiro cuidado, "relanceei os olhos em volta de mim, a praia estava deserta: ao longe uns meninos brincavam, - um pescador curava as redes ainda mais longe -, ninguém que pudesse ver a minha ação; inclinei-me, apanhei o embrulho e segui". Ninguém que pudesse ver a minha ação: a ênfase recai no receio de ser visto, o que já é pressentimento de ação culposa, ou assim considerada pelo outro, que, mesmo invisível, está à espreita e penetra o eu como potencial censura. Temendo que pudesse tratar-se de trote de moleques, sobreveio-lhe o impulso de jogar fora o embrulho, "mas apalpei-o e rejeitei a idéia". Pois o embrulho tinha certa consistência, prometia ser "alguma coisa"... Levando-o para casa, persistiu no recesso do seu gabinete o temor da pulha: embora não aparecesse ali "nenhuma testemunha externa", havia sempre o fantasma do garoto caçoísta que preparara talvez um engodo e poderia "assobiar, guinchar, grunhir, patear, apupar, cacarejar, fazer o diabo, se me visse abrir o embrulho e achar dentro uma dúzia de lenços velhos ou duas dúzias de goiabas podres". O gesto do outro é aqui teatralizado - platéia ausente mas presente zombando do logro projetado em um palco secreto mas imaginariamente público. Afinal, o embrulho foi aberto. Era dinheiro, nada menos que cinco contos de réis em boas notas e moedas. Chega a hora do jantar e os olhos dos moleques da casa pareciam falar uns com os outros como se tivessem surpreendido o sinhô contando dinheiro. Mas os receios eram infundados. Constatando que nada fora visto, Brás voltou ao escritório, examinou novamente o dinheiro, "e ri-me dos meus cuidados materiais a respeito de cinco contos - eu, que era abastado". O episódio do embrulho não vem solto. O acaso já comparecera dias antes quando Brás achara uma moeda de meia dobra e a entregara ao chefe de polícia para que este descobrisse o legítimo dono. A ação lhe valera fartos elogios dos conhecidos e algum respiro da consciência, na ocasião um tantinho opressa pelo início do seu caso adulterino com Virgília. O fato é que a dobra fora logo devolvida, ato acompanhado de mil e um escrúpulos em torno do grande mal que é reter o bem alheio. Quanto aos cinco contos, porém, a consciência não o culpava de nada. Ao contrário, tê-los achado tinha sido, pensando bem, sorte grande e merecida, seguramente um benefício da Providência. E esperando dar-lhes algum destino um dia, talvez com alguma boa ação, Brás foi depositá-los no Banco do Brasil. Tudo se fez sem testemunhas. A passagem da borboleta preta é mais breve. A borboleta pousara no retrato do pai de Brás. Foi primeiro enxotada, depois abatida com uma toalha por "um repelão dos nervos". A consciência do mal feito, da inútil brutalidade, logo se aplacou ponderando que, para a borboleta, seria melhor ter nascido azul. Solitário, o sujeito dribla e anestesia rapidamente o sentimento de culpa. A violência do arbítrio exerce-se na relação do homem com a natureza na medida em que esta é inerme. A recompensa devida ao almocreve, que o salvara de um desastre fatal, foi minguando na mente de Brás, que a baixa de três moedas de ouro a um cruzado de prata, e mesmo esta simples pratinha pareceu-lhe uma demasia, inspirando remorsos ao moço rico. Nenhuma testemunha, de novo, a não ser os agradecimentos do almocreve, tão efusivos que reforçaram em Brás o sentimento desconfortável de que tinha sido pródigo na recompensa. A ingratidão é aqui estercada pela sovinice - "eu, que era abastado". A história do embrulho é toda permeada de fantasmas dos olhares dos outros, receios esconjurados tão-só pela certeza de que eram vãos. A reflexão final merece comentário. Brás riu de si mesmo, pois, sendo endinheirado, não deveriam ter-lhe dado tantos cuidados aqueles cinco contos de réis. Perguntará o leitor: por acaso um rico não pode ser avaro? Pois há ricos avaros entre parentes e conhecidos de Brás, começando pelo Cotrim, o próspero cunhado. E há o velho Viegas, amigo da família, cuja herança é objeto da cobiça de Virgília, também ela abonada... De Brás sabe-se que é gastão consigo e dissipado com as amantes, de Marcela a Virgília. A mesquinharia ocorre na sua relação com o pobre ou o desconhecido, e o fato de o narrador pontuar incisivamente as obsessões sovinas que reconhece em si próprio dá o que pensar. O que temos? Um traço peculiar ao rentista desocupado? Parece que não precisamente. A avareza, enquanto potencia o egoísmo e leva a extremos o desassossego da autoconservação, pode obcecar tanto operosos como desocupados; em se tratando de ricos, como é o caso de Brás, ela torna-se particularmente ridícula, objeto de autoanálise humorística: "E ri-me dos meus cuidados materiais a respeito de cinco contos - eu, que era abastado". A autoconsciência é a cunha que dialetiza o tipo, conservando-o e superando-o. O fato de a autoconsciência do ridículo exprimir-se na voz do protagonista ainda vivo reforça a hipótese de que o narrador se constitua dentro do autor, passado submetido ao presente, memória trabalhada pela consciência, uma das versões possíveis de Brás Cubas que me proponho examinar adiante. O discurso confessional arrisca-se a expor, a todo momento, a labilidade moral do sujeito. Daí, a alternância ou mescla de auto-acusações e álibis de que se tecem os diálogos do memorialista Brás com o leitor virtual que está fora e dentro dele. Terei agido mal, é verdade, mas, afinal, o barro é a matéria-prima de todos os filhos de Adão. Leia-se neste último contexto o apelo que o narrador dirige ao leitor ao relembrar o adeus definitivo de Virgília. Brás declara que sentira alívio em vez de cair em grande desespero. Uma vez mais, o superego é solicitado a moderar as suas possíveis censuras e baixar o tom dos preceitos de moral: "Não se irrite o leitor com essa confissão". O fato é que um excelente almoço no Hotel Pharoux enterrara "magnificamente" o seu amor, aliás os seus amores - é o que o mesmo leitor saberá, "realidade pura", diz Brás, versus o "romanesco" dos que esperariam do protagonista a expressão de profundos sentimentos. De novo, temos realismo em dois níveis: o que diz a "realidade pura" dos atos e fatos em regime denotativo, e o que a interpreta e a conota para melhor julgá-la ou justificá-la. No capítulo "Compromisso", a dualidade se faz patente. Brás (vivo) fala de um acordo ou compromisso entre a piedade e o egoísmo pelo qual a consciência abonava a sua decisão de ir ter com Virgília depois de uma cena de arrufo. Mas o defunto autor corrige a interpretação autocomplacente do narrador: "Agora, que isto escrevo, quer-me parecer que o compromisso era uma burla, que essa piedade era ainda uma forma de egoísmo, e que a resolução de ir consolar Virgília não passava de uma sugestão de meu próprio padecimento". O autor narra as manhas de um tipo social, aquele Brás que ele foi, enquanto vivo; e em baixo contínuo profere o seu julgamento póstumo, pois quem fala é o Brás defunto que, agora, ele é. O conhecedor de si mesmo transforma-se em castigador de si mesmo - fórmula cara a Nietzsche que Augusto Meyer aplicou ao narrador machadiano.