Trecho do livro A IGREJA MILITANTE E A EXPANSÃO IBÉRICA, 1440-1770

1. Relações Raciais Considerando que a atitude da Igreja a respeito das relações raciais é um tema vasto, complexo e controverso, este capítulo se concentrará em dois aspectos principais: o clero indígena e a escravidão negra. Não é preciso ir muito longe para explicar as razões de minha escolha. No período de 1440 a 1770, praticamente todos os fiéis católicos pressupunham que a Bíblia Sagrada, fundamento da doutrina da Igreja, era uma obra de inspiração divina e de validade universal, em todas as épocas, em todos os lugares e para todos os povos. Portanto, se a Igreja tolerava - ou defendia - a discriminação baseada na pigmentação da pele e não fazia objeções à escravização "legítima" de negros africanos não batizados, não havia razão para os leigos alimentarem escrúpulos ou dúvidas a esse respeito. É interessante observar como devotados católicos reagiram ao contato próximo e continuado com raças situadas além dos limites da cristandade, povos até então completamente desconhecidos na Europa ocidental - como os ameríndios do outro lado do Atlântico, os congoleses da África ocidental, os japoneses na Ásia - ou conhecidos apenas de modo superficial e de passagem, como os indianos e os chineses. As atitudes e convicções formadas à medida que marinheiros, missionários, comerciantes e soldados ibéricos se espalhavam pelos quatro cantos do mundo persistiram durante séculos e ainda hoje permanecem vivas em graus diferentes de intensidade. Durante séculos, o preconceito racial e a escravidão negra foram inseparáveis, pelo menos para a grande maioria dos europeus ocidentais. A Igreja proclamava, por um lado, que todos os fiéis eram irmãos, mas, por outro, implícita ou explicitamente, sancionava a barreira racial baseada na cor da pele e a escravidão. Se povos até então desconhecidos haviam sido incorporados ao seio da Santa Madre Igreja, por que ainda era difícil ou mesmo impossível para tantos deles, após várias gerações, serem ordenados padres? Por que durante mais de três séculos foi considerado "legítimo" escravizar outros povos? Este capítulo não oferece respostas a todas essas perguntas, já que se ocupa de fatos, e não de uma teologia especulativa. Mas discute alguns dos principais acontecimentos pertinentes a esse tema complexo e polêmico em que o orgulho e a exclusividade da Igreja estiveram diretamente envolvidos. O CLERO NATIVO Por mais desejável que parecesse, na teoria, a formação de um clero indígena, na prática, o desenvolvimento desse clero demorou muito tempo na maioria dos países não europeus e, em certas regiões, nunca chegou a constituir-se em proporções significativas, pelo menos até recentemente. Em várias regiões e durante longo tempo, a formação de um clero autóctone responsável esbarrou na oposição dos próprios missionários que deviam incentivá-la, observação que, por sinal, se aplica tanto aos protestantes quanto aos católicos. Qualquer que fosse a teoria, na prática, o clero nativo negro foi mantido numa posição de estrita subordinação aos sacerdotes brancos europeus, principalmente nas regiões em que estes últimos pertenciam a ordens religiosas - ou seja, ao clero regular em oposição ao secular. Uma visão panorâmica dos acontecimentos em três continentes durante três séculos mostra como surgiu essa discriminação e por quanto tempo ela persistiu nos territórios ultramarinos controlados ou reivindicados pelas Coroas ibéricas de Portugal e de Castela. O clero da África ocidental Como resultado das viagens portuguesas de descobrimento e comércio ao longo da costa da África ocidental durante o século XV, muitos africanos foram levados a Portugal, sobretudo como escravos, embora alguns tenham ido na condição de homens livres, ou como escravos posteriormente libertos. Muitos destes últimos receberam instrução e formação religiosa. O caso mais antigo que se conhece é o de um menino negro que foi raptado e entregue aos franciscanos de São Vicente do Cabo em 1444; mais tarde, o rapaz foi ordenado frei - provavelmente na condição de irmão leigo, embora o cronista que me serviu de fonte não precise essa informação. Zurara conta que, no ano seguinte, outro jovem negro foi capturado às margens do rio Senegal e levado para Portugal. O rapaz foi educado pelo infante d. Henrique, ao que parece na intenção de enviá-lo de volta à África como padre missionário. Na verdade, esse senegalês morreu antes de atingir a idade adulta, mas o precedente estava aberto e foi seguido na segunda metade do século XV. Não há dados confiáveis sobre quantos jovens de fato voltaram à África como catequistas, padres ou intérpretes. Mas a intenção da Coroa devia ser que o fizessem, principalmente depois que se estabeleceram relações cordiais com a monarquia banta do Congo durante o reinado de João II de Portugal. Um médico alemão, Jerome Münzer, que visitou Portugal em 1494 e foi recepcionado hospitaleiramente pelo rei, afirmou ter visto nessa época muitos jovens negros que estudavam, ou haviam estudado, latim e teologia, preparando-se para ser enviados à ilha de São Tomé, ao Congo e a outros lugares, como missionários, intérpretes e emissários da Coroa portuguesa. Münzer acrescentou que "provavelmente, no decorrer do tempo, a maior parte da Etiópia [isto é, da África ocidental] será convertida ao cristianismo. Também foram para lá [São Tomé] dois tipógrafos alemães, um de Nördlingen e outro de Estrasburgo. Esperemos que voltem sãos e salvos, porque essa região não é saudável para os alemães". Entre os padres africanos educados em Lisboa e que depois voltaram para seu continente, o mais famoso foi d. Henrique, um dos filhos do grande rei Afonso I do Congo. Em 1518, o papa Leão X consagrou-o, não sem certa relutância, bispo titular de Utica. Em 1521, d. Henrique voltou à capital do Congo, Mbanza Congo, hoje São Salvador, no norte de Angola, mas morreu cerca de dez anos depois em conseqüência de uma longa enfermidade. Parece que seu organismo se habituara ao clima de Portugal, depois de tantos anos de permanência lá, já que ele se queixou em 1526 de andar doente desde seu regresso à África e disse que gostaria de voltar para Portugal. Mesmo antes da morte de d. Henrique, o rei Afonso havia mandado para Portugal vários sobrinhos e primos para se formarem sacerdotes, na esperança de que dois ou três também fossem consagrados bispos, porque o Congo era um país grande demais para ser supervisionado por um só prelado. Parece que nenhum desses outros parentes foi alçado à dignidade episcopal, não obstante o relato de certos cronistas portugueses sugerir que alguns conseguiram chegar lá. O que se sabe ao certo é que jovens da nobreza congolesa continuaram a ser regularmente enviados a Lisboa para estudar, e que a maioria freqüentou o seminário de são João Evangelista, mais conhecido como convento de santo Elói. O cronista e humanista João de Barros (c. 1496-1570) mencionou em sua Cartilha de 1539, dedicada ao finado infante d. Felipe, a chegada a Lisboa de quatro chefes paravás, vindos de Malabar: "Seu pai [o rei João III] mandou que eles fossem para o convento de santo Elói, nesta cidade, para estudar lá com os outros etiópios do Congo, entre os quais já formamos bispos e teólogos, sem dúvida algo muito novo na Igreja de Deus, embora fosse profetizado no Salmo 71". Muitos desses jovens congoleses morreram antes de completar os estudos em Lisboa, e um dos sobrinhos do rei Afonso preferiu ser mestre-escola e casar-se em vez de voltar para o Congo. Mas o caminho parecia aberto para a formação de um clero nativo plenamente habilitado nos dois continentes com a promulgação da bula papal de junho de 1518, que autorizou o capelão real de Lisboa a ordenar "etíopes, indianos e africanos" aptos a atingir os níveis morais e educacionais exigidos para o sacerdócio. É claro que nessa época não havia uma barreira de cor impedindo o desenvolvimento de um clero nativo, fosse ele africano ou indiano, mas não demorou muito para surgir o preconceito racial, ainda que sua intensidade variasse no tempo e no espaço. Em meados do século XVI, a projetada evangelização dos bantos do Congo tinha fracassado, a despeito de um começo promissor. Essa história é bem conhecida e não vou reproduzi-la aqui. É suficiente lembrar que o fracasso foi uma conseqüência do enorme interesse pelo comércio de escravos africanos de que os missionários (ou alguns deles) participaram ativamente. As doenças tropicais dizimaram boa parte do contingente de missionários europeus - que, aliás, nunca foi muito numeroso - e contribuíram para barrar a continuação do empreendimento evangelizador. Entretanto, um pequeno número de estudantes asiáticos e africanos ("estudantes negros e índios") continuou a ser educado para o sacerdócio em santo Elói. Alguns desses evidentemente voltaram para seus países de origem, embora haja pouquíssimas e raras referências a esse fato. O aumento do preconceito racial contra pessoas de sangue africano pode ser explicado sobretudo pelo desenvolvimento do tráfico negreiro que tomou forte ímpeto durante o século XVI devido à crescente demanda de escravos da África ocidental por parte das colônias ibéricas do Novo Mundo. A associação do negro africano com a escravidão remonta, no entanto, a um período histórico anterior. Um primeiro exemplo se encontra no relato das Viagens do cavaleiro da Boêmia, Leão de Rozmital, que visitou Portugal em 1466. Ao despedir-se do rei Afonso V e sua corte, Rozmital recebeu do monarca a oferta de levar como presente qualquer coisa que desejasse. O viajante boêmio pediu dois escravos negros; ao ouvir essa resposta, o irmão do rei começou a rir e disse a Rozmital que ele deveria pedir algo de mais valor, porque os portugueses traziam todos os anos "centenas de milhares de escravos etíopes, de ambos os sexos, que eram vendidos como gado". A quantidade certamente é um exagero, porque a importação não poderia chegar nem a um décimo desse montante. Mas o comentário do duque de Viseu mostra bem que para as classes superiores portuguesas os negros escravos eram, sob vários aspectos, subumanos. Um forte preconceito racial contra os mulatos não tardou a desenvolver-se na ilha de São Tomé, onde eles constituíam uma parcela elevada da população desde o século XVI. As críticas seguiram a linha desde então repetida à exaustão, de que pessoas de sangue mestiço herdam mais os vícios que as virtudes de seus progenitores. Era comum acusar os mulatos de serem "insolentes, endiabrados e difíceis de lidar". [...]