Trecho do livro BRASIL EM TEMPO DE CINEMA

Introdução Este ensaio não é um catálogo comentado dos filmes brasileiros produzidos de 1958 a 1966. Pretende ser uma descrição e, na medida do possível, uma interpretação da atitude cultural exteriorizada, conscientemente ou não, no conjunto dos filmes brasileiros realizados nestes últimos nove ou dez anos. Não se adotou sistematicamente o critério cronológico, nem o da classificação por gêneros, ou por diretores, nem o da divisão entre produções comerciais e culturais, ou de esquerda e de direita. Tentou-se encarar o cinema brasileiro como um todo orgânico resultante de um trabalho coletivo. O projeto é pretensioso, pois, abordando uma matéria que está sendo elaborada, exige um recuo histórico impossível; conheceremos a significação do cinema que fazemos só quando soubermos em que ele vai dar e quando pudermos elaborar uma visão do conjunto cultural e social em que se integra. Isso hoje é impossível, pois estamos justamente criando esse conjunto cultural e social. Por outro lado, tal projeto é modesto, já que reconhece seus limites: tentativa, apenas, de ver claro naquilo que vem sendo feito, para saber em que ponto estamos e quais as perspectivas que nos são abertas. Ainda que seja um trabalho de reflexão, não se coloca num nível superior ao das obras que aborda. Situa-se no mesmo nível; situa-se (pelo menos pretende) dentro da luta; é uma tentativa de esclarecimento, um esforço para enxergar melhor, não um livro de história, nem uma atribuição de prêmios aos bons filmes e reprovação aos maus. Este ensaio repousa mais na intuição e na vontade de esclarecer a situação em que estamos mergulhados do que mesmo num trabalho sistemático de crítica e sociologia. Inicialmente, porque a matéria, ainda que densa, é pouca. Atualmente, os diretores brasileiros são um pequeno número; os filmes produzidos desde 1958 são poucos. Isso faz com que determinados elementos devam ser detectados num único filme, visto que as sementes lançadas não puderam ser aproveitadas e desenvolvidas pelo próprio diretor ou por outros em filmes posteriores, o que não ocorreria se o cinema brasileiro estivesse economicamente mais sólido. A análise encontra-se assim sobremaneira dificultada. Outro obstáculo provém do fato de que os filmes ainda não conseguem comunicar-se plenamente com o público e a crítica, o que não facilita a avaliação do peso que pode ter na sociedade brasileira o cinema que se está fazendo. Tal fenômeno é realmente grave, porque um filme só se completa quando passa a ter uma vida dentro do público a que se destina. Outro empecilho é a escassez de meios para quem quer estudar cinema no Brasil: a falta de equipamento adequado; a não-disponibilidade de cópias (para a elaboração deste trabalho, não consegui ver alguns filmes, como, por exemplo, Esse mundo é meu); a inexistência de centros de estudos cinematográficos dignos desse nome etc. Tudo isso conduz obrigatoriamente a pesquisas superficiais. A CLASSE MÉDIA. CULTURA CONSUMÍVEL O Brasil tem estruturas que comprovadamente não mais correspondem a suas necessidades e às exigências de seu povo; por outro lado, o povo não consegue modificá-las; a evolução social é conflituada e cada fracasso torna mais agudas e gritantes as contradições. A classe que no Brasil inteiro vem, há décadas, se desenvolvendo e se estruturando, fazendo sentir cada vez mais sua presença, é a classe média, principalmente a urbana. É ela que faz funcionar o Brasil: são os médios e pequenos industriais e comerciantes; são os engenheiros, técnicos, administradores, advogados, médicos, economistas, professores, arquitetos, artistas etc.; são aqueles que vivem de e fazem viver as grandes indústrias e comércios; são os universitários, os funcionários públicos, o operariado qualificado. Mas não é a classe dirigente do país. Ela é dominada por cúpulas representantes do capital, o que suscita inúmeras contradições em seu desenvolvimento e em sua afirmação. É a classe média a responsável pelo movimento cultural brasileiro. Não há grupos aristocráticos ou da grande burguesia que possam sequer manter uma forma qualquer de parnasianismo. Quanto às classes que trabalham com as mãos, operários e camponeses, ainda lhes faltam consistência e bases suficientes para elaborar uma cultura que não seja folclórica. Pode acontecer que elementos das classes operária ou camponesa se tornem artistas, mas são sempre indivíduos isolados, cuja produção é logo consumida pela classe média, à qual passam a se dirigir e pela qual são absorvidos. Todos os valores culturais, todas as obras, da música popular à arquitetura, são atualmente produzidas pela classe média. A produção e o consumo cultural nestes últimos anos têm aumentado vertiginosamente: nota-se esse fenômeno tanto no estudo histórico, sociológico e econômico da realidade brasileira, quanto em arquitetura, literatura, música, artes plásticas, teatro e cinema. A produção editorial, o número de exposições, de espetáculos teatrais ou de filmes aumentam, apesar de as pessoas ou firmas que produzem se debaterem em geral com dificuldades financeiras sérias. Os dois principais centros são São Paulo e Rio de Janeiro, mas o fenômeno é de âmbito nacional, pois outras capitais são também focos vivos. Esse fenômeno é reflexo do processo de estruturação que se está verificando com a classe média. Evidentemente, as contradições com que se debate a classe média, sua extensão, sua vitalidade e suas fraquezas se refletem nessa produção cultural, marcada principalmente pelo fato de que seus consumidores não têm consciência de sua situação, de seus reais interesses e problemas a resolver, pois consciência social e interesses podem não coincidir. Assim, ao lado de sérias pesquisas sociológicas e do interesse público que despertam cada vez mais, cada vez mais também são bem acolhidos autores que praticam um verismo moralista. Ao lado do realismo crítico, coexistem divertimento de alcova e formas surrealistas de 1920, quando não românticas do século passado. Tudo isso caracteriza mais a formação de um mercado cultural do que a criação de formas culturais próprias. Grande parte da produção teatral, literária ou cinematográfica obedece às mesmas regras que o desenvolvimento do mercado de luxo: a arte decorativa, a proliferação dos espelhos, de vermelho e dourado e de tapetes espessos nos saguões dos cinemas, o requinte progressivo da vida de boate, a melhoria da moda, a publicação de livros de culinária considerada como uma bela arte, o impulso do turismo, o aumento do número dos clubes de campo. Tais fenômenos têm a mesma raiz, resultam da mesma evolução social. E a rainha desse mercado é a televisão. É que o desenvolvimento da classe média é condicionado por suas relações de trabalho e por capitais que não se encontram em suas mãos. Ela é uma criação e uma serva do capital. O essencial de sua vida, suas possibilidades de desenvolvimento manifestam-se nas fábricas, nos escritórios, nas lojas, onde os indivíduos são apenas peças de um mecanismo que lhes escapa totalmente. A vida fora da fábrica, do escritório ou da loja torna-se marginal, é um intervalo, um momento de espera; é um vazio que, à medida que a classe média aumenta, tem de ser preenchido de modo sempre mais agradável, assim como devem ser valorizados marcos exteriores e lisonjeadores de seu desenvolvimento. Para povoar o espaço que permanece entre a saída e a volta ao local de trabalho, a classe média precisa criar objetos que confirmem seu crescimento, sua força ou ilusão de força, que afirmem seu bom gosto, considerado como prova de superioridade. Aldemir Martins desenha pratos; "nossos melhores artistas plásticos" pintam os motivos dos estampados da Rhodia; os tecidos e os lustres de My Fair Lady encantam platéias. No cinema, esse espírito é encarnado por Jean Manzon, cujas fitas são financiadas por grandes firmas agrícolas e principalmente industriais; os temas reduzem-se a dois: quantidade e qualidade. Fala-se em toneladas de cana ou aço produzidas por minuto ou por hora ou por dia (não tem importância, pois o público não tem ponto de referência); para construir tal objeto, foi usado tanto cimento quanto seria necessário para construir um edifício de duzentos andares; fala-se dos "admiráveis trabalhadores e admiráveis técnicos". A isso adiciona-se um pouco de poesia e muitas cores: os colheiteiros de café exibem chapéus multicolores; o poliestireno incolor torna-se vermelho nas mãos de Manzon; as platéias ficam embevecidas diante das orquídeas e dos papagaios encontrados numa favela sobre o Amazonas - desculpem, na "parte aquática da cidade de Manaus". A Indiana, num curta-metragem épico sobre o Planalto Piratininga, faz o histórico dessa "sinfonia do trabalho" que é a vida paulista desde Anchieta até as vitrinas da casa de moda Rosita. Como não sentir-se forte e seguro de si depois disso? Se os exemplos que o cinema brasileiro oferece dessa mentalidade se restringem aos pseudodocumentários financiados por empresas e a poucos filmes de ficção, como A morte comanda o cangaço e Lampião, rei do cangaço, não é porque os cineastas pretendam não se deixar contaminar. É porque, devido à obstrução com que se defronta na distribuição e à concorrência dos filmes estrangeiros, o cinema não chegou a se impor definitivamente como mercadoria. O teatro, obrigatoriamente feito no Brasil por brasileiros, e de custo inferior ao do cinema, já existe como mercadoria e encontra empresários, como Oscar Ornstein, que dão à peça o tratamento que recebe a pasta dental: adequação ao gosto do maior número, publicidade, sorteios de meias ou perfumes nas vesperais. Enfim, a peça é tratada como um produto a consumir e o empresário faz o necessário para que seja consumida. E, naturalmente, grande parte do teatro brasileiro apresenta aqueles valores suscetíveis de agradar a uma platéia classe média: comédias leves em que a atriz muda de vestido em cada cena e exterioriza seu talento através de gestos de salão; interpretação, direção, cenografia que obriguem o espectador a reconhecer que "realmente, é muito bem-feito". Essa mesma mentalidade, aliás, já existe, como é normal, numa grande parte do meio cinematográfico brasileiro: muita gente pensa que se deve fazer filmes em que se gastem muitos milhões e que sejam de "boa qualidade"; foi, parece, o pensamento do produtor de Society em baby-doll. Só que esses cineastas estão por enquanto sem sorte, pois, para que esse cinema vença, é indispensável antes de mais nada que se considere o filme como produto a consumir e que se faça o necessário para que seja consumido. O cinema brasileiro ainda não tem seu Oscar Ornstein, mas é provável que ele não demore muito a aparecer, e então o público terá um cinema que lhe dará um satisfatório reflexo de si próprio, apresentando-lhe qualidade e quantidade. Na introdução, de uma página e meia, do programa de um espetáculo musical de grande repercussão promovido pela Empresa Diogo Pacheco, encontramos os mesmos temas: qualidade e quantidade de trabalho. Para executar esse espetáculo de "extrema dificuldade", musicalmente "dificílimo", foi exigido um "trabalho intenso". "Enfrentaram as dificuldades", "não pouparam ensaios" para conseguir "a melhor execução possível". Os instrumentistas foram escolhidos entre o que "havia de melhor em São Paulo [...] para provar ao público que possuímos instrumentistas de qualidade"; foram selecionados atores tais que "ninguém nos pareceu melhor"; quanto à "excelente" cantora, não havia "ninguém melhor". Não se pouparam esforços para realizar um espetáculo à altura da platéia, que não deixou de encontrar no palco um reflexo digno dela. Se insistimos na citação desse texto sem importância e que chega a ser caricatural de tão enfático, é porque gira inteiramente em torno da quantidade e da qualidade como valores em si, constituindo manifestação significativa da mentalidade classe média. De fato, maior e melhor são duas palavras ocas e superficiais que revelam uma fuga da realidade e com as quais a classe média mascara seus problemas. Uma cultura que tem como critério apenas a qualidade é uma cultura morta, ainda mais quando de boa qualidade se torna sinônimo de consumível. Eis a cultura que a maior parte da classe média brasileira culta se mostra atualmente apta a produzir e a consumir. Justamente porque a classe média se comporta cegamente, aspirando mais a uma vida e a valores que imagina serem os das classes superiores, desviando-se assim de seus próprios problemas, a criação é pouca e fraca - o que não contradiz a afirmação acima, segundo a qual o desenvolvimento cultural é grande, principalmente em quantidade, ainda que muito inferior ao necessário, mas também em qualidade. No meio dessa gente toda que anda às apalpadelas, que opta por valores opostos a seus interesses, encontramos uma camada progressista disposta a procurar rumos para a afirmação de sua classe. Ela se manifesta tanto nos meios industriais como nos culturais e artísticos. Os valores que se esforça por criar, as idéias que emite, as formas que tenta elaborar encontram, no conjunto da classe telespectadora (expressão praticamente sinônima de classe média), uma violenta oposição. É de um aspecto dos trabalhos dessa vanguarda cultural que tentarei dar conta ao esboçar uma interpretação do cinema brasileiro de 1958 a 1966.