1. A FORMA SHANDIANA A forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre. Machado de Assis Em 1759, um obscuro pastor de Yorkshire, chamado Laurence Sterne (1713-68), que até então só tinha publicado alguns sermões e um panfleto satírico, lançou as duas primeiras partes de um livro com o título A vida e as opiniões de Tristram Shandy, cavalheiro. O livro deliciou e enfureceu o público, transformando-se num imenso sucesso. Sterne foi publicando o resto do livro regularmente, até a conclusão, em 1767. O título da obra é singularmente inadequado. O autor quase não diz nada sobre a vida do personagem-narrador, Tristram, com exceção de certas circunstâncias pré-natais (o fato de que sua concepção fora perturbada porque no momento decisivo sua mãe fizera uma pergunta frívola); de alguns pormenores relativos ao seu nascimento (seu nariz é achatado por incompetência do médico, o dr. Slop, e a criança é batizada, para desespero do pai, com um nome que Walter considerava detestável, quando seu verdadeiro nome deveria ser Trismegistus); e de alguns episódios esparsos sobre duas viagens ao continente feitas por Tristram. Quanto às opiniões, Tristram as expõe sem se fazer de rogado, mas não são essencialmente as do narrador, como sugere o título, e sim sobretudo as do pai, Walter, do tio, Toby, e do criado deste, Trim. Na verdade, não há enredo, e do romance convencional Sterne retém apenas a descrição psicológica dos personagens principais, como Walter, erudito extravagante que tem opiniões excêntricas sobre praticamente tudo, desde formas de governo e economia política até a influência dos narizes e dos nomes próprios no destino individual; o irmão de Walter, "meu tio Toby", ex-militar, bondoso e sensível, com uma idéia fixa, um hobby-horse -, a ciência das fortificações, obsessão que o leva a reproduzir em seu parque, com ajuda de fortes e cidades em miniatura, todas as etapas da Guerra de Sucessão da Espanha; Trim, honesto e leal, que coopera com seu amo na concretização, em escala liliputiana, de suas fantasias guerreiras; o pastor Yorick, alter ego de Sterne, descendente remoto do bobo da corte da Dinamarca, tolerante e bem-humorado; o dr. Slop, charlatão papista, fascinado por novos instrumentos obstétricos, como o fórceps; e a viúva Wadman, cortejada por Toby com todos os refinamentos de um cerco militar, e que por sua vez recorre a todos os princípios da estratégia para conquistar o coração de Toby. Em 1768, Sterne publica outro livro, Uma viagem sentimental, assinado por Yorick. O pastor sai de Tristram Shandy e descreve, num tom pré-romântico muito diferente do humor rabelaiseano e robustamente obsceno do livro anterior de Sterne, sua viagem a Paris, Versalhes, Amiens e Lyon, e seus encontros sentimentais com grisettes, camareiras e damas da alta sociedade. Em 1771, Denis Diderot (1713-84) começa a escrever uma novela, Jacques o fatalista, cuja redação se estendeu por vários anos. Divulgada pela primeira vez na Correspondência literária, de Grimm, ela foi lida por Goethe e parcialmente traduzida por Schiller. Como tantas outras obras de Diderot, a novela só veio a ser publicada postumamente. O livro descreve uma viagem pela França de dois personagens, o criado Jacques e seu amo, e contém algumas peripécias vagamente aparentadas às da novela picaresca, entremeadas por diálogos filosóficos sobre o livre-arbítrio e o determinismo e por contos como o que trata dos amores de Jacques, que atravessam o livro inteiro, e o episódio de Madame de la Pommeraye. Um dia, o jovem oficial saboiano Xavier de Maistre (1763-1852), a serviço do Exército sardo, bate-se em duelo e é punido por seus superiores com uma pena de prisão domiciliar em sua residência em Turim. Os 42 dias de sua detenção forneceram o assunto para a novela Viagem em torno do meu quarto. O narrador-personagem decide aproveitar o tempo para viajar em seu quarto, da parede à cama, e desta à escrivaninha. Publicado em 1795, o livro contém reflexões sobre a natureza humana, composta de duas metades, a alma e a outra; sobre o amor e a amizade desinteressada de seres humildes, como seu criado Joannetti e sua cachorrinha Rosine; e sobre a ambição dos homens e a vaidade das mulheres. Em 1820, publica uma continuação da obra, Expedição noturna em torno do meu quarto, com o mesmo tom e uma temática semelhante, embora, talvez, sem a mesma verve. Em 1843, o bacharel João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854), já célebre como autor de poemas e dramas históricos, fez uma viagem de Lisboa a Santarém. No mesmo ano, começa a relatar esse passeio. Os primeiros capítulos, com o nome de Viagens na minha terra, apareceram numa revista ainda em 1843. A obra completa foi publicada em livro três anos depois. O livro descreve o trajeto de Garrett pelo Ribatejo, de Lisboa ao Cartaxo, dali a Azambuja, até a chegada em Santarém. Esse percurso de navio, de carruagem e em lombo de mula não contém grandes aventuras. O livro é mais rico em reflexões sobre a decadência de Portugal que em episódios de viagem, e seu miolo é constituído pela história dos amores de Carlos, soldado da causa liberal durante a guerra civil de 1831-34, com sua prima Joaninha, a "menina dos rouxinóis". Em 1881, o mestiço carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), até então conhecido por suas poesias românticas, por suas crônicas ligeiras, e por quatro romances relativamente inofensivos, revoluciona o mundo literário brasileiro com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas. É a autobiografia de um autor defunto, a narrativa, no Brasil provinciano do Segundo Reinado, de suas ambições, sempre frustradas, e dos seus amores, sempre desiludidos, o que não impede o autor de achar que sua vida tivera um saldo positivo: sem filhos, não deixara a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. A enumeração seca desses autores tem algo de provocador, e a irritação não diminui com o tom lacônico com que resumi suas obras, limitando-me a alguns fatos e datas que obviamente nada dizem de importante sobre os livros nem acrescentam nada ao que qualquer colegial sabia desde o início. O que quis salientar foi a aparente heterogeneidade de todo esse grupo de autores e publicações. Biograficamente, não há nada em comum entre um pastor anglicano (Sterne), um filósofo sob permanente ameaça de encarceramento (Diderot), um militar (Xavier de Maistre), um futuro ministro dos Negócios Estrangeiros (Garrett) e um funcionário público brasileiro (Machado de Assis). Tematicamente, não há grandes afinidades entre a viagem sentimental de Sterne, a filosófica de Diderot, a imaginária de Xavier de Maistre, a real de Garrett e a simbólica de Machado de Assis. Teoricamente, não há nenhuma semelhança aparente entre o empirismo lockiano de Sterne, o materialismo de Diderot, a espiritualidade meio-cristã e meio-deísta de Xavier de Maistre, a religiosidade patriótica de Garrett e o agnosticismo de Machado de Assis. Politicamente, há poucos pontos de contato entre o conformismo whig de Sterne, a militância subversiva de Diderot, o legitimismo de Xavier de Maistre e o aparente apolitismo de Machado. Mas existe uma afinidade literária, facilmente perceptível para quem lê esses livros sem espírito preconcebido. Em primeiro lugar, há semelhanças de conteúdo. Tem-se a impressão de uma influência em cascata, uma corrente em que cada elo tem algum vínculo com os anteriores. Assim, Diderot deve algo a Sterne; Xavier de Maistre deve algo a Sterne e a Diderot; Almeida Garrett deve algo a Sterne, Diderot e a Xavier de Maistre; e Machado de Assis deve algo a Sterne, Diderot, Xavier de Maistre e Almeida Garrett. Começando com Sterne, vejamos os traços que ele deixou em Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garret e Machado de Assis. Sterne conheceu Diderot quando passou por Paris em 1762 e não parece ter ficado particularmente impressionado com o enciclopedista. Numa de suas cartas, o inglês critica os dramas escritos pelos philosophes, entre os quais um certo "M. Did...". Num trecho da Viagem sentimental há um "Monsieur D", citado, sem nenhuma ênfase especial, entre os membros da coterie filosófica. Já Diderot ficou profundamente seduzido pelo brilho de Sterne. Para o filósofo, Sterne era o "Rabelais inglês", e Tristram Shandy "uma sátira universal". Diderot levou seu entusiasmo ao ponto de parodiar, em Jacques o fatalista, inúmeros fragmentos de Tristram Shandy. A paródia inclui personagens (a dupla amo-Jacques é, evidentemente modelada sobre a dupla Toby-Trim), situações (Jacques é ferido numa batalha, no joelho, exatamente como Trim, e, como este, Jacques explica as razões anatômicas pelas quais um ferimento no joelho é mais doloroso que em outras partes do corpo) e até a filosofia subjacente (o "fatalismo" defendido por Jacques tem analogias com a causalidade psíquica de Sterne, baseada no processo associativo). Há um episódio em que o "plágio" é confessado. Como Trim, Jacques narra os seus amores, que culminam numa cena decisiva em que tanto Jacques como Trim são tratados por uma bonita enfermeira, que leva sua solicitude ao ponto de massagear não somente o joelho ferido, como lugares mais sensíveis, acima do joelho. Diderot introduz esse episódio dizendo que ele tinha sido "copiado da vida de Tristram Shandy, a menos que a conversa de Jacques o fatalista com seu amo seja anterior a essa obra e que o pastor Sterne seja o plagiário" (JF, 709). Em Viagem em torno do meu quarto, Xavier de Maistre faz uma alusão explícita a Sterne, na qual o narrador se compara com o tio Toby: um e outro tinham o seu hobby-horse, o seu dada. O de Toby era a mania das fortificações, o dele, o de dissertar sobre a pintura (VC, XXIV, 51). A relação sentimental entre o narrador e seu criado Joannetti é visivelmente modelada na relação igualmente sentimental do tio Toby com seu criado Trim. Há também um pastiche da invocação de Sterne à misteriosa figura de Jenny, que nem Sterne nem Xavier de Maistre se dignaram explicar quem fosse. Em Sterne, a referência a essa Jenny fantasmagórica aparece, entre outras passagens, na seguinte frase: "O tempo foge depressa demais; cada letra que escrevo me diz com que rapidez a vida segue a minha pena; os dias e horas da vida, mais preciosos, minha querida Jenny, que os rubis que rodeiam tua garganta, voam sobre nossas cabeças, como leves nuvens num dia de vento, para nunca mais voltarem" (TS, IX, 8, 582). Eis o pastiche de Xavier de Maistre, a propósito de um capítulo não apreciado pelos críticos: "Basta-me que tu o consideres bom, minha querida Jenny, tu, a melhor e mais amada das mulheres [...]" (VC, XXII, 48). A presença de Sterne em Garrett é muito clara. Além das referências ao estilo de composição de Tristram Shandy, que discutirei mais adiante, o autor de Viagens na minha terra cita o Yorick de Viagem sentimental, o "ajuizadíssimo bobo de el-Rei da Dinamarca, o que alguns anos depois ressuscitou em Sterne com tão elegante pena" (VT, XI, 80). É uma passagem em que Yorick diz que sempre estivera apaixonado, e que só cometera ações mesquinhas no intervalo entre dois amores. Em Machado de Assis, as reminiscências de Sterne são abundantes. Elas já foram rastreadas, entre outros, por Eugênio Gomes, Helen Cauldwell e Marta de Senna. Notem-se, por exemplo: a semelhança entre o pai de Brás Cubas e o de Tristram Shandy, ambos com um sistema próprio de educação e convencidos da importância dos nomes de família; ou o episódio em que Brás quer libertar uma mosca e uma formiga engalfinhadas, comparável à cena de Tristram Shandy em que Toby, em sua bondade universal com relação a todos os seres criados, deixa que uma mosca escape pela janela; ou as afinidades entre o famoso capítulo das negativas e a frase de Trim: "Não tenho nem esposa nem filho - não posso ter nenhuma dor neste mundo" (TS, IV, 4, 277); ou o paralelismo entre a advertência de Brás contra as idéias fixas - "Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa"(MP, IV, 516) - e a reflexão de Tristram sobre os perigos de um hobby-horse - "Quando um homem se abandona ao governo de uma paixão dominante, ou, em outras palavras, quando seu hobby se torna teimoso, adeus à fria razão e à discreção equilibrada!"(L, II, 5, 113). As marcas de Diderot em Xavier de Maistre, Garrett e Machado de Assis são menos evidentes, mas podem ser reconstituídas. Elas são discretas em Xavier de Maistre porque, afinal, Jacques o fatalista, embora escrito em 1773, só foi publicado em 1796, um ano depois de Viagem em torno do meu quarto. Mas isso não impede que Xavier de Maistre tivesse lido o texto divulgado por Grimm, vinte anos antes. Se foi esse o caso, há pelo menos uma passagem que poderia aludir ao livro de Diderot: uma crítica do fatalismo, ou do acaso, interpretado como ausência de uma causalidade divina. "Não acredito no acaso, esse triste sistema - essa palavra que não significa nada. Acreditaria antes no magnetismo - acreditaria antes no martinismo - não, não acreditaria nunca nele" (VC, XVI, 35). Quanto a Garrett, acho provável que a passagem em que o narrador-personagem diz que o homem tem uma natureza dual, uma vinda da natureza, e outra da sociedade, uma pura e divina e outra corrupta e material (VT, XXIV, 167), não seja uma simples paráfrase de lugares-comuns rousseauistas, mas provenha de outro texto de Diderot, Suplemento à viagem de Bougainville, em que o filósofo diz que a desgraça do homem civilizado vinha da coexistência, dentro do mesmo invólucro, de um homem natural e de um homem artificial, ambos em antagonismo permanente. No que diz respeito a Machado de Assis, note-se que todos os personagens de Memórias póstumas, de Brás Cubas a Virgília e d. Plácida, são joguetes de forças que eles não controlam - paixões e interesses materiais -, e nesse sentido são desprovidos de liberdade, segundo a filosofia de Jacques. A rica atmosfera de ambigüidade moral em que estão envoltos os homens e as mulheres machadianos é análoga à de Jacques o fatalista, cujos personagens podem ser considerados bons ou maus, à escolha do leitor. A biblioteca pessoal de Machado contém uma coletânea das obras de Diderot, na qual figura um longo episódio de Jacques o fatalista (números 521 e 522 do catálogo de Massa). A faceta de Diderot que mais aparece em Machado é a do contista. É ao contista que Machado alude em Papéis avulsos, dizendo que ninguém ignorava que Diderot escrevia contos, e até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. A epígrafe de Várias histórias diz em que consistia esse conselho: "Meu amigo, façamos sempre contos. [...] O tempo passa, e o conto da vida se acaba, sem que o percebamos". Há muitas ressonâncias de Xavier de Maistre tanto em Garrett como em Machado de Assis. Xavier de Maistre é mencionado na epígrafe de Viagens na minha terra, de Garrett, o que de certo modo coloca o livro inteiro sob o patrocínio do autor saboiano. É o seguinte trecho: "Como é glorioso abrir uma nova carreira e aparecer de repente no mundo científico, como um cometa inesperado cintilando no espaço!" (VT, I, 5). A epígrafe vem da primeira frase do livro de Xavier de Maistre (VC, I, 3). A primeira linha de Viagens na minha terra contém também uma alusão a Xavier de Maistre. "Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, no inverno, em Turim, que é quase tão frio como S. Petersburgo, entende-se. Mas com esse clima... o próprio Xavier de Maistre, se aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal" (VT, I, 5-6 ). Numa nova alusão, Garrett diz que no trecho entre Cartaxo e Azambuja teve que abandonar sua diligência, e ficou como o "bom Xavier de Maistre, quando, a meia jornada do seu quarto, lhe perdeu a cadeira o equilíbrio e ele caiu" (VT, V, 39). Quanto à presença de Xavier de Maistre em Machado de Assis, já se tem mencionado a insistência com que Machado usa a metáfora do ateniense que achava que todos os navios que aportavam no Pireu eram seus, metáfora sem nenhuma dúvida pilhada em Viagem em torno do meu quarto (VC, XVII, 83). Pergunto-me se a idéia da indiferença da natureza ao destino do indivíduo, formulada tanto no delírio de Brás Cubas quanto no humanitismo de Quincas Borba, não teria algo a ver com a passagem em que Xavier de Maistre diz que "a destruição insensível dos seres e todos os infortúnios da humanidade nada importam para o grande todo. A morte de um homem sensível que expira no meio dos seus amigos desolados, e a de uma borboleta, que o ar frio da manhã faz perecer no cálice de uma flor, são duas épocas semelhantes no curso da natureza" (VC, XXI, 46). Além disso, creio ter sido pela mediação de Xavier de Maistre que Machado se apropriou do tema pascaliano da natureza dupla do homem, meio angélico, meio bestial. Vimos que para Xavier de Maistre o homem é composto de duas pessoas, a alma e outra, a bête. Para ele, "o homem é duplo. Mas é, como se diz, porque é composto de alma e corpo; e acusam esse corpo de não sei quantas coisas, todavia seguramente de modo bem inapropriado, porque ele é tão incapaz de sentir quanto de pensar. É com a bête que é preciso lidar, esse ser sensível perfeitamente distinto da alma, verdadeiro indivíduo, que tem sua existência separada, seus gostos, suas inclinações, sua vontade" (vc, vi, 14). A bête leva uma vida própria, quando a alma se distrai ou quando ela passeia em mundos imaginários durante o sonho ou o devaneio, e é capaz de dialogar com a alma, muitas vezes impondo sua vontade. Ora, o tema é aflorado em Memórias póstumas, quando Brás admira o ar casto de Nhã-Lolô, mas se perturba com sua nudez adivinhada. "Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado de uma sensação dupla e indefinível. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal, l'ange et la bête, com a diferença de que o jansenista não admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que elas aí estavam bem juntinhas - l'ange, que dizia algumas cousas do céu, - e la bête, que..." (MP, XCVIII, 603-4). Mas toda dúvida quanto à influência do autor da Viagem no tratamento desse tema cessa no conto "Viagem à roda de mim mesmo", em que a semelhança com de Maistre vai além da intenção parodística do título. Segundo determinados sábios, diz Machado, "há no homem duas pessoas iguais, que se separam às vezes, como acontece durante o sono, em que uma dorme e outra sai a caçar e passear. [...] Criam os egípcios que há no homem, além de várias almas espirituais, uma totalmente física, reprodução das feições e dos contornos do corpo, um perfeito fac-símile". No conto, a bête assume o papel de um verdadeiro superego. É essa instância que censura o personagem do conto, quando ele deixa por pusilanimidade de declarar seu amor a Henriqueta: "Senti-me dous, um que argüia, outro que se desculpava. [...] De noite, para distrair-me, fui ao teatro; mas nos intervalos o duelo era o mesmo, um pouco menos furioso. No fim da noite, estava reconciliado comigo". Finalmente, há uma inequívoca presença de Almeida Garrett em Machado de Assis. É pena, nesse sentido, que não tenha sido conservada na correspondência de Machado a carta que segundo ele lhe teria sido dirigida por Macedo Soares a propósito das afinidades entre Viagens na minha terra e Memórias póstumas. Chamo apenas a atenção para a frase de Garrett sobre "aquelas aldeias que se criaram à sombra dos castelos feudais e que libertas, depois, da opressora proteção, cresceram e engrossaram em substância e força. [...] O castelo, esse, está vazio e em ruínas" (VT, XXXVIII, 256-7). O leitor de Machado de Assis reconhecerá facilmente nessa frase a fonte da comparação que figura no final do capítulo IV de Memórias póstumas: "Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã..." (MP, IV, 517-8). [...]