1 O táxi parou em frente ao portão de uma casa branca quase escondida atrás de um muro alto numa rua da Freguesia do Ó, bairro da zona norte de São Paulo. Helena tirou do pulso o relógio de ouro e o guardou na bolsa. Sentiu-se mais segura. Pagou o taxista, desceu e, mesmo relutante, tocou a campainha da casa. A verdade podia doer, mas não mais que a dúvida. Com quarenta anos, não devia ter se deixado envolver àquele ponto. Mas quem garante que há idade certa para cada coisa? Uma brincadeira, um namoro, um caso, e de repente o jogo prazeroso se transforma numa arapuca. Não, ela iria superar, tinha força para isso, sobreviveria e tiraria proveito do aprendizado. Ah! mas o coração batia forte, sentia um nó na garganta. Se arrependimento matasse! Pensava no filho, no marido que não amava mas que não queria magoar. Pensava no futuro, era jovem. Mas que futuro? Precisava de socorro. E como! O portão se abriu. Foi recebida por uma negra alta, bonita, vestida com uma saia franzida que descia até os tornozelos e uma blusa farta e decotada, ambas de algodão estampado. Amarrado em torno do tórax, uma espécie de xale do mesmo tecido prendia os seios. Usava vários colares de contas de muitas voltas, que caíam até abaixo da cintura. Tinha a cabeça coberta por um turbante e estava descalça. - Boa tarde! Dona Helena? Prazer, vamos entrando. Minha mãe já vai atender a senhora. Dá licença? - Num pote de barro ao lado do portão mergulhou uma caneca, que passou sobre a cabeça de Helena, sem tocá-la. Curvando-se como se fizesse uma reverência, jogou o conteúdo da caneca na rua e foi tratando de explicar o porquê daquilo: - É água. Para limpar as coisas ruins que a gente pega na rua. Vale por um banho. Foi levada até uma sala, onde se sentou e tomou o cafezinho que a moça lhe ofereceu. Helena achou o café gostoso e se sentiu reconfortada. Estava mais calma, mas ainda sentia o peito oprimido. A jovem elogiou a beleza e a elegância da cliente, desculpou-se, "sou tão sincera", pediu licença e se retirou. Uma sineta tocou lá dentro, e a mesma moça voltou para conduzi-la a outro aposento. Pensou em desistir, voltar para casa. Uma senhora a esperava de pé, era mãe Aninha. O mesmo tipo de roupa, mas de um tecido leve, branco, bordado com fios prateados. Porte de rainha, um pouco gorda para sua estatura mediana, ar de gente bondosa e de bem com a vida. Teria uns sessenta anos? Morena, feições bonitas, usava muitos colares de contas e tinha a cabeça coberta por um turbante. Cumprimentaram-se. Helena olhou de relance para os pés da mãe-de-santo, imaginando se ela também estaria descalça. Ela estava bem calçada e sorriu para a visita, sentando-se e apontando uma cadeira. - Por favor, sente aqui perto de mim. Entre as duas havia uma pequena mesa, e sobre a mesa Helena viu uma peneira com búzios, moedas e seixos. A mãe-de-santo falou: - Fique tranqüila, vamos ver o que dizem os búzios. Concentrou-se, parecia que rezava, os olhos baixos. Segundos que pareceram uma eternidade. Depois levantou a cabeça e gritou para fora do quarto: - Júlia, minha filha, traga um copo d'água fresquinha para a senhora. Está calor. Em seguida ajeitou-se na cadeira de braços, sorriu outra vez para Helena e fez uma reza numa língua incompreensível, arrumando os apetrechos do jogo. Júlia, a negra da recepção, entrou com um copo d'água, que Helena deixou na mesa sem beber. A mãe-de-santo esfregou os búzios entre as mãos e jogou-os na mesa. Logo em seguida jogou novamente. Repetiu o lançamento pela terceira vez. Pareceu não ter gostado do resultado, pois o sorriso desapareceu de seu rosto simpático e seguro. Em vez de falar com a cliente, gritou para fora do quarto: - Júlia, venha aqui, menina. Corra. A filha-de-santo entrou no quarto, apressada, e mãe Aninha instruiu: - Vá à cozinha e diga que vou precisar de nove acaçás e nove acarajés para uma oferenda. Se não tiver, tem que fazer já. E peça que preparem também nove porções de farofa de dendê, nove pratinhos de pipoca, nove flocos de algodão e uma cabaça com nove ovos. Vou ter que fazer o ebó imediatamente. Tudo em número de nove, compreendeu, minha filha? A filha-de-santo confirmou com a cabeça, fez uma mesura e saiu. Só então mãe Aninha dirigiu-se à consulente, que não estava entendendo nada e ia ficando cada vez mais nervosa. - Não é bom o que vejo, infelizmente não é. Vejo morte nos búzios - disse mãe Aninha, olhando com apreensão, alternadamente, para os búzios e para Helena. - O jogo está avisando que a morte está por perto. Vejo um grande perigo se aproximando. O que está acontecendo, minha filha? - Morte? Não sei - respondeu Helena como quem sai de um torpor. - Não tenho ninguém doente na família. Minha mãe é idosa, mas tem boa saúde. - Não, não é morte de parente, é sua morte que os búzios estão anunciando. - Mãe Aninha lançou de novo os búzios. - O jogo confirma, sinto muito. Alguém quer tirar sua vida. Mas vamos dar um jeito. Não me esconda nada, me ajude, minha filha, vamos fazer de tudo para enganar sua sina. Helena reagiu com indignação: - Isso não faz sentido! Ninguém está querendo me matar. O que é isso? Foi outro motivo que me trouxe aqui. A senhora está enganada. - Apertava as mãos uma na outra enquanto falava. - É, às vezes a gente pensa que a aflição vem de uma coisa, mas ela vem de outra. É o que eu vejo no seu jogo. O padecimento é profundo, mas a senhora tem medo de olhar para o que causa esse desespero. - Mãe Aninha prendeu as mãos da consulente entre as suas. - O perigo é grande, não temos tempo a perder. Abra seu coração, filhinha. Oxum é mãe, ela é o seu orixá, vai proteger a senhora. Vamos fazer uma oferenda inicial ainda hoje para acalmar o seu destino. Um ebó, entende? Um despacho. Amanhã, com mais tempo, preparamos o trabalho completo para afastar de vez essa ameaça. Vamos cuidar de tudo com a ajuda dos orixás. - Desculpe tomar seu tempo! - Helena soltou-se e deu a consulta por encerrada, levantando-se. - É melhor a gente parar por aqui. Será que alguém pode me chamar um táxi? Agora quem estava aflita era a mãe-de-santo. - Não, não. Tenha calma, não vá embora assim desse jeito. Precisa confiar. O jogo me deixou muito preocupada. Os búzios mostraram morte imediata, e não é por doença. A morte já está aqui ao seu lado. Precisamos agir depressa, fazer os ebós que a situação exige... Enquanto falava, aspergia os búzios com água de uma quartinha de louça branca sobre a mesa, e com a ponta do dedo molhava a própria testa e a testa de Helena, que se esquivava, limpando com as costas da mão a testa levemente molhada. - A senhora pode ficar tranqüila que nada de mau vai me acontecer. Não quero mais falar nesse assunto. Helena abriu a bolsa, tirou duas cédulas e as largou sobre a mesa. - Desculpe, não quero saber mais nada. - À porta, ainda disse: - Até logo, preciso ir, desculpe. Passe bem. A moça que a recebera pediu um táxi por telefone, levou-a até o portão e ficou com ela até o carro chegar. "Será que o taxista se perdeu no caminho? Que demora!" A opressão no peito agora era insuportável. Pensou que ia vomitar. Enfim, o táxi. A corrida até Indianópolis levou mais de uma hora, o trânsito horrível. Helena entrou correndo em casa e se fechou no quarto, depois de ordenar que não a incomodassem. Queria ficar sozinha, não desceria para o jantar. Também não desceu para o café na manhã seguinte. Preocupada, a empregada foi chamá-la no quarto. Helena não estava dormindo, estava morta. O corpo nu estava sobre a cama, num charco escuro e endurecido de sangue coagulado. Tinha o pescoço cortado e a boca cheia de folhas de manjericão.