1. AGORA EU ERA O HERÓI O personagem principal, Chico Buarque de Hollanda, já não se lembra da história. Mas o publicitário Luiz Vergueiro, que dela participou, conservou-a com detalhes na memória, até mesmo pelo sufoco que passou. Ele era o produtor do musical Balanço de Orfeu e a estréia, no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo, estava marcada para 7 de dezembro de 1964. Dois dias antes, impaciente, Luiz esperava pela música que havia encomendado a seu amigo Chico - e da qual, em boa medida, dependeria o sucesso da noitada. A primeira parte do show, Na onda do balanço, seria como um diálogo entre a Bossa Nova, já não tão nova assim, e a nascente Jovem Guarda, movimento em que muitos viam uma inquietante ameaça à "pureza" da música brasileira. De um lado, nesse diálogo, estaria o jovem cantor Taiguara; do outro, uma cantora que acabaria não seguindo carreira, Claudia Gennari. Ele "engajado", ela "alienada", conforme o imperioso jargão da época. No final, previsivelmente, triunfaria a Bossa Nova - e, para que não pairasse dúvida, a moral da história seria resumida numa canção, a tal encomendada a Chico, a ser cantada por todos os participantes do espetáculo. Pelas sete da noite do dia 5, um sábado, aparece o compositor - e Luiz Vergueiro quase tem um ataque, pressentindo o desastre: a música (que ali mesmo se perdeu para sempre) até não era ruim, mas simplesmente não servia, não passava a mensagem de Na onda do balanço - e o espetáculo, inadiável, seria na segunda-feira. Chico saiu furioso. No dia seguinte, às dez da manhã, o produtor o vê chegar outra vez, "os olhos vermelhos pela noite em claro e um tremendo bafo de cana", e com uma canção ainda quentinha no violão. Era "Tem mais samba", que muitos anos mais tarde Chico escolheria como marco zero de sua obra e que poderia ser tomada, também, como ilustração de uma das constantes de seu trabalho: a criação por encomenda (aquela foi a primeira), contra o relógio mas nunca em prejuízo da beleza e do prazer de criar. Para trás de "Tem mais samba" ficou o que Chico chama de sua pré-história musical. Uma espécie de porão sonoro onde ele resolveu trancafiar uma produção a seu ver demasiadamente juvenil. Velhas canções que não chegaram ao disco, mas que alguns de seus contemporâneos ainda sabem de cor, como "Alvorada", "Desencanto" e "Malandro quando morre". Ou como "Teresa tristeza" e "Roda-gigante", gravadas pelo MPB-4 e por Os Cariocas, respectivamente. Sobretudo "Marcha para um dia de sol", a composição mais famosa do estudante de arquitetura Francisco Buarque de Hollanda, vinte anos de idade na época do Balanço de Orfeu, e a primeira a ser gravada em disco, por Maricene Costa: Eu quero ver um dia numa só canção o pobre e o rico andando mão em mão Que nada falte que nada sobre o pão do rico o pão do pobre Mil vezes cantada em shows estudantis, a música ficou mais conhecida como "João XXIII", apelido posto pelo disc-jóquei e produtor musical Walter Silva, o Picapau, que viu naqueles versos o tom conciliador das encíclicas do papa Angelo Roncalli. É bem mais fundo, porém, o baú musical de Chico Buarque. Ele próprio, em depoimento ao produtor e historiador musical Zuza Homem de Mello, puxou de lá uma referência a marchinhas de Carnaval feitas aos nove anos, durante a primeira temporada que passou na Itália, em 1953-55. E uma de suas quatro irmãs, Ana Maria, a Baía, lembra-se dele aos doze, treze anos, em São Paulo, compondo "umas operetas" com Miúcha - apelido, porque "miúda e mexedeira", de Heloísa, a mais velha dos sete filhos de dona Maria Amélia e do historiador Sérgio Buarque de Holanda (Holanda com um L só, ao contrário da sua prole). Nascido em 19 de junho de 1944, na Maternidade São Sebastião, no Catete, centro do Rio de Janeiro, Chico é o quarto filho do casal, e o último dos homens, mais novo que Sérgio e Álvaro. Depois dele vieram, pela ordem, Maria do Carmo, a Piii (de Pinininha, corruptela de "pequenininha"), Ana Maria (cujo nome, na pronúncia infantil "Anda Baía", acabou levando ao apelido Baía) e Cristina. Na época das tais "operetas" (fase que não por acaso se seguiu àquela temporada italiana), a família vivia em São Paulo, para onde se mudara em 1946, quando Sérgio Buarque de Holanda foi nomeado diretor do Museu do Ipiranga. A casa, no bairro de Pinheiros, ficava na rua Henrique Schaumann, que ainda não tinha sido transformada na larga avenida que viria a ser. (Não longe dali, na esquina da Henrique Schaumann com a Cardeal Arcoverde, já existia a igreja do Calvário, no cocuruto de um morro, e um dia, tendo caminhado até lá, Chico voltou correndo e anunciou a uma das irmãs: "Descobri onde São Paulo acaba!". Para além dos fundos da igreja, ele conta, onde hoje passa a avenida Paulo VI, "não havia nada", abria-se um descampado para os lados do Sumaré.) Pois bem, naquela casa havia um gravador de rolo que, para a criançada, era a "máquina de passar pito" - o pai (ou um amigo dele, o poeta, crítico e historiador de arte Paulo Mendes de Almeida, na verdade o dono do aparelho) tinha gravado uma bronca, de brincadeira mas em tom assustador. Era nesse gravador que a meninada passava a limpo as "operetas" de Chico. Ana se recorda de ter sido, numa delas, uma princesinha, e ele, "um rei muito mandão". Eu não posso compreender a arte de viver Ninguém me entende ninguém me compreende esgoelava a princesinha, na vida real quatro anos mais nova que o autoritário monarca. A Piii, sem que ela merecesse, cabia sempre o papel de má nessas histórias. Era uma família marcada pela paixão da música, e não parece casual a circunstância de Sérgio e Maria Amélia (ela carioca, de ilustre sobrenome Carvalho Alvim, neta de um ex-governador de Minas e prefeito do Distrito Federal, ele paulistano do bairro da Liberdade, sem nenhum parentesco com o dicionarista alagoano Aurélio Buarque de Holanda Ferreira) terem se conhecido num Carnaval, no Rio de Janeiro, em 1935. Num procedimento que à época era comum, quem pediu a mão da moça em nome de Sérgio foi seu amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade, cabendo a outro, Prudente de Moraes, neto, igualmente escritor, dar informações abonadoras à família de Maria Amélia. Quando se casaram, na capelinha do Outeiro da Glória, em fins de 1936, fazia poucos meses que o noivo publicara o livro que o crítico Antonio Candido considera "um clássico de nascença", Raízes do Brasil. O professor, que morreria em 1982, aos setenta e nove anos de idade, arranhava um piano desde criança, gostava de sambas antigos, de música italiana, cantava "Adiós, muchachos" em alemão e trauteava a marchinha "Saçaricando" em latim, numa versão atribuída ao professor de português Antônio Salles: Sa-saçaricantes omnes gentes degent vitam in filo ferreo Também de farra (pois se tratava, no dizer de Antonio Candido, um de seus amigos mais chegados, de "um erudito inclinado à molecagem"), Sérgio Buarque de Holanda chegou a fazer uma ou duas músicas com Miúcha - uma delas, um sambinha intitulado "Larga da minha perna": Larga da minha perna, rapaz cai fora vai passar essa cantada em alguém que te dê bola E o breque: Não me amola! Esse lado menos conhecido do autor de Raízes do Brasil deixaria em Chico lembranças vitalícias - como uns versos em língua espanhola, de autor desconhecido, que o garoto ouvia o pai cantarolar e que, mais de cinqüenta anos depois, haveria de recuperar como mote na canção "Outros sonhos", incluída no disco Carioca, de 2006: Soñé que el fuego helaba Soñé que la nieve ardía Y por soñar lo imposible Soñé que tu me querías Quando Sérgio completou sessenta anos, em 1962, a filharada juntou-se para homenageá-lo com uma parceria de múltiplas gargantas: Salve o nosso sessentão Que ainda vai virar quatrocentão Mas chamar ele de velho, isso é demais Ele até que ainda tem panca de rapaz Gosta de uísque, de um bom papo e de fofoca Dança twist com qualquer velha coroca Ele é boêmio mas não quer saber do Rio Gosta do mar só dentro de um navio Toma remédio dia e noite sem parar Roupa marrom ele diz que dá azar Mas chamar de velho, isso é demais A velhice há muito tempo Deixou pra trás Na árvore genealógica dos Buarque de Hollanda floresce um ramo musical na pessoa do compositor Luiz Moreira. Irmão da avó paterna de Chico, ele foi casado com Abigail Maia, atriz famosa (mulher, depois, do teatrólogo Oduvaldo Vianna), e morreu moço, em 1920, durante um ensaio de O guarani no Teatro João Caetano. E sempre houve, em torno de Sérgio e Maria Amélia, uma nutrida fauna musical. Vinicius de Moraes era um que freqüentava a casa, e vem daí a lenda de que um dia, distraído, por pouco não ia desabando numa poltrona onde dormia um bebê - seu futuro amigo, parceiro e compadre Chico. Lenda mesmo: a criança era Cristina. As quatro moças Buarque de Hollanda armavam afiados vocais, não raro ao som do violão de Ana, ruinzinho, que por ser feito de madeira avermelhada, no tom da antiga caixa do afamado requeijão, ficou sendo o "Catupiry". Chico logo se juntou a elas. "Dos três irmãos, era o único que gostava de cantar", contará Miúcha anos depois - e desfiará lembranças do tempo em que a família, tendo se mudado da Henrique Schaumann, morava num casarão em estilo normando na rua Buri, no bairro do Pacaembu: "O caramanchão meio afundado pelo peso das buganvílias era a nossa Broadway. Cantávamos para a rua, bem alto, desejando que cada carro parasse para nos ouvir, tão encantados com as músicas da gente. Às vezes um carro parava mesmo, geralmente um casal de namorados trocando carinhos no escuro, e isso era a glória máxima." Antes disso, menino, Chico tinha mania de cantar escondido atrás da porta, para dar a impressão de que a voz saía de um rádio - o rádio que os patrões haviam dado de presente à babá (depois cozinheira, quando o pessoal cresceu) Benedita Motta, ao completar dez anos de casa. Era também da querida Babá - filha de índios paraenses que viverá até 1993, sempre na família - o único aparelho de televisão que havia então ali, por ela comprado nos anos 1960, quando seu menino Chico começou a brilhar nos festivais de MPB. "Ele era metido a repetir as músicas que ouvia", lembra-se dona Maria Amélia. Quando foi para a Europa, aos oito anos - o pai ia lecionar Estudos Brasileiros na Universidade de Roma -, despediu-se da avó paterna, dona Heloísa, com um bilhete não muito animador: Olhe, vozinha, não se esqueça de mim se quando eu chegar aqui e você já estiver no Céu. Lá mesmo veja, eu sou um cantor do rádio. Francisco. [...]