1. D. PEDRO II E PEDRO D'ALCÂNTARA D. Pedro II governou o Brasil de 23 de julho de 1840 a 15 de novembro de 1889. Foram 49 anos, três meses e 22 dias, quase meio século. Assumiu o poder com menos de quinze anos em fase turbulenta da vida nacional, quando o Rio Grande do Sul era uma república independente, o Maranhão enfrentava a revolta da Balaiada, mal terminara a sangrenta guerra da Cabanagem no Pará, e a Inglaterra ameaçava o país com represálias por conta do tráfico de escravos. Foi deposto e exilado aos 65 anos, deixando consolidada a unidade do país, abolidos o tráfico e a escravidão, e estabelecidas as bases do sistema representativo graças à ininterrupta realização de eleições e à grande liberdade de imprensa. Pela longevidade do governo e pelas transformações efetuadas em seu transcurso, nenhum outro chefe de Estado marcou mais profundamente a história do país. D. Pedro foi um Habsburgo perdido nos trópicos. Um homem de 1,90 m, louro, de penetrantes olhos azuis, barba espessa, prematuramente embranquecida, num país de pequena elite branca cercada de um mar de negros e mestiços. Órfão de mãe logo depois de completar um ano de idade, de pai, aos nove, virou órfão da nação. Dela recebeu, via tutores e mestres, uma educação rígida, propositalmente distinta da do pai. Seus educadores procuraram fazer dele um chefe de Estado perfeito, sem paixões, escravo das leis e do dever, quase uma máquina de governar. Passou a vida tentando ajustar-se a esse modelo de servidor público exemplar, exercendo com zelo um poder que o destino lhe pusera nas mãos. Este foi d. Pedro II, imperador do Brasil. Mas, detrás dessa máscara, reforçada pelos rituais da monarquia, havia um ser humano marcado por tragédias domésticas, cheio de contradições e paixões, amante das ciências e das letras, apaixonado pela condessa de Barral. Este foi Pedro d'Alcântara, cidadão comum, que detestava as pompas do poder. No Brasil, predominava a máscara do imperador d. Pedro II. Na Europa e nos Estados Unidos, ressurgia o cidadão Pedro d'Alcântara. Mas uma paixão mais forte evitou o dilaceramento interno, permitiu que os dois Pedros convivessem, embora sob tensão permanente. Foi a paixão pelo Brasil. Ela marcou a vida de d. Pedro II e de Pedro d'Alcântara, possibilitando que o homem que os abrigava se dedicasse integral e persistentemente à tarefa de governar o Brasil por meio século. Ele o fez com os valores de um republicano, com a minúcia de um burocrata e com a paixão de um patriota. Foi respeitado por quase todos, não foi amado por quase ninguém. 2. ÓRFÃO DA NAÇÃO D. Pedro nasceu em 2 de dezembro de 1825. Era três anos mais moço do que o Brasil, e sua gestação foi tão trabalhosa quanto a do país. O pai, d. Pedro I, enfrentava no momento sérias dificuldades políticas. Tivera uma lua-de-mel com a nação durante os anos de 1822 e 1823. Proclamara a independência, fora aclamado imperador e defensor perpétuo do Brasil. Mas, ao dissolver a Assembléia Constituinte em novembro de 1823, deu início a um lento e penoso processo de divórcio político com a nação. Como conseqüência da dissolução, Pernambuco e outras províncias do Norte revoltaram-se no ano seguinte e proclamaram a Confederação do Equador, movimento separatista e republicano, cuja cabeça pensante foi Frei Caneca. A revolta foi combatida e derrotada, mas o julgamento dos líderes, feito em rito sumário e com muito rigor por um tribunal de exceção, uma comissão militar, aumentou a rejeição ao imperador. No mesmo ano do nascimento de d. Pedro, doze líderes da Confederação, entre os quais Frei Caneca, foram enforcados ou fuzilados. A boa notícia do ano foi o reconhecimento da independência por Portugal, mas, em contrapartida, o Brasil entrou em guerra contra as Províncias Unidas do Prata, atual Argentina. O parto que trouxe Pedro d'Alcântara ao mundo demorou cinco horas. Mas o sétimo filho da imperatriz d. Leopoldina nasceu com aparência robusta, medindo 47 centímetros. Era a terceira tentativa da sua mãe de dar a Pedro I um filho homem. Depois da primogênita, Maria da Glória, nascera em 1820 o primeiro filho, d. Miguel, que morreu logo em seguida. O segundo, d. João, nascido em 1821, faleceu antes de completar um ano. Depois, nos três anos seguintes, só vieram mulheres, Januária, Paula Mariana e Francisca. Para interromper a seqüência de filhas, Leopoldina recorreu a médicos franceses e até mesmo aos serviços de uma esperta madame que se vangloriava de, mediante pagamento, determinar o sexo dos filhos. A loteria da natureza favoreceu a vigarista, que cobrou seu preço. Houve muita celebração na capital em virtude do nascimento. As casas iluminaram-se durante quatro dias. O veador da Casa Imperial, brigadeiro Francisco de Lima e Silva, pai do futuro duque de Caxias, apresentou o menino à corte. A tarefa era bem mais agradável do que a que executara um ano antes, presidindo a comissão militar que condenara à morte os rebeldes da Confederação do Equador. No batizado, em 9 de dezembro, foi executado um te-déum de autoria de Pedro I. Em 2 de janeiro de 1826, foi a vez de se pedir para o menino a proteção de Nossa Senhora da Glória, na igreja do Outeiro. Conforme o costume da época, a amamentação da criança ficou por conta de ama-de-leite. Para o cargo, foi escolhida uma robusta suíça, Maria Catarina Equey, residente na colônia do Morro do Queimado, futura Nova Friburgo. Apesar da aparência saudável ao nascer, d. Pedro não foi criança sadia. Em 1827, o visconde de Barbacena o achava um menino "magrinho e muito amarelo". Herdara, ele e a irmã Januária, do pai, via Bourbon da Espanha, a epilepsia. Desde 1827 até as vésperas da maioridade, em 40, sofreu vários ataques. Já no exílio, se lembraria de um desses ataques, sofrido em 1833, descrevendo-o como uma "indigestão minha com convulsões e que quase matou-me". Não era indigestão, mas um ataque epiléptico, que foi, de fato, considerado pelos médicos da época como séria ameaça à vida do menino. Mas saúde precária não foi o maior dos infortúnios da criança. A palavra que melhor define sua infância é orfandade. Azares da vida e vicissitudes políticas assim o determinaram. Perdeu a mãe quando tinha apenas um ano e nove dias de idade. Não conheceu o avô, d. João VI, que morrera em Lisboa em 1826. A avó, d. Carlota Joaquina, filha de Carlos IV da Espanha, retornara a Portugal em 1821, onde morreria em 7 de janeiro de 1830. O pai, d. Pedro I, e a madrasta, d. Amélia de Leuchtenberg, deixaram o Brasil em 13 de abril de 1831, logo após a abdicação. Ao ser aclamado imperador pela multidão reunida no Campo de Santana, em 7 de abril de 1831, d. Pedro II tinha cinco anos e cinco meses de idade, e tornou-se um órfão da nação, como passou a ser chamado. Um órfão acompanhado de três órfãs, as irmãs Januária, Paula Mariana e Francisca. Seria difícil imaginar infância e juventude mais infelizes para quem nascera em berço de ouro. Dos primeiros cinco anos de vida pouca coisa lhe deve ter restado na memória. Do pai, guardou algumas boas lembranças. Da mãe, só sabia "o que os outros dela me referiram". Os outros eram naturalmente as pessoas que freqüentavam o paço imperial. Uma delas seria sua aia e camareira-mor, d. Mariana Carlota, futura condessa de Belmonte. D. Mariana, ou Dadama, como d. Pedro a chamava, era portuguesa, viúva, mulher muito religiosa, que viera para o Brasil na comitiva do príncipe regente. Foi a mãe de criação de d. Pedro e o acompanhou até a maioridade. Ela, ou o futuro tutor, José Bonifácio, ou mesmo o abade Boiret, capelão-mor do Exército, talvez lhe tenham falado de sua infância. É de todo provável que tenham falado muito bem de d. Leopoldina, elogiado o pai e demonizado d. Domitila de Castro, amante de d. Pedro I, detestada por José Bonifácio e d. Mariana. A arquiduquesa Leopoldina era uma Habsburgo-Lorena, filha de Francisco I, imperador da Áustria e chefe de uma das mais prestigiosas casas reais da Europa. Sua irmã, Maria Luísa, casara-se com Napoleão I. Tinha fina educação e rígidos princípios religiosos, em nítido contraste com os maus modos e os costumes frouxos do marido. Chegara ao Rio de Janeiro em 1817, com vinte anos de idade. No período crucial em que José Bonifácio esteve no governo, de janeiro de 1822 a julho de 1823, atuara abertamente na política, exercera o cargo de regente durante viagem de d. Pedro a São Paulo e presidira à reunião do Conselho de Estado que decidiu pela independência. O futuro Patriarca, ao tomar conhecimento de sua carta a d. Pedro, a mesma lida pelo imperador às margens do Ipiranga, teria comentado: "Meu amigo, ela deveria ser ele!". Depois do regresso de d. João VI, seu protetor, e da saída de José Bonifácio e da inglesa Maria Graham, tutora de suas filhas, a vida na corte tornou-se um martírio para a imperatriz. Além das intrigas e mesquinharias, o motivo principal de seu tormento era a presença ostensiva em palácio, desde 1823, de Domitila de Castro. D. Pedro tivera e tinha várias amantes, que lhe deram dezenas de filhos. Mas a nenhuma outra concedera a condição de concubina oficial. Conhecera Domitila durante a viagem a São Paulo de que resultou a proclamação da independência. Grávida do herdeiro do trono, d. Leopoldina teve de aturar a nomeação da amante para o cargo de sua primeira-dama. Para aumentar a humilhação, nascera, em 1824, Isabel Maria Brasileira, primeira filha do imperador com Domitila. Isabel Maria foi legitimada em 1826, mesmo ano de promoção da concubina a marquesa de Santos. Leopoldina extravasava suas mágoas em cartas a Maria Graham e à irmã Maria Luísa, a quem escreveu em 1823: "Encontro-me numa perfeita solidão, restringida exclusivamente aos passeios a cavalo". Nesses passeios, que fazia acompanhada do abade Boiret, colhia plantas, minerais e animais. Guardava-os em seu gabinete de história natural e no pequeno zoológico que montara na ilha do Governador, ou os remetia ao pai, à irmã, ou a algum museu europeu. Em maio de 1826, d. Pedro concedeu à filha bastarda o título de duquesa de Goiás e a apresentou à imperatriz. Leopoldina recolheu-se em prantos. "Estremeço de raiva quando a vejo", escreveu. O escândalo imperial repercutia na imprensa e nas ruas. O revolucionário Cipriano Barata e outros exilados enviaram do exílio em Buenos Aires um violento panfleto em que acusavam Pedro I de ser "marido brutal, que, escandalosamente libertino, nada respeita de quanta mocidade há na corte de ambos os sexos, idade e cores; e trata depois com as formas mais indecentes, e rasteiras à lamentável de sua esposa". Apareciam na imprensa caricaturas representando d. Pedro como cavalo de cabriolé sendo chicoteado pela amante. Leopoldina entrou em depressão profunda ou, na expressão da época, em crise de melancolia. Na última carta a Maria Graham, de 22 de outubro de 1826, registrou: "Estou desde há algum tempo numa melancolia realmente negra". Estava grávida de três meses. Quando d. Pedro exigiu que comparecesse a um beija-mão em companhia da amante, ela se recusou a obedecer. O imperador a teria então espancado na frente da marquesa. Leopoldina escreveu à irmã que o marido a maltratara "na presença daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgraças", cometendo um "horroroso atentado que será sem dúvida a causa da minha morte". De 1o. para 2 de dezembro, aniversário do filho, abortou um feto masculino. Entrou a delirar. Houve preces públicas nas igrejas, e muitas pessoas se dirigiram a São Cristóvão para saber notícias. Cartas anônimas ameaçavam ministros e Domitila, pasquins pediam o impedimento do imperador e o reconhecimento do herdeiro, sob a regência da imperatriz. A polícia teve de proteger a casa de Domitila. Leopoldina morreu na manhã do dia 11 de dezembro, aos 29 anos de idade. D. Pedro I estava no Rio Grande do Sul por conta da guerra contra as Províncias Unidas do Prata. Houve grande consternação na cidade. Imensa procissão noturna, que o pintor Debret descreveu e ilustrou, levou o corpo de São Cristóvão para a igreja do convento da Ajuda, onde foi enterrado. Hoje, os restos mortais da imperatriz jazem no Monumento do Ipiranga, em São Paulo, ao lado dos de Pedro I. O imperador prolongou por mais dois anos as relações com a amante. Somente a abandonou quando se tornou claro que nenhuma princesa européia aceitaria substituir Leopoldina enquanto a marquesa permanecesse no paço. Oito das consultadas já tinham recusado proposta de casamento. Afastada a amante, d. Amélia de Leuchtenberg aceitou, e o casamento realizou-se em 1829. Nos três anos que o precederam, d. Pedro I perdera a primeira imperatriz, a Guerra da Cisplatina e a popularidade. O filho conviveu com a madrasta menos de dois anos. Filha do vice-rei da Itália e enteada de Napoleão, d. Amélia era, na época do casamento, uma adolescente de dezessete anos. Seu relacionamento com o enteado parece ter sido carinhoso, como o atesta a carta de despedida que ela lhe escreveu. Com um sentimentalismo um tanto retórico, chamou d. Pedro de "menino querido" e fez um apelo às mães brasileiras para que adotassem como filho o órfão coroado. Manteve depois intensa correspondência com o enteado. Chegaram até nós umas seiscentas cartas, em que tentava, mesmo de longe, orientar o jovem imperador, como se deu por ocasião do casamento das filhas Isabel e Leopoldina. Em 1871, d. Pedro a visitaria em Portugal em seu palácio das Janelas Verdes. A correspondência entre os dois perdurou até a morte de d. Amélia em 1878. Embora d. Pedro não tenha tido oportunidade de conviver com a mãe, os dois se assemelhavam em muitos pontos. Era-lhes comum o amor aos livros e à ciência, especialmente à astronomia. O filho conservou o museu de história natural da mãe e o doou ao Museu Nacional com o título de Coleção Imperatriz Leopoldina. Tinham também em comum a obsessão pelo cumprimento do dever e buscavam refúgio no estudo quando atormentados pelo tumultuar dos sentimentos: "[...] procuro a minha felicidade no cumprimento exato do dever e estudando muito", escreveu Leopoldina à irmã. Com o pai, d. Pedro II tinha pouco em comum por razões de temperamento e, sobretudo, de educação. D. Pedro I era comandado por emoções, às vezes contraditórias, a que não aprendera a impor barreira alguma. Era impulsivo, romântico, autoritário, ambicioso, generoso, grosseiro, sedutor. Era capaz de grandes ódios e grandes amores. D. Pedro II foi educado para não se parecer com o pai. Ensinaram-lhe a controlar ódios e amores, a ser contido, racional, equilibrado, previsível. Por trás do verniz da educação, no entanto, ferviam paixões, se não tão grandes quanto as do pai, pelo menos semelhantes a elas, tanto na vida privada como na vida pública. Na primeira, sua longa relação com a condessa de Barral e casos amorosos esporádicos com outras mulheres mostram que a diferença entre ele e o pai foi menos de conteúdo que de forma. As cartas dos dois às amantes o demonstram. Do lado do pai, a sensualidade explícita, a crueza e o mau gosto. Falava de "sua coisa", e chegou a mandar de presente para a amante uma camisa manchada com secreções blenorrágicas. Do lado do filho, a delicadeza, as referências indiretas, as boas noites, as confissões de saudade. Seus presentes eram retratos, livros, objetos de arte. Na vida pública, o amor pelo país era de ambos, se não maior no filho. Variava o estilo, arroubado e inconstante em um, meticuloso e persistente no outro.