Trecho do livro POLÍTICA CULTURA E CLASSE NA REVOLUÇÃO FRANCESA

INTRODUÇÃO Uma interpretação da Revolução Francesa J'avais vu que tout tenoit radicalement à la politique, et que, de quelque façon qu'on s'y prit, aucun peuple ne seroit jamais que ce que la nature de son Gouvernement le feroit être; ainsi cette grande question du meilleur Gouvernement possible me paroissoit se reduire à celle-ci. Quelle est la nature de Gouvernement propre à former un Peuple le plus vertueux, le plus éclairé, le plus sage, le meilleur enfin à prendre ce mot dans son plus grand sens. Jean-Jacques Rousseau, Les Confessions Ao proclamar que "tudo dependia fundamentalmente da política", Rousseau estava fazendo uma afirmação provocativa e ambígua. A seu ver, o alicerce da vida social era a política, e não os costumes, a moral ou a religião. O caráter de um povo dependia da natureza de seu governo. Aludindo à "grande questão do melhor governo possível", Rousseau indicou que o governo poderia muito bem ser diferente do que era - poderia ser melhor. Mas de onde viria esse governo? Como algum mortal poderia determinar o que tornava um povo "o mais virtuoso, o mais esclarecido, o mais sábio, o melhor"? Como um governo poderia ser mais esclarecido que o povo que ele se destinava a moldar? Os revolucionários franceses tiveram de confrontar justamente essas questões. Adotaram Rousseau como guia espiritual, mas Rousseau foi mais vago precisamente onde eles se viram diante das decisões mais cruciais. Dada a oportunidade única de renegociar o contrato social, que forma ele deveria assumir? Qual era a vontade geral na França na década de 1790? Qual era o melhor governo possível, entendendo-se governo, como fez Rousseau, "no sentido mais amplo da palavra"? A Revolução mostrou quanto tudo dependia da política, mas o fez de maneiras que teriam surpreendido Rousseau se ele tivesse vivido mais quinze anos. Os revolucionários não apenas debateram as clássicas questões do governo, como as virtudes da monarquia comparadas às da república, ou da aristocracia comparadas às da democracia. Eles também agiram baseados nessas questões, de maneiras inéditas e surpreendentes. No calor do debate e conflito político, a própria concepção do "político" expandiu-se e mudou de forma. A estrutura da organização política mudou sob o impacto da crescente participação e mobilização popular; a linguagem, o ritual e as organizações políticas assumiram, todos, novas formas e significados. Como Rousseau profetizou, mas só poderia ter imaginado muito vagamente, o governo tornou-se um instrumento para moldar o povo. O deputado Grégoire declarou em janeiro de 1794: "O povo francês foi além de todos os outros povos; contudo, o detestável regime de cujos vestígios estamos nos livrando ainda nos mantém a grande distância da natureza; existe ainda enorme lacuna entre o que somos e o que poderíamos ser. Apressemo-nos a preencher essa lacuna; reconstituamos a natureza humana dando-lhe nova estampa". Da notável experiência moldada por esse objetivo de reorganização e regeneração provém a maioria de nossas idéias e práticas políticas. No fim da década revolucionária, os franceses (e os ocidentais, de modo mais geral) haviam aprendido um novo repertório político: a ideologia aparecia como um conceito, e ideologias concorrentes desafiavam a tradicional cosmologia européia de ordem e harmonia; a propaganda associava-se a propósitos políticos, os clubes jacobinos demonstravam o potencial dos partidos políticos de massa, e Napoleão, afirmando estar acima dos partidos, estabelecia o primeiro Estado policial secular. Os franceses não inventaram a política nem o conceito do político, mas, por razões ainda não plenamente compreendidas, conseguiram investi-los de extraordinário significado emocional e simbólico. Passo a passo, às vezes apenas com uma vaga percepção do que estava acontecendo, os franceses fundaram uma tradição revolucionária que perdura até nossos dias. Paradoxalmente, enquanto multiplicavam as formas e significados da política, os franceses mais revolucionários agiram movidos por uma profunda desconfiança de tudo o que fosse explicitamente político. Figuras políticas eminentes nunca se intitulavam políticos; serviam ao "bem público" (la chose publique), e não a um tacanho "espírito partidário" (esprit de parti). Os políticos e a atividade política eram consistentemente identificados com pequenez, mesquinharia, divisionismo, partidarismo, oportunismo, vaidade e egoísmo. Enquanto censuravam todas essas perversões do antigo ideal do Homo politicus, os revolucionários fizeram a travessia para a era moderna: desbravaram uma nova fronteira política interna e colheram os imprevistos frutos da democracia e autoritarismo, socialismo e Terror, ditadura revolucionária e guilhotina. A inesperada invenção da política revolucionária é o tema deste livro. Não temos muita noção de quanto a política revolucionária foi surpreendente na década de 1790. Quase todo livro didático de história aponta 1789 como o divisor de águas da era moderna, e a Revolução Francesa é um dos eventos mais analisados na historiografia do Ocidente. Justamente por isso, perdeu o frescor e a novidade. Em retrospecto, o momento crítico parece muito óbvio; como seria nosso mundo sem partidos, ideologias, ditadores, movimentos de massa e até mesmo sem a retórica política antipolítica? Os recentes debates acadêmicos sobre a Revolução também não parecem dar a devida ênfase ao evento. Nas polêmicas, o que está em questão não é o caráter da experiência revolucionária em si, mas suas origens e resultados a longo prazo. A Revolução serve meramente como veículo de transporte entre causas e efeitos de longo prazo; como resultado, o surgimento de uma política revolucionária passou a ser visto como uma conseqüência inevitável. As três principais escolas interpretativas têm essa mesma preocupação com origens e resultados. A interpretação marxista da Revolução ultimamente tem estado sob fogo cerrado, em parte porque é a mais fundamentada na teoria. O próprio Marx tinha profundo interesse pela história da Revolução Francesa. Em meados da década de 1840, reuniu documentação e leu muito, preparando-se para escrever a história da Convenção Nacional. Interesses políticos imediatos, e também seu estudo mais geral do capitalismo, impediram-no de se dedicar ao projeto até o fim. Mesmo assim, em todos os textos historiográficos de Marx, a Revolução serviu de pedra de toque: favoreceu o desenvolvimento do capitalismo, eliminando o estrangulamento feudal da produção, e conduziu a burguesia como classe ao poder. Esses dois elementos inseparáveis - o estabelecimento de uma estrutura jurídica adequada para o desenvolvimento capitalista e a luta de classes vencida pela burguesia - caracterizaram desde então os relatos históricos marxistas da Revolução. Como mais recente defensor da "historiografia clássica da Revolução Francesa", Albert Soboul afirmou que a Revolução marcou "o surgimento, o crescimento e o triunfo final da burguesia". Na interpretação marxista, a Revolução teve natureza burguesa porque suas origens e resultados foram burgueses. Os historiadores marxistas identificam as origens da Revolução no modo decidido como a burguesia se impôs por ocasião da reação aristocrática na década de 1780, e acham que o resultado foi o triunfo distintamente burguês do modo de produção capitalista. A variável interveniente - a vivência da Revolução - é considerada da perspectiva de sua contribuição para essa situação. A burguesia teve de aliar-se às classes populares para vergar a aristocracia feudal, precisou romper com as classes populares quando o sistema do Terror ameaçou sair de controle e foi obrigada a aliar-se a Napoleão para assegurar a consolidação dos ganhos burgueses em patrimônio e reforma jurídica. O resultado (a hegemonia econômica e social da burguesia) decorreu das origens (conflito de classes entre burguesia e aristocracia) de um modo aparentemente inexorável. A posição "revisionista" contesta a interpretação marxista em quase todas as frentes, mas em geral os revisionistas implicitamente aceitam a premissa central do argumento marxista, ou seja, de que interpretar a Revolução consiste em relatar suas origens e resultados sociais. Na primeira crítica abrangente à ortodoxia marxista, Alfred Cobban assegurou que a Revolução não foi feita pela burguesia no interesse do desenvolvimento capitalista, e sim por venais detentores de cargos públicos e profissionais liberais cujas fortunas estavam declinando. Suas ações acabaram beneficiando proprietários de terra em geral; na verdade, o vivenciamento da Revolução retardou o desenvolvimento do capitalismo na França. A explicação marxista, que Cobban chamou de "interpretação social", equivocou-se quanto às origens e aos resultados da década de Revolução. Nessa mesma linha, outros críticos afirmaram que não havia um conflito de classe consciente entre burguesia e aristocracia antes da Revolução. Os aristocratas não estavam no caminho da burguesia; na verdade, compartilhavam com ela muitos interesses econômicos, sociais e políticos. Foi a aristocracia liberal, e não uma burguesia frustrada, que iniciou a revolução contra o despotismo monárquico. Quando se decidem a apresentar uma versão alternativa, os revisionistas, acompanhando Cobban, ainda baseiam sua análise nas origens e resultados sociais. A posição revisionista tem sido mais convincentemente sintetizada nos artigos de François Furet e Colin Lucas. Ambos afirmam que as origens da Revolução devem ser encontradas em uma crise de mobilidade social e preocupação com status em uma elite amalgamada composta de nobres e burgueses. O crescimento da população e da prosperidade no século XVIII não havia sido acompanhado de uma ampliação dos canais de promoção social; em conseqüência, intensificou-se o atrito nas várias "zonas de tensão" na elite. Essa tensão explodiu em revolução quando o Parlamento de Paris obstinadamente insistiu para que os recém-convocados Estados Gerais adotassem os procedimentos estabelecidos em 1614. Essa decisão crucial precipitou uma compreensível mas desnecessária ruptura entre nobres e plebeus integrantes da elite. Nesse argumento sobre as origens está implícita a idéia de que o principal resultado da Revolução não foi o capitalismo, e sim a criação de uma elite mais unificada de notáveis, cuja principal característica era a propriedade da terra. Quando nobres e plebeus descobriram o preço de seus mal-entendidos e percepções errôneas, puderam voltar a unir-se tendo por base seus interesses essenciais comuns em uma sociedade na qual tanto riqueza como serviço público podiam determinar o status. Na explicação revisionista, a Revolução perde seu caráter predeterminado porque parece, de certa forma, ter sido um erro. Contudo, seu significado ainda é visto da perspectiva de sua contribuição para resultados sociais e políticos de longo prazo; o vivenciamento da Revolução simplesmente serve como corretivo para equívocos sociais e políticos prévios e como um processo de aprendizado por tentativa e (principalmente) erro; por exemplo, a burguesia aprendeu que depender do apoio popular poria em risco suas diletas reformas jurídicas e até mesmo sua capacidade de manter a lei e a ordem. Nesta visão, a Revolução foi um desvio drástico, porém efêmero, da tendência ao governo liberal da elite. Nas margens do debate sobre a interpretação social estão Alexis de Tocqueville e o argumento da modernização. Tocqueville não negou a importância das tensões sociais, mas enquadrou o conflito social em uma moldura essencialmente política; para ele, a Revolução representou o engrandecimento do poder do Estado e da centralização, e não o triunfo do capitalismo. Nenhuma classe venceu essa competição. Os franceses simplesmente tornaram-se mais iguais em sua inadvertida servidão a um governo autoritário. Tocqueville apontou as origens da Revolução (e das tensões sociais no século XVIII) nas práticas da monarquia absolutista. Para aumentar o poder do Estado, a monarquia destruiu os direitos políticos dos nobres e, com isso, tornou intoleráveis para outros grupos as pretensões sociais aristocráticas. Embora os revolucionários pensassem estar contestando o governo monárquico, acabaram criando um Estado ainda mais poderoso moldado na mesma monarquia absolutista. Portanto, também para Tocqueville, a Revolução foi apenas um elo na cadeia entre origens e resultados; o vivenciamento da Revolução facilitou inadvertidamente a transição de Luís XVI a Napoleão. Em estudo comparativo recente, Theda Skocpol analisa o tema tocquevilliano do crescente poder do Estado. Embora a autora concorde com Tocqueville na idéia de que o mais importante resultado da Revolução foi um Estado mais centralizado e burocrático, ela analisa as origens da Revolução de modo um tanto diferente. Como os Estados chinês e russo mais tarde, o Estado francês desmoronou porque não pôde atender às exigências militares da competição internacional moderna. A fraqueza estrutural dos "regimes monárquicos agrários" também os deixou suscetíveis a revoltas camponesas, as quais, no contexto revolucionário, destruíram as relações de classe agrárias preexistentes. A guerra (novamente, a competição internacional) favoreceu então o surgimento de elites revolucionárias centralizadoras e burocratizantes, que criaram um "edifício estatal moderno". Apesar de sua ênfase nas condições sociais estruturais prévias e no papel dos levantes camponeses, Skocpol assemelha-se a Tocqueville no modo como insere o vivenciamento da Revolução entre suas origens e resultados de longo prazo; o evento real da Revolução aparece somente nos interstícios do esquema. Aqui, tal qual na clássica análise de Tocqueville, a Revolução surge como o veículo da modernização do Estado. Como os debates interpretativos atuais concentram-se na análise das origens e resultados, não é de surpreender que as pesquisas sejam cada vez mais voltadas para os períodos precedente e subseqüente à década revolucionária. Grande parte das pesquisas tenciona pôr à prova a interpretação marxista. Oficiais do exército, magistrados e instituições culturais da elite do Antigo Regime foram examinados com vistas a determinar a realidade das divisões de classe pré-revolucionárias. As elites napoleônicas e pós-napoleônicas também foram estudadas, pois seu caráter social é relevante para a análise dos resultados da Revolução. Embora esses estudos tenham contribuído para a elaboração de uma posição revisionista, não forçaram os historiadores marxistas a abandonar suas premissas. Os marxistas simplesmente argumentam, em resposta, que a realidade das classes e do capitalismo tem de ser procurada em outro lugar ou de outro modo. Embora os historiadores marxistas e revisionistas tenham estudado os revolucionários e suas atividades, essas análises não produziram grande impacto sobre o esquema geral das origens e resultados. Os revisionistas afirmam que os conflitos revolucionários não tiveram nenhuma importância social particular ou que tiveram um significado social muito amplo e ambíguo (ricos versus pobres, Paris versus províncias). Quando os pormenores da interpretação marxista passaram a sofrer críticas crescentes, os historiadores marxistas refugiaram-se em posições mais estruturais: que diferença faz quem iniciou a Revolução ou quem detinha o poder em qualquer dado momento, contanto que suas origens e resultados possam ser identificados em uma época suficientemente anterior ou posterior para fundamentar a importância da luta de classes e do desenvolvimento do capitalismo? A interpretação tocquevilliana, em contraste, quase não estimulou estudos empíricos. Embora se assemelhe à marxista e à revisionista em sua ênfase nas origens e resultados, estes são concebidos em termos tão abrangentes e em um prazo tão longo que se mostram difíceis de comprovar empiricamente. O próprio Tocqueville, por exemplo, não vinculou o desenvolvimento do poder do Estado a nenhum grupo social específico; "democracia" e "igualdade" eram tendências estruturais generalizadas e, embora possam ter atuado como "vassouras gigantes", sua ação não parece ter sido obra de ninguém. Em conseqüência, a identidade e as intenções dos agentes revolucionários têm pouca relevância na interpretação tocquevilliana: "eles não tinham a mais vaga idéia disso", "nada estava mais distante de suas intenções", o "curso destinado" da Revolução não teve relação alguma com o que os revolucionários pensavam estar realizando. As três vertentes interpretativas compartilham esse descaso programático pelas intenções revolucionárias. Tocqueville e os que se inspiraram em sua análise negam a importância de quem eram ou o que pensavam os revolucionários, justificando que eles foram inconscientemente enredados em sonhos de poder absoluto, os quais, em última análise, moldaram o curso da Revolução. Marxistas e revisionistas parecem reconhecer a importância da identidade social, mas, apesar de suas análises diferentes, acabam mostrando a mesma desconfiança tocquevilliana contra as intenções e objetivos revolucionários. Como a identidade dos revolucionários não se encaixa nas interpretações marxista e revisionista (os revolucionários não eram capitalistas, nem - após 1791 - nobres liberais e plebeus da elite), ambas acabam negando a importância de quem foram os revolucionários ou do que eles julgavam estar fazendo. Na interpretação marxista, os revolucionários facilitaram o triunfo do capitalismo mesmo enquanto expressavam hostilidade ao capital, e na revisionista os revolucionários equivocadamente tiraram o processo de sua trajetória de governo liberal de notáveis. O que os revolucionários pretendiam não foi o que resultou da Revolução, portanto o que eles pretendiam não tem importância. Assim, o enfoque nas origens e resultados faz com que o vivenciamento da Revolução em si pareça irrelevante. Em conseqüência, as inovações revolucionárias nas formas e significados da política muitas vezes parecem predeterminadas ou inteiramente acidentais. Na interpretação marxista, o constitucionalismo liberal, a democracia, o Terror e o governo autoritário parecem ser todos assistentes da consolidação da hegemonia burguesa. Na análise tocquevilliana, todos servem ao progresso do poder centralizado. As explicações revisionistas são menos consistentes nesse aspecto, pois os revisionistas não se baseiam em um texto original comum, como as obras de Marx ou Tocqueville. Nos trabalhos de Richard Cobb, por exemplo, a política revolucionária expressa os ressentimentos e frustrações de uma minoria militante; não há uma lógica histórica imperativa por trás de suas ações. As pessoas tornam-se "terroristas", por exemplo, porque têm rancor contra os vizinhos. Enquanto nas interpretações marxista e tocquevilliana a política da Revolução é determinada pela trajetória necessária das origens aos resultados, na versões revisionistas a política parece fortuita porque não se encaixa no esquema de origens - resultados. A conseqüência final, porém, é a mesma; a política perde importância como objeto de estudo. [...]