Trecho do livro POR UM NOVO MACHADO DE ASSIS

INTRODUÇÃO Os ensaios que compõem este livro foram escritos ao longo dos últimos vinte anos. Quando comecei a pensar que era chegada a hora de compilá-los e publicar este volume, surpreendi-me ao descobrir que vinte anos se passaram desde o meu último livro de ensaios sobre Machado de Assis, Machado de Assis: ficção e história, de 1986. Minha surpresa deu-se em parte pelo fato de que me parecia que a maior parte do meu tempo fora dedicado a escrever e a pensar sobre Machado - e, de fato, publiquei dois livros de crônicas e uma antologia de contos, além de traduzir Dom Casmurro. Ainda assim, acredito ser este um bom momento para juntar estes ensaios um tanto díspares entre si em um volume e pensar no que talvez lhes confira uma certa unidade. O que tenho tentado fazer ao longo de todos estes anos? Ao refletir sobre isso, cheguei à conclusão de que, de diferentes maneiras, de diferentes ângulos, quer editando crônicas, quer escrevendo introduções a livros e antologias, publicando ensaios sobre diversos temas, alguns aparentemente secundários, venho descobrindo para mim e revelando aos leitores um novo e diferente Machado de Assis. Enfatizo a palavra "descobrindo" - não se trata de uma invenção, uma criação deliberada de um Machado de alguma maneira mais adequado ao nosso próprio tempo, mas uma descoberta de algo, de alguém que já está ali. Claro que as constantes mudanças do nosso tempo me ajudaram a encontrar este novo Machado - isto é óbvio em particular no campo sexual, menos óbvio embora igualmente legítimo nas esferas política, histórica e social -, mas o fato é que ele está lá, esperando, e que há muito a ser revelado. Isto é parte da sua grandeza como escritor, do seu constante fascínio. Esta introdução tem dois aspectos. O primeiro é apresentar os próprios ensaios e destacar algumas das tendências e objetivos mais importantes que subjazem à sua diversidade, o que se revelou impossível sem situá-los no contexto maior da história dos estudos machadianos nos últimos cinqüenta anos, o segundo aspecto aqui examinado. Ao fazer isso, porém, intencionalmente tentei realçar as questões mais relevantes, sem entrar em pormenores. A minha intenção não foi fazer um balanço de tudo o que se tem produzido nesses anos - e pode ser que a alguns o que digo lhes pareça tendencioso. Mas espero que a clareza da exposição compense as omissões e que muitos leitores reconheçam a verdade básica das minhas palavras. Qual é o alcance atual da nossa compreensão do autor? Há apenas pouco mais de cinqüenta anos, em 1955, José Galante de Sousa publicou a sua Bibliografia de Machado de Assis, um trabalho de erudição monumental, meticuloso, atento e modesto, e o único guia da obra completa de Machado. Esse livro, que eu costumava comprar barato nos sebos para presentear meus amigos, custa agora 250 dólares na internet. Talvez a contribuição mais valiosa que alguém poderia dar à nossa tarefa coletiva seria a reedição da Bibliografia para, assim, torná-la disponível aos novos estudiosos. Galante fazia parte de um grupo de intelectuais que em sua maioria não tinha relação com a academia. Esses eruditos, que viviam no Rio de Janeiro, tinham fácil acesso à Biblioteca Nacional, à Academia Brasileira de Letras e a outras bibliotecas, e realizaram um trabalho pioneiro e ingente sobre a vida e a obra de Machado. Era, de várias formas, um período florescente para a pesquisa e (talvez em um grau menor) para a crítica, de escritores como Augusto Meyer, Astrojildo Pereira, Lúcia Miguel-Pereira, Raymundo Magalhães Júnior, Eugênio Gomes, Josué Montello, Brito Broca, Miécio Tati, e ninguém, até hoje, pode deixar de ler livros como Machado de Assis (1935-1958), de Meyer; Machado de Assis - ensaios e apontamentos avulsos, de Pereira; Machado de Assis: esboço crítico e biográfico, de Miguel-Pereira; Machado de Assis desconhecido, de Magalhães; Machado de Assis: influências inglesas, de Gomes; O presidente Machado de Assis, de Montello; Machado de Assis e a política, de Broca; O mundo de Machado de Assis, de Tati, entre outros. Contudo, pode-se dizer com justeza que, sobretudo em alguns desses escritores, a ambição crítica não esteve à altura do entusiasmo deles como pesquisadores. Entre eles, o caso mais patente é o de Magalhães Júnior, o mais ativo de todos. Suas edições de contos e crônicas, omitidos da problemática edição da Jackson, apresentam textos um tanto questionáveis e notas inadequadas, mas ele pelo menos percebeu a importância de publicar esse material. O seu Vida e obra de Machado de Assis, publicado em 1981, em quatro volumes, apesar de ser um manancial de informações - ou uma montanha de fatos -, infelizmente carece por completo de idéias norteadoras. Além da reedição da Bibliografia, a elaboração de um índice para esse trabalho seria de muita valia. Mas não nos esqueçamos de que esses escritores produziram, sim, um novo Machado de Assis, genuinamente "desconhecido", banindo alguns dos mitos sobretudo em torno da sua vida e integrando-o com precisão no seu contexto social, político e literário. Em 1971, Jean-Michel Massa publicou A juventude de Machado de Assis. Massa, de várias maneiras, tomou como base as descobertas dos anos anteriores, bem como reviu atentamente alguns excessos. O resultado é a melhor biografia que temos de Machado, plenamente documentada, criteriosa, com notas e um índice completo: também - de modo inevitável, fica-se tentado a acrescentar - há muito esgotada. Apesar de abarcar apenas até 1870, e, portanto, não entrar no período da vida de Machado em que ele fica mais interessante (e mais difícil de discutir), é, pelo menos, um grande passo na direção do que deve ser feito. Duas publicações desse período devem também ser mencionadas: "Esquema de Machado de Assis" (1968), de Antonio Candido, até hoje a melhor introdução à sua obra que se pode, digamos, oferecer a um leitor estrangeiro, e que dá atenção considerável aos contos. Por fim e talvez a mais útil de todas é A pirâmide e o trapézio (1974), de Raymundo Faoro, que revela um conhecimento enciclopédico da obra de Machado - toda ela, incluindo crônicas, contos etc. -, mas, apesar de se tratar de uma compilação bastante completa, não consegue oferecer uma teoria convincente, abrangente, um esquema que outras pessoas possam usar. Podia também dispor de um índice. Por volta desse período, o panorama começou a mudar e a abordagem predominantemente biográfica e bibliográfica começou a ser abandonada, sem que houvesse qualquer decisão consciente nesse sentido. A atenção agora se voltava para o mundo acadêmico, justo quando as velhas e as novas teorias - estruturalismo, feminismo, formalismo, marxismo - passaram a ter uma importância maior no novo mundo polarizado do regime militar e, claro, acima de tudo, com o desenvolvimento das próprias universidades. Alguns trabalhos proveitosos foram publicados, mas espero não parecer injusto ao dizer que a maioria foi menos proveitosa que os trabalhos dos estudiosos "amadores". Um sintoma desse estreitamento que pode ser produzido pela especialização acadêmica, a necessidade de produzir teses, artigos, foi uma concentração crescente nos romances, em que, supostamente, teorias de um tipo e de outro podem ser mais úteis. Um exemplo beira o cômico: três livros foram publicados sobre o feminismo em Machado de Assis e sobre suas personagens nesse período, e todos ignoraram os contos, repletos de interessantes personagens femininas. Isso só pode ser explicado por uma lamentável falta de curiosidade e por um maior interesse nas teorias que nos fatos. Talvez haja outra explicação para o limitado interesse de grande parte da produção acadêmica sobre Machado nos anos 70 e 80: as pessoas não sabiam bem como as novas teorias se encaixavam, mas iam em frente mesmo assim. "Dialogismo" ou "carnavalização" à Bakhtin? Mas Machado não é Dostoiévski nem Rabelais. "Modernismo" em virtude dos narradores duvidosos, a forma digressiva, a ironia disseminada? Mas Machado não é Joyce, Gide nem Faulkner... esses aspectos, em si, apenas tocam a superfície, bem como a comparação com Proust por um interesse "partilhado" pela memória, que é, na verdade, bastante diferente nos dois escritores. "Sátira menipéia", inspirada em parte pela abordagem à literatura pelo viés dos gêneros literários, apresentada em Anatomia da crítica, de Northrop Frye, e proposta por José Guilherme Merquior e Enylton de Sá Rego? Isso é muito mais adequado - e a principal razão, se não me engano, é que o próprio Machado estava ciente da afinidade e tinha lido o mais antigo escritor do gênero, Luciano de Samósata, assim como muitos outros. Há uma delicada questão de fundo, da qual fiquei mais consciente como tradutor: Machado é certamente um grande escritor, de estatura internacional, mas como justificar isso, mostrá-lo, seja para estrangeiros, seja para brasileiros? Ele não é de fácil classificação, com a conseqüência de que a prática corrente de aplicar uma determinada teoria a um autor é ainda menos provável de funcionar no seu caso. Há uma grande exceção, cuja importância é inegável: o trabalho de Roberto Schwarz. Ao vencedor as batatas foi publicado em 1977 e não é exagero dizer que representou uma ruptura quase total com o que havia. Talvez o melhor testemunho que posso dar disso seja o meu próprio - nunca consegui ler Machado com prazer até que esse livro providenciasse um código de acesso; a partir de então, não parei mais. De certa forma, meu desconforto com Machado nos anos 70 (quando o li sem intenção de escrever sobre ele) talvez refletisse o tipo de luta contra fantasmas a que outros críticos ligados à academia se dedicavam - não sabiam por onde pegá-lo. Para este livro, decidi, com o consentimento de Schwarz, traduzir um longo ensaio que escrevi sobre a sua obra para leitores de língua inglesa, conseqüência da minha tradução de Um mestre na periferia do capitalismo. Fez-se necessária uma grande quantidade de explicação básica, uma vez que uma boa parte de Ao vencedor as batatas não estava disponível em inglês, mas o esforço me foi muito proveitoso, pois esclareceu várias questões para mim mesmo. Espero que ele seja proveitoso também para o leitor brasileiro, nem que seja apenas pelo fato de acompanhar discussões complexas e detalhadas e por fazer um exame do contorno da obra de Schwarz, por meio das suas divergências com Maria Sylvia de Carvalho Franco sobre "idéias fora do lugar" e com Antonio Candido, em um brilhante ensaio sobre "Dialética da malandragem". Questiono se, de fato, compreendemos por completo o porquê de a obra de Schwarz contrastar tanto com quase toda a produção acadêmica publicada na época. Cheguei à conclusão de que sua obra é, entre outras coisas, a exceção que prova a regra. Duas razões me ocorrem - a primeira, mais óbvia, e a que mais me afetou quando li Ao vencedor as batatas, é que ele está firmemente fundamentado na realidade da sociedade brasileira da época, cujas idiossincrasias reconhece. Tudo isso, como fica resumido no meu ensaio/introdução, foi produto do seu tempo, e não se explica tanto pela crítica literária quanto pela história e a sociologia. Para mim, o interesse no clientelismo, nas relações de favor, serviu de acesso a uma leitura minuciosa de Casa velha, e então de Dom Casmurro e assim por diante. Mas não se pode subestimar a grande importância das "idéias fora do lugar", por finalmente apresentar uma "teoria" (ou um construto de inspiração teórica) que se aplicava à conjuntura brasileira, e se aplicava porque reconhecia uma inadequação - a cópia não se adaptava ao original por razões explicáveis, históricas. Essa "teoria" tem uma sofisticação teórica, do marxismo e de outras áreas, que se equipara às melhores e que é bastante sólida para se permitir flexibilidade e uma considerável originalidade - nada poderia ser menos servil. "Idéias fora do lugar" não é uma solução em si, algo que simplesmente "corresponde" a uma realidade recalcitrante. É um desafio. Atirou-nos (se usarmos a idéia corretamente) em um mundo movediço, inconstante - um mundo de ajustes imperfeitos, em que as idéias estavam, mesmo, fora do lugar e em que tínhamos que nos valer por nós mesmos. Essa é uma razão de ela ser tão adequada a Machado, ele mesmo tão difícil de qualificar e categorizar. Ela também serve à obra de Machado de outra maneira, semelhante talvez ao caso da sátira menipéia - o próprio Machado tinha consciência dessa inadequação; ele muitas vezes a satirizou, bem como tratou da questão de diferentes maneiras ao longo da sua carreira. Em vez de encontrar uma explicação mágica para a grandeza de Machado como escritor, os argumentos de Schwarz em Ao vencedor as batatas nos orientam tão bem tanto porque fornecem uma sólida estrutura histórico-social por meio da qual podemos entender Machado quanto porque levantam questões. Algumas destas avançaram bastante para uma solução quando Schwarz publicou, em 1990, Um mestre na periferia do capitalismo - neste, em uma análise de Memórias póstumas de Brás Cubas, tem-se uma visão do estilo maduro de Machado (percebido, de forma inteiramente convincente, como a expressão e a satirização da classe dominante) e um tratamento minucioso dos seus personagens, do posicionamento ideológico do narrador etc. Esse livro permite que se entenda o porquê de o estilo de Machado, a sua voz, ser tão original, comparável, como diz Schwarz, a Chateaubriand, Proust ou Mann: ele aproxima aquela verdadeira percepção da estatura do Machado - uma estatura que sabemos existir, mas que, usando uma expressão do próprio Schwarz, é difícil de "trocar em miúdos". Esta é, até onde posso afirmar, a situação em que trabalhei nos últimos 23 anos - publiquei meu primeiro artigo sobre Machado, sobre Casa velha, em 1983. Não seguia nenhuma teoria específica além do intencionalismo mínimo presente no meu trabalho sobre Drummond (embora eu não pretenda fingir que ignorava Lukács, por exemplo, ou Frye, ou Barthes). Talvez fosse uma vantagem: em um ensaio, Schwarz se refere a isso como "educação pelo assunto", e é certamente o que eu gostaria que fosse. A primeira conseqüência de ler Schwarz (e de ter que dar aula sobre Machado na universidade de Liverpool) foi ler Casa velha. Com exagero perdoável, posso dizer que meu próprio trabalho teve seus principais desdobramentos a partir da leitura dessa novela então esquecida e da redação do artigo sobre ela. Ainda lembro o entusiasmo que senti quando o significado e a estrutura de Casa velha começaram a fazer sentido para mim. A partir de agora, para facilitar o entendimento e tornar cada ensaio deste livro o mais claro possível, identifico quatro desdobramentos interligados presentes no meu pensamento e na minha produção, todos também presentes naquele primeiro projeto. Primeiro, e de maneira muito evidente, descobri padrões em Casa velha de complexidade e significado reais, que eram, na verdade, alegóricos na essência, e que só podem ter sido intencionais - a associação de D. Antônia à Virgem da Glória, para dar um exemplo mínimo, que faz parte, como é da própria natureza da alegoria, de uma estrutura mais abrangente. Isso influenciou outros trabalhos com estruturas equivalentes embora diferentes - como, para dar um exemplo mínimo, o nome de D. Glória em Dom Casmurro. O resultado foi a construção de um modelo de história brasileira que não só está presente na ficção de Machado e que estabelece uma relação crucial com as estruturas de romances como Quincas Borba e Dom Casmurro, como é também revelador de um desenvolvimento cronológico desses próprios romances, apresentados em um diagrama simples no começo de Ficção e história. Elabora, ao que me parece, um projeto, independentemente do nível de consciência em que foi produzido e conduzido por Machado, análogo, distâncias guardadas, àqueles de Balzac ou de Alencar - o estudo de uma determinada sociedade em uma determinada conjuntura histórica e ao longo de um período histórico. Na verdade, somente um dos ensaios deste livro é um desdobramento direto dessa linha de pensamento: o ensaio sobre Papéis avulsos retrocede no tempo, tanto no que concerne aos trabalhos abordados (Papéis avulsos é de 1882) quanto ao período da história brasileira que Machado alegoriza - nesse caso, o que se estende do final do século xviii até cerca de 1840, ano em que foi antecipada a maioridade de d. Pedro ii. A idéia aqui não consiste em uma simples repetição de Ficção e história em um contexto diferente - comecei a perceber que, nesse primeiro momento, o pensamento de Machado sobre o tema da história brasileira não se concentrava nas classes nem no regime, mas na própria nação brasileira, no momento da sua independência -, de certa forma, na identidade nacional. Essa é uma linha de pensamento que está presente em trabalhos posteriores de Machado também, mas nestes (e antes deles, se não me engano)9 é dominante; o que representa, na verdade, tanto um reflexo das circunstâncias históricas quanto o desenvolvimento do próprio Machado. Enquanto refletia sobre essas questões, me foi atribuída uma cátedra de estudos brasileiros na universidade de Liverpool, e o último ensaio do livro - "Brasil: cultura e identidade" - foi minha aula inaugural. Hesitei em incluí-lo, em razão da ambição desmesurada do título, do fato de que foi escrito para o público britânico e porque talvez seja pessoal em demasia, mas acho que, apesar de tudo, se justifica a sua republicação em português. É uma extensão de algumas das idéias surgidas, sobretudo a partir de uma análise que fiz de "O espelho", em períodos posteriores, no mundo de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda (e Noel Rosa, Drummond, Graciliano e Elizabeth Bishop). Não abandonei meu raciocínio "alegórico"; pelo contrário, ainda defendo todos os argumentos que apresentei nos meus dois primeiros livros e fiquei, claro, satisfeito de vê-los expostos ao uso engenhoso do próprio Roberto Schwarz em Um mestre na periferia do capitalismo. Fiquei mais decepcionado com o fato de que os padrões cronológicos e o modelo simples que criei não foram aplicados ao discurso crítico sobre Machado; ao que eu saiba, nem foram criticados. Certamente, esses significados, essas estruturas mais abrangentes contam uma história - são parte das intenções conscientes de Machado - e, nessa condição, deveriam ser consideradas por outros críticos ou biógrafos. Admito que, de certo modo, fiquei desconfiado com interpretações alegóricas em que qualquer barbado se torna d. Pedro ii, e com cálculos complexos de datas que nenhum leitor contemporâneo conseguiria fazer como sendo a chave para o sentido de obras inteiras, mas, no fim, cada argumento deve se sustentar ou cair segundo seus próprios méritos. Há muitas coisas em Machado que estão lá e que estão ocultas, e não somente no nível alegórico - como ele mesmo disse em "A semana": "acabemos com este costume do escritor dizer tudo, à laia de alvissareiro". O caso mais óbvio é a possível inocência de Capitu - oculta, como um desafio para o leitor, mas um fato indiscutível (o que não impede que seja discutido). A segunda lição que tirei da leitura de Casa velha foi que, para se ter uma visão mais abrangente e profunda da obra de Machado, se faz necessário um exame de trabalhos (supostamente) menores, como, por exemplo, os que não foram reeditados pelo próprio autor. Às vezes, como no caso de Casa velha, isso resulta em descobertas literárias - esse romance foi reeditado, pelo menos, quatro vezes, desde a publicação de Ficção e história e certamente, agora, não há mais dúvida de que Lúcia Miguel-Pereira estava enganada ao conjecturar que tinha sido escrito na década de 1870, e não na de 80, quando foi publicado nas páginas de uma revista. Eis um exemplo de como o cenário pode mudar com o exame de alguns trabalhos "não canônicos". Muitos contos e, mais especialmente, as crônicas têm histórias interessantes para contar, ainda que não sejam trabalhos importantes em si - e, ainda assim, não apressemos a sua condenação ao limbo -, mas nem todos são fáceis de ler ou mesmo de encontrar. O capítulo sobre "Bons dias!", em Ficção e história, promoveu uma edição integral daquela série, que implicou uma pesquisa abrangente, pois eu ainda acredito que algumas crônicas são, no mínimo, muito mais passíveis de ser mal interpretadas se não acompanhadas por notas extensivas que situem o leitor o mais próximo possível do leitor de 1870, 1888 ou de 1897, para quem esses textos foram originalmente escritos. Esse trabalho continua, embora tenha se mostrado mais demorado e apresentado mais imprevistos do que eu tinha imaginado. Até agora, concluí apenas um terço de "A semana", e, com Lúcia Granja, estou preparando uma edição das interessantíssimas crônicas publicadas em 1877 e 1878 (entre a publicação de Iaiá Garcia e de Memórias póstumas de Brás Cubas) em O Cruzeiro.10 A idéia de editá-las todas em poucos anos, em equipe, infelizmente não deu certo devido a divergências. Nunca tinha me ocorrido que esses pequenos trabalhos podiam ser tão conflituosos e, em especial, que a ironia de Machado, às vezes extremada, quase de um virtuose, pudesse criar tantos problemas de interpretação, nesse caso a criação/invenção de um "narrador" espúrio.11 O ensaio sobre "Bons dias!" neste volume - o terceiro que escrevi - introduzirá uma edição revista daquela série e fornece um relato realista do que acredito ter sido seu provável processo de redação, desde o início até o fim. Espero que algumas das suas análises possam ser proveitosas para outras pessoas, uma vez que o estudo do gênero parece atravessar um período muito favorável, apesar de "Bons dias!" (por causa de suas circunstâncias históricas, a conseqüente anonímia, a irregularidade de publicação) talvez não ser uma série típica; Machado tampouco é um "típico" cronista (se é que essa figura existe), a despeito de ser um dos melhores. De qualquer forma, esse capítulo conta uma história cuja conclusão lógica, apesar do silêncio incomum de mais de dois anos como cronista, ao longo da crise da instalação da República e do Encilhamento até sua retomada, em abril de 1892, pode ser encontrada nos dois capítulos posteriores nessa seção. O primeiro trata da primeira crônica de "A semana", em que Machado cuidadosa, sutil e ironicamente expõe sua postura política em circunstâncias muito complexas, e o segundo (originalmente, a introdução à minha edição) leva a história a 1893 e a outra crise política, com a Revolução Federalista e a Revolta da Armada. Em terceiro lugar, a leitura de Casa velha tornou-me consciente de como o realismo de Machado é minucioso e perspicaz - estava a ponto de acrescentar típico do século xix, mas seria errado, pois muitos escritores do século xx têm justamente essas mesmas qualidades. Alguns detalhes - o apego do padre, narrador da novela, ao já esquecido romance Les martyrs, de Chateaubriand, por exemplo - definem personagens e enredo, não em um nível alegórico, mas em um histórico (neste caso, como uma combinação um tanto sinistra de cristianismo e romantismo). A pesquisa que fiz das referências nas crônicas e nos romances levou-me a uma crescente conscientização do realismo historicamente consciente e detalhado de Machado, que também tentei documentar no caso de Dom Casmurro em Impostura e realismo. As crônicas também me fizeram perceber que referências a acontecimentos históricos, produção literária popular, entre outras coisas, deviam ser entendidas pelos leitores de Machado de maneira bem diferente da nossa, o que, claro, se reflete nas suas intenções mesmas quando ele as escreveu. Vale a pena acrescentar, porém, que o estilo reticente e brincalhão, até sarcástico, de Machado faz com que se duvide do alcance do entendimento daqueles leitores, ou de alguns deles. Os dois capítulos sobre contos distintos refletem isso. Ambos evidenciam níveis de significado não presentes na superfície da história: no caso de "Conto de escola", o histórico-político, que enfatiza o ano em que a história se passa, 1840, quando da antecipação da maioridade de d. Pedro ii. Esse nível não se evidencia nos nomes dos personagens, mas nas suas motivações - as opiniões políticas de Policarpo fazem parte do enredo, induzem-no a agir daquela maneira. O fato de que são ocultas é igualmente significativo em um nível realístico, bem como qualquer outro detalhe na superfície da história; as opiniões políticas de Policarpo não têm "validade pública", nem chance de concretização, e daí serem mostradas como que forçadas a encontrar outras saídas e não serem compreendidas pelo narrador. Em outras palavras, esse nível de significado não está anexado, separado ou paralelo ao enredo - é parte integrante dele. O artigo sobre "Capítulo dos chapéus" tem como origem um único detalhe, o título de um dos livros lidos por Mariana, a protagonista: Le mot de l'énigme, de Madame Augustus Craven, autora que caiu em total esquecimento. Mas a releitura do seu romance revela um significado latente e muda a nossa visão a respeito do tema de casamento e adultério que a história conta.12 O capítulo 10, ensaio sobre Eça de Queirós, é outro exemplo desse mesmo "método". Ao ler Os Maias, sem dúvida com a visão de um editor de crônicas, desejoso de não deixar escapar nenhum detalhe (consciente, também, de como as referências políticas, em particular, tinham um significado profundo no período e que, em grande medida, já se perdeu), três menções isoladas ao político francês, agora esquecido, Léon Gambetta, revelam alguns dos níveis mais elevados (ou profundos) de significado do romance. A quarta e última linha de pensamento que tem sua origem em Casa velha é, o que talvez surpreenda, sexual. Minha curiosidade foi instigada, e não encontrou mais sossego, quando me deparei com a extraordinária referência ao estupro homossexual na Itália renascentista na novela: "o modo descomunalmente sacrílego e brutal com que um dos Farnese tratara o bispo de Fano". [...]