PARTE I - EVOLUÇÃO 1. Vida na Terra "E o homem povoou a Terra..." A vida na Terra é um rio que começou a correr há quase 4 bilhões de anos, e chegou até você e eu no meio de uma diversidade espetacular: leões, mosquitos, coqueiros, bactérias, algas marinhas e dezenas de milhões de outras espécies. Veja o caso dos dinossauros. Dominaram o planeta por mais de 200 milhões de anos e sumiram num piscar de olhos, possivelmente varridos por um meteoro que abriu uma cratera de dez quilômetros no México. A poeira levantada e os vulcões que entraram em atividade como conseqüência do impacto poluíram tanto a atmosfera que a Terra ficou no escuro e os dinossauros foram extintos. Para azar deles. E sorte nossa. Um desvio de milésimo de grau na órbita do meteoro e eles estariam aí até hoje, enormes, predadores, sem deixar qualquer espaço para que surgisse algo parecido com o homem. Enquanto os dinossauros existiam, os mamíferos não passavam de uns poucos roedores noturnos apavorados nas tocas. Indiferente à tragédia dos desaparecidos, o rio da vida seguiu seu destino impiedoso de formar novas espécies e abandoná-las à própria sorte. Estima-se que as 30 milhões de espécies existentes hoje correspondam a apenas 1% das 3 bilhões que já povoaram a Terra. Há uma fração de minuto evolutivo surgiu na África um primata diferente dos macacos comuns: era grande e não tinha rabo. Esse ancestral teve cinco descendentes: orangotango, gorila, homem, chimpanzé e bonobo. Até a metade do século passado, a ciência acreditava que todas as espécies haviam sido criadas por Deus num único dia. Nessa época, os museus britânicos já contavam com uma coleção razoável de fósseis, recolhidos em vários países. Entre os naturalistas, a análise desse material gerou três grandes indagações: Que fenômenos teriam provocado a extinção irreversível dessas espécies? Por que razão muitos fósseis guardavam tanta semelhança anatômica com espécies ainda vivas? Como explicar o sucesso ecológico de uma espécie e o fracasso de outra? Os cientistas da época elaboraram diversas teorias para responder a essas questões. Então vieram Alfred Wallace e Charles Darwin, dois naturalistas ingleses que imaginaram uma teoria incrivelmente simples: a vida é uma competição eterna na qual os mais aptos sobrevivem e os fracos são extintos. Embora Darwin tenha justificado suas idéias através da publicação de uma série de observações meticulosas colhidas numa viagem pelas Américas e pelo Caribe, que incluiu o Brasil, a teoria de Wallace-Darwin nasceu de apenas uma idéia, como costumam surgir as teorias universais. Desde sempre, a experiência mostrou que um fruto maduro cai da árvore, no chão. Todos os animais sabem disso e nós também, mas foi preciso nascer um homem chamado Isaac Newton para interpretar a queda de forma nunca antes imaginada: não é a maçã que cai da árvore, é a Terra que a atrai. Assim foi criada a lei da gravitação, válida para todos os corpos celestes. Princípio universal, como a teoria da seleção natural enunciada por Wallace-Darwin. Se no futuro a vida for descoberta num planeta distante, ela obedecerá à mesma ordem: competição e seleção natural. Imagine a Terra há quase 4 bilhões de anos, no instante em que surgiu a vida. Que instante foi esse? Foi quando apareceu a molécula de RNA, a primeira dotada de uma propriedade singular: fazer cópias de si mesma. A vida nada mais é do que uma replicação eterna: um ser forma dois, dois formam quatro, quatro geram oito, dezesseis, 32, 64... numa progressão sem fim. Se não existissem limites impostos ao processo de multiplicação, uma molécula replicante como essa cobriria a superfície da Terra em camadas sucessivas, acumuladas geometricamente até preencher o universo. Como a vida, no entanto, está longe de ser matemática, as moléculas de RNA não puderam se multiplicar sem restrições. Para se formar precisaram ser sintetizadas a partir de outras moléculas presentes no ambiente primordial que compunha a superfície da Terra. Em outras palavras, foram obrigadas a competir pelos recursos existentes naquele tempo, de tal modo que sobreviveram as mais aptas, aquelas capazes de retirar do meio tudo o que necessitavam para dar origem a moléculas-filhas, que herdaram a habilidade das mães. É fácil imaginar que a primeira molécula de RNA capaz de sintetizar uma camada externa protetora ficou menos sujeita às intempéries químicas ambientais e criou uma estrutura como a de certos vírus existentes hoje (o da aids, por exemplo). Essas formas de vida devem ter levado tamanha vantagem na competição, que persistiram até nossos dias. Na competição desenfreada entre as moléculas replicantes primordiais, algumas moléculas de RNA desenvolveram a propriedade de sintetizar o DNA, molécula capaz de arquivar informações genéticas muito mais complexas que as arquivadas pelo RNA, que lhe deu origem. Apareceram então os primeiros seres unicelulares, as bactérias arcaicas, habitantes exclusivos do planeta por 3 bilhões de anos. O sucesso ecológico desses seres formados por uma só célula pode ser medido não só pelo tempo em que eles constituíram a única forma de vida existente, mas pelo fato de as bactérias estarem disseminadas nos mais diversos ambientes da Terra até os dias de hoje. Foi apenas há 600 milhões de anos que o rio da vida abandonou a monotonia unicelular e deu origem aos primeiros seres formados por agrupamentos rudimentares de várias células. A competição por nutrientes e condições físicas favoráveis fez com que essas formas de vida multicelulares aumentassem rapidamente de complexidade, dando origem a animais e vegetais que deixaram os mares e se estabeleceram em terra firme. Caracteristicamente, temos uma visão fantasiosa do processo evolutivo. Talvez por nossa espécie ser proprietária do sistema nervoso central mais complexo entre os seres vivos, consideramos nosso aparecimento na Terra o objetivo final da evolução. É como se a vida tivesse evoluído a partir das bactérias mais primitivas com o único propósito de atingir o momento supremo da criação, há 5 milhões de anos, com o nascimento dos nossos antepassados diretos nas savanas da África. Essa visão antropocêntrica não tem respaldo científico. Se fosse para eleger a forma de vida que teve maior sucesso evolutivo, seríamos obrigados a escolher as bactérias, seres unicelulares que estão por aí há 3,5 bilhões de anos, enquanto nós mal acabamos de chegar. Diante da natureza, somos apenas uma das 30 milhões de espécies que povoam atualmente o planeta. O sucesso ou fracasso ecológico de uma espécie nada tem a ver com a importância que ela atribui a si mesma (os dinossauros que o digam). Se uma hecatombe destruísse até o último ser humano, que diferença faria para os fungos, formigas e corais marinhos? Os estudos sobre o comportamento dos grandes primatas devem ser interpretados de acordo com essa perspectiva evolutiva. Quando vemos um lobo, uma onça ou um urso atacar uma presa, aceitamos com facilidade a idéia de que tal comportamento tenha evoluído da mesma forma nas três espécies: nelas, os caçadores mais habilidosos sobreviveram e tiveram mais filhos, transmitindo aos descendentes o traço hereditário da caça. Ao contrário, os maus caçadores não deixaram descendentes. Tiramos essa conclusão baseados no princípio da parcimônia, segundo o qual se duas ou mais espécies geneticamente próximas exibem determinado comportamento é provável que ele tenha sido herdado de uma espécie ancestral que já o apresentava. A alternativa seria a natureza inventar estratégias especiais para cada uma das 30 milhões de espécies, acontecimento altamente improvável. Se fosse assim, como explicar que todos os seres vivos capazes de enxergar têm dois olhos e um sistema nervoso central para montar as imagens; que todos os que andam têm membros localizados simetricamente de ambos os lados do corpo; e que todos os que dependem de oxigênio já nascem respirando? Uma vez que as diferenças genéticas entre lobos, onças e ursos são bem maiores do que as encontradas entre orangotangos, gorilas, homens, chimpanzés e bonobos, por que razão a natureza agiria de forma diferente nos grandes primatas, criando para o homem uma linha evolutiva especial? A verdade é que as semelhanças entre os grandes primatas vão muito além da aparência física: - O filhote é dependente de cuidados maternos durante vários anos: cinco anos nos chimpanzés, sete anos nos orangotangos e até mais no homem. - Os chimpanzés, bonobos e homens são carnívoros. Homens e chimpanzés machos organizam grupos para caçar. Entre eles existe o ritual de divisão da carne. - Como regra geral, os machos disputam as fêmeas em batalhas violentas. Os bonobos são exceção, e os homens têm comportamento que oscila entre os dois extremos. - A defesa do território é menos nítida nos orangotangos e gorilas, mas nos chimpanzés e homens pode desencadear batalhas mortais entre os membros de diferentes comunidades. - Nas cinco espécies, os machos são mais fortes do que as fêmeas. Quanto mais acentuado o dimorfismo sexual, como nos orangotangos e gorilas, mais dominadores são eles e mais desunidas as fêmeas. Nos bonobos e homens, espécies menos dimórficas, com fêmeas capazes de formar alianças, o poder masculino é reduzido significativamente. - Os machos, como regra geral, procuram o acasalamento com diversas fêmeas e se empenham em evitar que outros machos façam o mesmo. Os bonobos são exceção; o homem, um caso intermediário. - Nas cinco espécies, muitos filhotes são concebidos fora do grupo em que as mães vivem, graças à infidelidade feminina. - As fêmeas têm preferência sexual pelos machos que ocupam os postos mais altos na hierarquia masculina. A gorila chega a abandonar o macho que não foi capaz de proteger o filhote, e pode até acompanhar o invasor infanticida. - A vida terrestre dos primatas, que começou com os gorilas, trouxe a necessidade de formação do grupo. Chimpanzés, bonobos e homens formam comunidades maiores, nas quais os indivíduos estabelecem redes complexas de alianças. São os mais políticos dos animais. - O canibalismo é encontrado nos homens e chimpanzés. Nessas espécies, os machos formam bandos para, com premeditação, invadir território alheio e matar o semelhante. São os únicos animais com essa característica. - Como regra geral, os grandes primatas são capazes de utilizar ferramentas. Chimpanzés e bonobos reconhecem a própria imagem no espelho, capacidade que a criança desenvolve a partir dos dezoito meses de vida. Chimpanzés e bonobos conseguem aprender o significado dos sinais representados na linguagem dos surdos-mudos, e chegam a interpretar sentenças que nunca ouviram antes. Milhares de horas de observação de primatas no campo e em cativeiro permitiram aos primatólogos modernos estabelecer as bases evolutivas do comportamento humano. De fato, admitimos que temos em nossas personalidades um lado escuro, despótico, sanguinário, herdado de nossos ancestrais primitivos. Já as qualidades das quais temos orgulho, consideramos tipicamente humanas - afinal, apenas nós somos capazes de amar ao próximo como a nós mesmos. A evolução não cria mecanismos especiais para nenhuma espécie. Se nosso lado sinistro denuncia nosso passado animal, o mais nobre também o revela. Quando um chimpanzé traz comida para o companheiro doente, uma gorila enfrenta o macho enorme para defender um filhote que não é dela, a orangotango coça as costas do filho ou um bonobo cola os lábios nos da fêmea e introduz a língua em sua boca, por que não dizer que tais atitudes representam altruísmo, solidariedade com o mais fraco, carinho materno e beijo na boca? O que nos diferencia dos outros primatas não são as atitudes nobres nem as bestiais, mas o fato de termos um sistema nervoso central mais elaborado e versátil que o deles. O orangotango-alfa dá gritos longos para atrair fêmeas receptivas e assustar subordinados; gorilas e chimpanzés berram e quebram galhos na floresta para afastar intrusos; e os bonobos, quando brigam, gritam alternadamente na direção do adversário, como se trocassem ofensas. Não há dúvida de que os grandes primatas não humanos conseguem dizer coisas fundamentais um para o outro através da fala. O que eles não são capazes é de recombinar sílabas sem sentido de modo a formar milhares de palavras que podem ser agrupadas em sentenças com infinitos significados. A linguagem, sim, é uma característica tipicamente humana; nada parecido com ela existe em qualquer espécie. Nosso cérebro evoluiu passo a passo a partir de ancestrais comuns aos dos outros primatas. Não houve saltos qualitativos ou acrobacias evolutivas, apenas um longo processo de competição e seleção natural que conduziu aos cinco grandes primatas e seus mais de 95% de identidade genética, entre 30 milhões de outras espécies sobreviventes das sucessivas extinções em massa. Num mundo de reservas limitadas, a diferença de 5% que surgiu entre nós e os grandes primatas foi decisiva para o homem povoar o planeta aos bilhões, número jamais sonhado por qualquer outro vertebrado, e ainda aventurar-se às viagens espaciais. Nessa pequena constelação de genes exclusiva dos humanos estão aqueles que aumentaram a complexidade da atividade cerebral. Comparado ao de orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos, o cérebro humano não é apenas mais volumoso e saliente na fronte: ele apresenta maior capacidade computacional. Na evolução da espécie humana não ocorreu simplesmente o crescimento volumétrico cerebral, houve o crescimento diferencial de algumas áreas. Nosso cérebro é formado por células nervosas, os neurônios, que se comunicam por circuitos computacionais montados pacientemente durante milhões de anos de competição e seleção natural. Cada estímulo que atinge o sistema nervoso central percorre um circuito particular de neurônios até chegar às estações centrais que decodificam os sinais recebidos. Quando um raio de luz impressiona nossa retina, por exemplo, o estímulo visual cruza o cérebro até a parte posterior da cabeça, no lobo occipital, onde se encontram os centros da visão. A partir deles, novos circuitos de neurônios fazem a informação trafegar em velocidade vertiginosa às áreas cerebrais que irão situar o estímulo no domínio do consciente. Em milésimos de segundos saberemos se aquela luz indica um barco se aproximando, um vaga-lume ou um automóvel ameaçador. No caminho evolutivo que conduziu ao homem, houve o crescimento diferencial de alguns centros cerebrais nas regiões que correspondem à transição dos ossos occipitais (atrás da cabeça), parietais (em cima) e temporais (do lado). Nessas áreas, são recebidos e integrados os estímulos visuais, táteis, olfativos, acústicos e gustativos. O crescimento dessa parte do cérebro permitiu a criação de um universo abstrato, desconhecido entre os outros animais. Num instante, o cheiro de uma flor pode evocar uma música, a partir dela uma pessoa, um vestido branco e um compromisso que não podemos perder no dia seguinte, senão faltará dinheiro no final do mês para pagar a prestação do automóvel. Como no caso da linguagem, não há evidência de que nossos irmãos primatas ou outros animais sejam dotados de circuitos de neurônios capazes de associações tão complexas. Além do crescimento diferencial das áreas situadas na parte posterior do cérebro, na linhagem que conduziu aos seres humanos houve crescimento progressivo do lobo frontal. O homem de hoje não tem a testa inclinada para trás como os demais primatas ou mesmo os homens primitivos. O lobo frontal proeminente permitiu a organização e processamento das informações colhidas do resto do corpo e do ambiente pelos circuitos cerebrais específicos. Disso resulta uma integração do universo interno do organismo com o mundo externo, que nos permite avaliar simultaneamente o nível de urina na bexiga, a velocidade do carro, a chuva que as nuvens negras trarão, o impacto delas no tráfego e quanto tempo ainda falta para chegar no próximo posto de gasolina. O desenvolvimento do lobo frontal na espécie humana colocou as representações internas do corpo permanentemente on-line com as do mundo externo. Desse universo on-line resultou um crescimento exponencial da capacidade de elaborar projetos. Como, por exemplo, o de criar colônias em Marte nos próximos cem anos. Neste ponto, voltemos às moléculas replicantes, o DNA e o RNA. Consideramos como o início da vida na Terra o instante em que surgiu uma molécula que se dividiu em duas, estas em quatro, oito etc. Raramente nos detemos a pensar na potência de progressões desse tipo. A característica fundamental delas é que, abandonadas à própria sorte, são matematicamente ilimitadas: podem criar trilhões, quatrilhões de indivíduos. Entre as 3 bilhões de espécies que já habitaram nosso planeta, surgiu um grande primata, muito parecido com os outros, exceto pelo volume computacional de seu cérebro, capaz de processar informações como jamais se viu. Em apenas 5 milhões de anos esse primata bípede se espalhou pela Terra inteira e partiu para povoar outros corpos celestes com suas moléculas replicantes: uma se divide em duas, duas em quatro...