Trecho do livro DOENÇA COMO METÁFORA / AIDS E SUAS METÁFORAS

DOENÇA COMO METÁFORA A DOENÇA É A ZONA NOTURNA DA VIDA, uma cidadania mais onerosa. Todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse outro lugar. Quero analisar não como é de fato emigrar para o reino dos doentes e lá viver, mas as fantasias sentimentais ou punitivas engendradas em torno dessa situação: não se trata da geografia real, mas dos estereótipos do caráter nacional. Meu tema não é a doença física em si, mas os usos da doença como figura ou metáfora. Minha tese é que a doença não é uma metáfora e que a maneira mais fidedigna de encarar a doença - e a maneira mais saudável de estar doente - é aquela mais expurgada do pensamento metafórico e mais resistente a ele. Porém é quase impossível fixar residência no reino dos doentes sem ter sido previamente influenciado pelas metáforas lúgubres com que esse reino foi pintado. Dedico esta investigação a uma elucidação de tais metáforas e à libertação do seu jugo. 1 DE FORMA ESPETACULAR, e semelhante, duas doenças se viram tolhidas pelos ornamentos da metáfora: a tuberculose e o câncer. As fantasias inspiradas pela tuberculose no século XIX, e pelo câncer hoje, são reações a uma enfermidade considerada intratável e caprichosa - ou seja, uma enfermidade que não se compreende - numa época em que a premissa central da medicina é que todas as doenças podem ser curadas. Tal enfermidade é, por definição, misteriosa. Enquanto sua causa não foi compreendida e os tratamentos prescritos pelos médicos continuaram ineficazes, a tuberculose foi considerada um traiçoeiro e implacável ladrão de vidas. Agora é a vez de o câncer ocupar a vaga da enfermidade que entra sem pedir licença; é o câncer que representa o papel de uma doença vivenciada como uma invasão cruel e secreta - papel que continuará a desempenhar até que, um dia, sua etiologia se torne tão clara e seu tratamento tão eficaz como se tornaram no caso da tuberculose. Embora o modo como a doença provoca perplexidade se projete num pano de fundo de expectativas novas, a enfermidade em si (antes a tuberculose, hoje o câncer) desperta variedades de pavor completamente antiquadas. Qualquer enfermidade tida como um mistério e temida de modo bastante incisivo será considerada moralmente, se não literalmente, contagiosa. Assim, um número espantoso de pessoas com câncer se dá conta de que parentes e amigos as evitam e de que são objeto de procedimentos de descontaminação, levados a efeito pela família, como se o câncer, a exemplo da tuberculose, fosse uma enfermidade contagiosa. O contato com alguém acometido por uma doença tida como um mal misterioso provoca, de forma inevitável, a sensação de uma transgressão; pior ainda, de violação de um tabu. Os próprios nomes de tais doenças são tidos como portadores de um poder mágico. Em Armance (1827), de Stendhal, a mãe do herói se recusa a falar "tuberculose", por temor de que pronunciar a palavra acelere o curso da moléstia do filho. E Karl Menninger observou (em The vital balance) que "a própria palavra 'câncer' é vista como capaz de matar certos pacientes que não sucumbiram (tão rapidamente) ao mal de que padecem". Tal comentário é formulado em apoio a crenças antiintelectuais e a uma compaixão simplista, demasiado difundidas na medicina e na psiquiatria contemporâneas. "Os pacientes que nos consultam em razão de seus sofrimentos, infortúnios e deficiências", continua ele, "têm todo o direito de se ressentir por verem colada a si uma etiqueta que é um sinal de maldição." O dr. Menninger recomenda que os médicos em geral abandonem "nomes" e "rótulos" ("nossa função consiste em ajudar essas pessoas, não em afligi-las ainda mais") - o que significaria, a rigor, aumentar a dissimulação e o paternalismo da medicina. Não é, em si, o ato de nomear que é pejorativo ou condenatório, mas sim o nome "câncer". Enquanto essa enfermidade em particular for tratada como um predador invencível e maligno, e não só como uma doença, a maioria das pessoas com câncer se sentirá de fato desmoralizada ao saber que doença tem. A solução não pode estar em deixar de contar a verdade para os pacientes de câncer, mas sim retificar o conceito da doença, desmitificá-la. Quando, há não muitas décadas, saber que alguém tinha tuberculose equivalia a ouvir uma sentença de morte - como hoje, no imaginário popular, o câncer equivale à morte -, era comum esconder dos tuberculosos a identidade da sua doença e, após sua morte, escondê-la dos filhos. Mesmo com pacientes informados acerca de sua enfermidade, os médicos e a família relutavam em falar com liberdade. "Verbalmente, nada de preciso me comunicam", escreveu Kafka a um amigo em abril de 1924, no sanatório onde viria a morrer dois meses mais tarde, "pois quando se conversa a respeito de tuberculose [...] todos recaem num modo de falar acanhado, evasivo, de olhos vidrados." As convenções de ocultação em torno do câncer são ainda mais pertinazes. Na França e na Itália, ainda é regra entre os médicos comunicar um diagnóstico de câncer à família do paciente mas não ao paciente; os médicos consideram que a verdade será insuportável para todos os pacientes, exceto aqueles extraordinariamente amadurecidos e inteligentes. (Um oncologista francês de ponta me contou que menos de um décimo de seus pacientes sabe que tem câncer.) Nos Estados Unidos - em parte por causa do temor que têm os médicos de responder a processos na justiça por negligência - existe hoje uma franqueza bem maior com os pacientes, mas as informações e as contas que o maior hospital de câncer do país envia pelo correio a seus pacientes ambulatoriais são remetidas em envelopes que não indicam o remetente, no pressuposto de que a doença pode ser um segredo para suas famílias. Como ficar com câncer pode ser um escândalo que põe em risco a vida amorosa, as chances de uma promoção ou mesmo o emprego, os pacientes que sabem o que têm costumam ser extremamente recatados, quando não de todo dissimulados, a respeito de sua enfermidade. E uma lei federal, a Lei de Liberdade de Informação de 1966, menciona o "tratamento de câncer" num artigo que isenta de divulgação informações cuja revelação possa "representar uma invasão desautorizada da privacidade pessoal". É a única enfermidade citada. Toda essa mentira dirigida aos pacientes de câncer e praticada por eles mesmos dá bem a medida de como se tornou muito mais difícil lidar com a morte nas sociedades industriais avançadas. Assim como a morte é hoje um fato ofensivamente sem sentido, também uma enfermidade vista em larga medida como sinônimo de morte é vivenciada como algo que se deve esconder. A estratégia de tergiversar com os pacientes de câncer acerca da natureza de sua enfermidade reflete a convicção de que é melhor poupar pessoas fadadas à morte da informação de que estão para morrer e a de que a boa morte é a repentina, e também a de que a melhor de todas é aquela que ocorre quando a pessoa se acha inconsciente ou dormindo. Porém a moderna negação da morte não explica a amplitude da mentira e do desejo de não saber a verdade; não toca o pavor mais profundo. A probabilidade de uma pessoa que sofreu um infarto coronariano vir a morrer de outro infarto num intervalo de alguns anos é, no mínimo, a mesma de uma pessoa com câncer vir a morrer de câncer em breve. Mas ninguém pensa em esconder a verdade de um paciente cardíaco: nada existe de vergonhoso num ataque de coração. Mentem para os pacientes de câncer não só porque a enfermidade é (ou se supõe ser) uma sentença de morte, mas porque é considerada algo obsceno - no sentido original da palavra: de mau agouro, abominável, repugnante aos sentidos. A enfermidade cardíaca implica uma fraqueza, um distúrbio, uma deficiência mecânica; não há uma desonra, não há nada do tabu que antigamente cercava as pessoas acometidas de tuberculose e ainda cerca as que têm câncer. As metáforas ligadas à tuberculose e ao câncer sugerem processos vivos de um tipo especialmente alarmante e aterrador.