1. Hoje o futebol está morto, e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim no dia 12 de fevereiro de 1989. Não para o meu irmão Bruno. Não para alguém que tinha onze anos, como ele, e se dispunha a percorrer tantos quarteirões até o ponto de ônibus. Já tínhamos feito o trajeto em noites de chuva, em feriados sem um único armazém aberto, sempre a mesma espera e os mesmos bancos de plástico. O calor de Porto Alegre é uma experiência à parte, os cheiros são macilentos e o ar é de uma espessura insalubre, e sair ao meio-dia de casa não era garantia de lugar na arquibancada. Para lá iam aposentados tristes, alcoólatras de todas as profissões, gente que brotava dos morros e conjuntos habitacionais, quase oitenta mil pessoas com o mesmo objetivo. Naquele domingo, às seis da tarde, no gramado do Beira-Rio, estádio do Inter, o Grêmio enfrentaria seu maior rival no jogo que ficou conhecido como Gre-Nal do Século. Bruno acordou mais cedo do que eu. Nós morávamos num apartamento pequeno e dividíamos o quarto. Ouvi os barulhos dele na sala, o rádio em volume baixo. Em Porto Alegre a cobertura esportiva era impregnada de marchas militares e propaganda de tinta. Meu irmão se preparou durante a semana, não havia o que o distraísse daquelas entrevistas preguiçosas: as primeiras considerações sobre o dia, o nutricionista explicando o que os jogadores teriam para o almoço. Filé e purê de batatas, o homem dizia, uma salada leve e frutas. Alguma novidade?, perguntei para Bruno ao levantar. Eram por volta de nove horas, e os times haviam sido definidos na sexta. Estava em disputa a passagem para a final do Campeonato Brasileiro, uma vaga na Libertadores da América, um tabu de treze clássicos e dois anos de vitórias do Grêmio. Esses dois anos coincidiam com as primeiras vezes que levei Bruno ao estádio. De certa maneira é sorte, toda criança sabe se a sua geração foi premiada. Para ele havia o conforto de ter onze anos em 1989, e não em 1979, final de uma década em que o Inter contou com Manga, Falcão e Carpeggiani. Agora a história era outra, a memória recente é que fazia Bruno ter confiança numa escalação de aparência tão heróica: o goleiro do Grêmio era Mazaropi, o lateral direito era Alfinete, o zagueiro central era Trasante, o quarto-zagueiro era Luís Eduardo. Eu tinha quinze anos nessa época, o que me levava a tomar café com uma expectativa diversa. Era o dia mais importante da vida de Bruno, mas para mim já havia outras coisas: o fato de não termos ido para a praia uma única vez, de termos passado a temporada em Porto Alegre, eu sem nenhuma outra forma de distrair meu irmão a não ser aquele campeonato, que culminou naquela semifinal. Às nove e vinte eu comi um pedaço de pão torrado, manteiga, a mãe ainda dormia no quarto. O governo preparava o lançamento do Plano Verão, e na capa do jornal havia uma notícia sobre a retirada das tropas russas de Cabul. O resto era ocupado por fotos das atrações da tarde: Marcos Vinicius, pelo lado do Grêmio, e Nilson, pelo do Inter. 1989 foi daqueles anos que, mesmo à distância, tanto tempo passado, dá para reconstituir mês a mês, dia a dia. Foi o ano em que ninguém em casa teria interesse pelo Afeganistão. Em que ninguém em casa se preocuparia com a União Soviética, a Alemanha, a China. Em que o único foco de atenção na nossa casa seria uma TV ligada num debate local, às vezes a gritaria era interrompida por flashes das concentrações. Você pegou o seu ingresso?, perguntei para Bruno antes de sairmos. Esconda na meia, e fique sempre perto de mim. O ônibus estava cheio e fizemos o trajeto de pé. Cidade Baixa, Menino Deus, a Padre Cacique inteira a menos de dez por hora. Descemos um pouco antes, era mais prático ir caminhando até a rampa que conduzia à roleta, depois à grade, depois ao túnel. O interior do Beira-Rio parece sempre maior, mais perigoso, e ao ser empurrado para o alto, ao me espremer com Bruno perto das organizadas, da respiração do bumbo e da maconha e do suor, eu pela primeira vez me fiz as perguntas devidas. Eu estava nervoso? Eu estava preparado para aquele longo dia?