Capítulo I ERNST E MYLIA 1 Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, Ernst atendeu. Mylia morava no primeiro andar do número 77 da Rua Moltke. Sentada numa cadeira desconfortável pensava nas palavras fundamentais da sua vida. Dor, pensou, dor era uma palavra essencial. Havia sido operada uma vez, depois outra, quatro vezes operada. E agora aquilo. Aquele ruído no centro do corpo, no miolo. Estar doente era uma forma de exercitar a resistência à dor ou a apetência para se aproximar de um deus qualquer. Mylia murmurou: a igreja está fechada de noite. Quatro da manhã do dia 29 de Maio, e Mylia não consegue dormir. A dor constante vinda do estômago, ou talvez mais de baixo, de onde vem exactamente a dor larga, que não pertence a um ponto? Talvez da parte de baixo do estômago, do ventre. O certo é que eram quatro da manhã e ainda não descansara um minuto. Fechar os olhos quando se tem medo de morrer? Levantou-se. Mylia era uma mulher magra, mas forte. Não utilizava os dedos para ninharias. (Muitas vezes repetia a frase: não utilizar os dedos para ninharias.) Concentrava-se; sabia que tinha poucos anos de vida; a doença veio: ficamos juntas uns anos, depois ela permanece e eu parto. Pois bem, havia que concentrar a energia que existe nos dias ou que existe num corpo e se dirige aos dias, concentrá-la - à energia - como a um rolo de carne, estar pronta para agir. Dispensando ninharias. Os dedos devem tocar só no que é espesso, no que é fundamental; o urgente tem de coincidir com o essencial, com o que altera de alto a baixo. Como uma pancada forte no momento em que a recebemos: todas as coisas do dia mais insignificante se devem aproximar desse momento em que se recebe uma pancada forte. Mylia olhava-se ao espelho: estou viva e já dei um passo mau. Estar doente é ter dado um passo mau, um passo diabólico, murmurou Mylia. Uma doença que altera de alto a baixo. Mas nesse dia, às quatro da manhã, decidira sair de casa. De noite a dor desce sobre o corpo de modo distinto. Como um concentrado químico, uma substância que lentamente desliza por um declive mínimo que os olhos mal conseguem perceber. Entre o dia e a noite a superfície não é plana. Um ligeiro declive. Concentrada a dor nesse sítio largo que não era um ponto - entre o baixo estômago e o ventre - Mylia estava na rua à procura de uma igreja. Surpreendido, um vagabundo diz que não sabe. Uma igreja?, pergunta. É de noite, diz o homem, podem roubá-la. Não deve procurar uma igreja, mas sim a polícia para a proteger. Onde quer ir a estas horas? Eu podia roubá-la, senhora. Mylia sorriu, afastou-se. A dor não a deixava concentrar--se num diálogo. Não quero a polícia, quero uma igreja. Sabe se estão fechadas a esta hora? Os pés distantes dos sapatos. Era evidente que os sapatos rasos, à homem, que Mylia usava, obedeciam ao movimento dos pés. Ossos e músculos têm vontade, o material de que são feitos os sapatos não. O material de que são feitos os sapatos é treinado para obedecer, sobre isso não tinha dúvidas. Obedeçam sapatos, murmurou Mylia, com uma perversão ingénua. Como as substâncias se separavam logo à partida entre as que avançavam com a vontade própria e as que esperavam com obediência estática (e nisso dividiam-se como alguns homens)! Os sapatos eram a obediência pura, a escravidão mesquinha, enojavam-lhe naquele momento; a sabujice destes materiais em relação ao homem. Nenhum cão é tão sabujo como estas substâncias. Não há possibilidade de diálogo entre substâncias que nascem logo em campos opostos, em campos, não inimigos, que isso seria pensar na possibilidade de combate, de chamamento de energias, possibilidade de elevação do homem que agarra na arma para combater; ali, pelo contrário, o afastamento não era entre substâncias inimigas ou entre dois predadores que se preparam para combater por um pequeno território; tratava-se simplesmente de passividade absoluta de um lado, e do outro energia forte, que constrói ou destrói, mas que modifica sempre. Não somos uma coisa que espera, murmura Mylia, enquanto avança a passos fortes para a igreja. - A igreja está fechada. Sabe que horas são? Quase cinco da manhã. E não deveria estar aqui. De noite esta zona é má, é uma zona perigosa. Mylia sentiu vontade de rir em frente ao bom homem. Zona má porque perigosa! Ela que vem com a doença, uma doença que já está dentro e a vai matar num ano, dois, não mais. Ela que está com a morte fechada num sítio de onde já não sai; ela quer precisamente o perigo, aquilo que ainda a excite, que ainda revele nela energia suplementar. Esteve à beira de dizer ao homem, certamente trabalhador na igreja em ofícios menores, esteve tentada a dizer: se esta zona é perigosa, não é uma zona má. Aqui se poderá construir. Porque o perigo era uma pergunta para a qual se teria de encontrar resposta rapidamente. E o que necessito é de uma boa pergunta, de uma pergunta exacta, pergunta que me obrigue a encontrar uma grande resposta, aquilo que dê sentido. A doença já não é um lobo que eu possa assustar com algo mais forte. Não é o lobo assustável, já não se separa de mim. Mylia disse: - Não tenho medo do perigo, só queria entrar na igreja, agora. - São cinco da manhã. Está tudo a dormir. Esta zona é perigosa. Deve voltar a casa. De manhã já todos descansámos; nessa altura encontrará o que quer. A esta hora não se recebem bons conselhos. As pessoas estão cansadas. Mylia permaneceu por instantes em silêncio; contorceu--se com a dor estranha que sobressaía, lateralmente, da grande dor constante vinda do estômago. Esta outra dor vinha de um sítio mais acima. - Desculpe, senti uma dor. - Deve regressar a casa; é muito tarde. Mylia recompôs-se. Perguntou: - Há alguma igreja que ainda esteja aberta?