1. TEMPO PASSADO O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum. Além de toda decisão pública ou privada, além da justiça e da responsabilidade, há algo inabordável no passado. Só a patologia psicológica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar. Não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele é convocado por um simples ato da vontade. O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente. Propor-se não lembrar é como se propor não perceber um cheiro, porque a lembrança, assim como o cheiro, acomete, até mesmo quando não é convocada. Vinda não se sabe de onde, a lembrança não permite ser deslocada; pelo contrário, obriga a uma perseguição, pois nunca está completa. A lembrança insiste porque de certo modo é soberana e incontrolável (em todos os sentidos dessa palavra). Poderíamos dizer que o passado se faz presente. E a lembrança precisa do presente porque, como assinalou Deleuze a respeito de Bergson, o tempo próprio da lembrança é o presente: isto é, o único tempo apropriado para lembrar e, também, o tempo do qual a lembrança se apodera, tornando-o próprio. É possível não falar do passado. Uma família, um Estado, um governo podem sustentar a proibição; mas só de modo aproximativo ou figurado ele é eliminado, a não ser que se eliminem todos os sujeitos que o carregam (seria esse o final enlouquecido que nem sequer a matança nazista dos judeus conseguiu ter). Em condições subjetivas e políticas "normais", o passado sempre chega ao presente. Essa obstinada invasão de um tempo (antigo) em outro (agora) irritou Nietzsche, que o denunciou em sua batalha contra o historicismo e contra uma "história monumental" repressora dos impulsos do presente. Inversamente, uma "história crítica" que "julga e condena" é a que corresponderia "àquele cujo peito é oprimido por uma necessidade presente e que, a todo custo, quer se libertar dessa carga". A denúncia de Nietzsche (que Walter Benjamin ouviu) se dirigia a posições da história traduzidas em poder simbólico e em uma direção sobre o pensamento. A história monumental afogava o impulso "a-histórico" de produção da vida, a força pela qual o presente arma uma relação com o futuro, e não com o passado. A diatribe nietzschiana contra o historicismo, articulada no contexto de seus inimigos contemporâneos, ainda hoje pode fazer valer seu alerta. As últimas décadas deram a impressão de que o império do passado se enfraquecia diante do "instante" (os lugares-comuns sobre a pós-modernidade, com suas operações de "apagamento", repicam o luto ou celebram a dissolução do passado); no entanto, também foram as décadas da museificação, da heritage, do passado-espetáculo, das aldeias Potemkin e dos theme-parks históricos; daquilo que Ralph Samuel chamou de "mania preservacionista"; do surpreendente renascer do romance histórico, dos best-sellers e filmes que visitam desde Tróia até o século XIX, das histórias da vida privada, por vezes indiferenciáveis do costumbrismo, da reciclagem de estilos, tudo isso que Nietzsche chamou, irritado, de história dos antiquários. "As sociedades ocidentais estão vivendo uma era de auto-arqueologização", escreveu Charles Maier. Esse neo-historicismo deixa os historiadores e ideólogos inconformados, assim como a história natural vitoriana deixava inconformados os evolucionistas darwinistas. Indica, porém, que as operações com a história entraram no mercado simbólico do capitalismo tardio com tanta eficiência como quando foram objeto privilegiado das instituições escolares desde o fim do século XIX. Mudaram os objetos da história - a acadêmica e a de grande circulação -, embora nem sempre em sentidos idênticos. De um lado, a história social e cultural deslocou seu estudo para as margens das sociedades modernas, modificando a noção de sujeito e a hierarquia dos fatos, destacando os pormenores cotidianos articulados numa poética do detalhe e do concreto. De outro, uma linha da história para o mercado já não se limita apenas à narração de uma gesta que os historiadores teriam ocultado ou ignorado, mas também adota um foco próximo dos atores e acredita descobrir uma verdade na reconstituição de suas vidas. Essas mudanças de perspectiva não poderiam ter acontecido sem uma variação nas fontes: o lugar espetacular da história oral é reconhecido pela disciplina acadêmica, que, há muitas décadas, considera totalmente legítimas as fontes testemunhais orais (e, por instantes, dá impressão de julgá-las mais "reveladoras"). Por sua vez, histórias do passado mais recente, apoiadas quase que apenas em operações da memória, atingem uma circulação extradisciplinar que se estende à esfera pública comunicacional, à política e, ocasionalmente, recebem o impulso do Estado. VISÕES DE PASSADO As "visões de passado" (segundo a fórmula de Benveniste) são construções. Justamente porque o tempo do passado não pode ser eliminado, e é um perseguidor que escraviza ou liberta, sua irrupção no presente é compreensível na medida em que seja organizado por procedimentos da narrativa, e, através deles, por uma ideologia que evidencie um continuum significativo e interpretável do tempo. Fala-se do passado sem suspender o presente e, muitas vezes, implicando também o futuro. Lembra-se, narra-se ou se remete ao passado por um tipo de relato, de personagens, de relação entre suas ações voluntárias e involuntárias, abertas e secretas, definidas por objetivos ou inconscientes; os personagens articulam grupos que podem se apresentar como mais ou menos favoráveis à independência de fatores externos a seu domínio. Essas modalidades do discurso implicam uma concepção do social e, eventualmente, também da natureza. Introduzem um tom dominante nas "visões de passado". Nas narrações históricas de grande circulação, um fechado círculo hermenêutico une a reconstituição dos fatos à interpretação de seus sentidos e garante visões globais, aquelas que, na ambição dos grandes historiadores do século XIX, foram as sínteses hoje consideradas ora impossíveis, ora indesejáveis e, em geral, conceitualmente errôneas. Se, como já disse há quarenta anos Hans-Robert Jauss, ninguém se proporia a escrever a história geral de uma literatura, como foi projeto dos filólogos e historiadores do século XIX, as histórias não acadêmicas, dirigidas a um público formado por não-especialistas, pressupõem sempre uma síntese. As regras do método da disciplina histórica (incluindo suas lutas de poder acadêmico) supervisionam os modos de reconstituição do passado ou pelo menos consideram ser esse um ideal epistemológico que garante o artesanato aceitável de seus produtos. A discussão das modalidades reconstitutivas é explícita, o que não quer dizer que a partir dela se alcance uma história de grande interesse público. Isso depende, antes, do texto e de temas que chamem a atenção dos especialistas; e depende também de o historiador acadêmico não se obstinar em provar obtusamente sua aquiescência às regras do método, mas, ao contrário, de demonstrar que elas são importantes justamente porque permitem fazer uma história melhor. Em contrapartida, a história de grande circulação é sensível às estratégias com que o presente torna funcional a investida do passado e considera totalmente legítimo pô-lo em evidência. Se não encontra resposta na esfera pública atual, ela fracassa e perde todo o interesse. A modalidade não acadêmica (ainda que praticada por um historiador de formação acadêmica) escuta os sentidos comuns do presente, atende às crenças de seu público e orienta-se em função delas. Isso não a torna pura e simplesmente falsa, mas ligada ao imaginário social contemporâneo, cujas pressões ela recebe e aceita mais como vantagem do que como limite. Essa história de massas de impacto público recorre a uma mesma fórmula explicativa, a um princípio teleológico que garante origem e causalidade, aplicável a todos os fragmentos de passado, independentemente da pertinência que demonstre com cada um deles em concreto. Um princípio organizador simples exerce sua soberania sobre acontecimentos que a história acadêmica considera influenciados por princípios múltiplos. Essa redução do campo das hipóteses sustenta o interesse público e produz uma nitidez argumentativa e narrativa que falta à história acadêmica. Não só a história de massas recorre ao relato, como não pode prescindir dele (à diferença do abandono freqüente e deliberado do relato na história acadêmica); portanto, impõe unidade sobre as descontinuidades, oferecendo uma "linha do tempo" consolidada em seus nós e desenlaces. Seus grandes esquemas explicativos são relativamente independentes da matéria do passado, sobre a qual impõem uma linha superior de significados. A força organizadora desses esquemas alimenta-se do "sentido comum" com o qual coincide. A esse modelo também corresponderam as "histórias nacionais" de difusão escolar: um panteão de heróis, um grupo de excluídos e réprobos, uma linha de desenvolvimento unitário que conduzia até o presente. A quebra de legitimidade das instituições escolares em alguns países e, em outros, a incorporação de novas perspectivas e novos sujeitos afetaram também as "histórias nacionais" de estilo tradicional. As modalidades não acadêmicas de texto encaram a investida do passado de modo menos regulado pelo ofício e pelo método, em função de necessidades presentes, intelectuais, afetivas, morais ou políticas. Muito do que foi escrito sobre as décadas de 1960 e 1970 na Argentina (e também em outros países da América Latina), em especial as reconstituições baseadas em fontes testemunhais, pertence a esse estilo. São versões que se sustentam na esfera pública porque parecem responder plenamente às perguntas sobre o passado. Garantem um sentido, e por isso podem oferecer consolo ou sustentar a ação. Seus princípios simples reduplicam modos de percepção do social e não apresentam contradições com o senso comum de seus leitores, mas o sustentam e se sustentam nele. Ao contrário da boa história acadêmica, não oferecem um sistema de hipóteses, mas certezas. Esses modos da história respondem à insegurança perturbadora causada pelo passado na ausência de um princípio explicativo forte e com capacidade inclusiva. É verdade que as modalidades comerciais (porque essa é sua circulação nas sociedades midiatizadas) despertam a desconfiança, a crítica e também a inveja rancorosa daqueles profissionais que baseiam sua prática apenas na rotina do método. Como a dimensão simbólica das sociedades em que vivemos está organizada pelo mercado, os critérios são o êxito e o alinhamento com o senso comum dos consumidores. Nessa concorrência, a história acadêmica perde por motivos de método, mas também por suas próprias restrições formais e institucionais, que a tornam mais preocupada com regras internas do que com a busca de legitimações externas que, se são alcançadas por um historiador acadêmico, podem até originar a desconfiança de seus pares. As histórias de grande circulação, em contrapartida, reconhecem na repercussão pública de mercado sua legitimidade.