Trecho do livro HISTÓRIA. FICÇÃO. LITERATURA

1. A HISTORIOGRAFIA NASCENTE "[...] As nascentes são insondáveis" (Heródoto, Histórias, II, 28) "[...] Das Begreifen des Menschen faßt nur die Mitte, nicht den Anfang, nicht das Ende" ("A compreensão humana apreende apenas o meio, não o começo nem o fim") (Gustav Droysen, Historik: 1882, 30) 1. A ESCRITA DA HISTÓRIA DO PONTO DE VISTA DE UM ALIENÍGENA De um duplo ponto de vista, sou eu o alienígena. Desde logo porque não me interrogo sobre a história como historiador ou, como nos casos clássicos de Hegel e Collingwood, por ser um filósofo. Importa-me a história como estudioso da literatura. Mais precisamente, por me intrigar a falta de investimento teórico suficiente na diferença entre fact and fiction (cf. Finley, M. I.: 1985, 18). O problema talvez nem sequer tivesse maior impacto sobre mim se me mantivesse de acordo com a sinonímia entre literatura e ficção. A investigação que ora se inicia parte do suposto de que a literatura tem fronteiras muito mais fluidas que a ficção. Se, do ponto de vista de seus respectivos princípios de organização, história e ficção são formações discursivas diferenciadas, o problema se aguça quando tratamos não de dois, mas de três termos. Em suma, é como teórico da literatura que me ponho a questão da escrita da história. Eis a primeira marca do estranho no ninho aqui presente. Ela se torna mais embaraçosa quando sou obrigado a reconhecer a segunda marca: não sei grego, embora tenha escolhido tratar de historiadores gregos. Sempre considerei saudável a regra de não tratar de autores que não pudesse ler no original. Sou levado a desrespeitá-la porque a presença, na tradição ocidental, de Heródoto e Tucídides os torna indispensáveis à indagação que me propus. Prescindir deles porque não posso apreciá-los em sua formulação original equivaleria a dar um tratamento sofístico às epígrafes escolhidas: poderia dispensá-los porque as nascentes do Nilo são insondáveis e temos de nos contentar com o que está entre o começo e o fim. Mas Heródoto e Tucídides não são o princípio da escrita da história; são apenas os primeiros historiadores de quem possuímos os textos integrais. Tornam-se os primeiros com os quais começa a questão que nos perturba: por que não os considerar pertencentes à mesma linhagem homérica? Bastaria saber que eles não queriam ser assim figurados, se a razão de sua recusa - falar não de acordo com a Musa, mas a partir das investigações que reuniram ou do que viram - veio a ser constantemente contestada? Por que então não considerar o questionamento de um e outro como indício de pertencerem ao mesmo campo? Mas qual campo, o da literatura ou o da ficção? A solução fácil jogaria fora a criança com a água do banho. 2. SINTOMAS DO PROBLEMA No livro que publicou pouco antes da morte, o emérito historiador inglês M. I. Finley acusava seus colegas de se recusarem a reconhecer que a oralidade dominante no século V a.C. criava o problema insolúvel da ausência de suficientes fontes confiáveis: "Partimos da premissa errada de supor que os gregos e os romanos consideravam o estudo e a escrita da história essencialmente como fazemos" (Finley, M. I.: 1985, 14). Com a extrema sinceridade dos que sentem a morte próxima, Finley considerava a impropriedade da concepção de história que se elaborara desde finais do século XVII, com sua ênfase no confronto das fontes e na verificação de sua autenticidade, a qual não era minorada pelos achados arqueológicos, pois estes, ainda que se acrescentem às fontes escritas, não fornecem "um esquema conceitual teoricamente fundamentado" (id., 18). A justa advertência nos fez pensar. Não deveríamos nos restringir àqueles que, de antemão, concordam com a observação de Finley? Mas se o fizéssemos não retrataríamos o estado atual dos estudos sobre a historiografia grega e, em conseqüência, não nos habilitaríamos a levar adiante nossa questão particularizada. Preferimos uma solução intermediária: partir de abordagens conformes ao padrão mais comum e então apontar para duas (C. Meier e F. Hartog) excepcionais. Aquelas indicarão o tom dominante, de que estas divergirão, embora aqui não tratadas detalhadamente. Comecemos por três abordagens recentes sobre a relação entre historiadores e poetas, como amostragem da reflexão sobre a questão, por especialistas em história antiga. São eles K. Dover, Simon Hornblower e J. L. Moles. Procurar-se-á por eles esboçar o horizonte da questão. O artigo do erudito inglês Kenneth J. Dover é sintomático dos conflitos interpretativos atuais. Referindo-se a uma tradição que se estende desde Dionísio de Halicarnasso, passa pelos comentadores medievais e se prolonga além do Renascimento, Dover observa a diferença de tratamento conferido a historiadores e não-historiadores: [...] Quando se trata de estudar um autor que não é um historiógrafo, os historiógrafos são tratados como autoridades e seus enunciados como dados rigorosos (hard data); mas quando o crítico ou o erudito se volta para uma obra historiográfica, trata-a como completa e evidente (self-contained and self-explanatory). (Dover, K. J.: 1983, 56) A relevância da distinção está em que os "dados rigorosos" concernem a questões gramaticais, lexicais e estilísticas, ao passo que a pergunta "que espécie de escritor era ele" (i. e., o historiador) não era considerada. O descaso pela especificidade da escrita da história, agravado pela relevância que a retórica alcançaria, sobretudo entre os romanos, a partir do século IV a.C., levaria Flávio Josefo, no século I d.C., a escrever: "Perderia meu tempo por uma ninharia se fingisse ensinar aos gregos aquilo que eles sabem melhor do que eu", pois seus próprios autores se acusam mutuamente por suas incorreções e mentiras, e todos, depois de Timeu, "a Heródoto. [...] E não só, o próprio Tucídides é acusado por alguns de haver escrito o que é falso, embora pareça ter-nos dado a história mais exata dos assuntos de seu próprio tempo" (Josefo, F.: -, 1, 3, 774-5). Tal estado de coisas, com o conseqüente menosprezo de a escrita historiográfica conter o registro do que houve, se agravaria com a expansão e a consolidação do cristianismo. Assim Nancy Struever acentua que a historiografia renascentista não seria compreendida sem se levar em conta o processo de cristianização da retórica. Ao passo que, entre os contemporâneos de Tucídides e, depois, em Roma, a retórica fora beneficiada pela descrença introduzida pelos sofistas quanto à existência de princípios primeiros e, portanto, pela força que assumiam as técnicas de persuasão, a cristianização da retórica fora nociva aos historiadores fosse pela subsunção do lógos a princípios que se julgavam inquestionáveis, fosse pela linguagem suntuosa: Ao passo que Górgias vira as técnicas retóricas como mediadoras de uma realidade dionisíaca, a realidade preexistente suposta pelos dialéticos é uma realidade espiritual de necessidade absoluta, além dos fenômenos e da história. (Struever, N.: 1970, 34) E, além do marco renascentista, que mereceria um tratamento específico, como esquecer a força que a retórica cristianizada, i. e., subordinada à teologia, conservará no barroco? Recorde-se de passagem a reflexão de seu mais famoso sistematizador. Para Emmanuele Tesauro, nenhuma diferença existia entre as obrigações textuais a que estão sujeitos o poeta e o historiador: a ambos se impunha atentar seriamente para a composição escrita de seus argumentos. Na passagem que traduzimos, Tesauro considera exclusivamente o "estilo histórico". Ele é visto entre as "figuras argutas", consistentes na "significação engenhosa" (Tesauro, E.: 1654, 121). Daí resulta sua crítica aos romanos Salústio e Tácito. A Salústio, "que, ostentando a breve eloqüência em vez da eloqüência e mais falando com o espírito do que com a voz, mutila os últimos pés do período" e a Tácito, porque seus períodos "vão tropeçando, entorpecidos pelo mesmo morbo" (id., 153). Por isso mesmo não é acidental que, fora do centro de irradiação do cristianismo institucionalizado, um contemporâneo de Tesauro, Hobbes, desse um basta à orgia retórica. Sem se opor frontalmente à palavra em função de adorno, escrevia: Em uma boa História, o Julgamento deve ser eminente; porque a qualidade (goodness) consiste no Método, na Verdade e na Escolha das ações que sejam mais proveitosas em serem conhecidas. A Fantasia não tem lugar, mas tão-só adornar o estilo. (Hobbes, T.: 1651, 1, 8, 51) No pensador político, a história esboçava a recuperação da aporia grega, i. e., a sua preocupação primeira com a verdade. Ela se generalizará a partir do século XIX. E que direção diversa poderia ser reconhecida naquele que se tem como o melhor conhecedor da história antiga na atualidade, Arnaldo Momigliano? Na abertura de seu ensaio sobre o Metahistory (1973) de Hayden White dirá: Devo começar por dizer que a razão básica de meu desacordo com Hayden White [...] é antes acerca do futuro do que a propósito do passado. Temo as conseqüências de sua abordagem da historiografia porque eliminou a pesquisa da verdade como a tarefa principal do historiador. (Momigliano, A.: 1984, 49) [...]