INTRODUÇÃO: o vento e o moinho I Numa carta da segunda quinzena de setembro de 1884, escrita em Nuenen, sul da Holanda, Vincent van Gogh põe-se a discutir com o irmão Theo suas divergências políticas. E aproveita-se de uma coincidência numérica (1884 e 1848) para imaginar de que lado das barricadas da Revolução de 1848 ambos se encontrariam, caso tivessem vivido aquele importante acontecimento da vida política da França: Vincent junto aos rebeldes e Theo ao lado dos soldados do governo. Para Vincent, essa especulação em relação a 1848 se justificaria pelas divergências que tinham quanto ao presente (1884), embora não mais houvesse barricadas pelas ruas de Paris. "Mas elas ainda existem" - diz Vincent - "para os espíritos que não podem estar de acordo. Le moulin n'y est plus, mais le vent y est encore [O moinho não mais existe, mas o vento continua]." Considero essa metáfora mencionada por Van Gogh muito reveladora. Literalmente, a relação estabelecida entre o vento e o moinho diria respeito à capacidade humana de tirar proveito de forças ou elementos naturais por meio de um ardil, pela criação de formas que os pusessem a funcionar sob desígnios humanos. Por certo, Van Gogh procurou dar a essa relação um alcance maior, pensando-a como algo existente também nas interações sociais. Nem todas as insatisfações ou interesses de diferentes camadas da população alcançam uma configuração clara - a capacidade de tornar-se um movimento, uma palavra de ordem - e, como o vento, podem soprar de muitas maneiras, em direções diversas e, assim, estiolar-se pela ausência de formas (o moinho) que lhes confiram maior contundência. Curiosamente, o sentido original dessa frase apontava em outra direção. Van Gogh cita, sem mencionar o autor, uma passagem então possivelmente célebre de Os miseráveis, de Victor Hugo. Nela, o escritor descreve o encontro - ocorrido por volta de 1815, portanto logo após a restauração bourbônica - entre o bispo de Digne, dom Bienvenu, e um antigo membro da Convenção revolucionária, G. Após longas discussões sobre a Revolução Francesa, G. faz um balanço do processo iniciado em 1789: "Infelizmente, a obra não estava perfeita, concordo; derrubamos as aparências externas do Antigo Regime, mas não lhe suprimimos as idéias. Não basta destruir os abusos; é preciso mudar os costumes. Desapareceu o moinho, mas o vento ainda sopra". Para o velho membro da Convenção, as instituições do Antigo Regime (o moinho) haviam imprimido ao próprio vento (os costumes) algo de sua dinâmica, que caberia ainda combater. Com esse significado, a afirmação do velho revolucionário parece ecoar os moinhos de vento de Dom Quixote. Penso que os diferentes sentidos obtidos pela mesma passagem advenham de seu uso relativo a diferentes contextos históricos, a movimentos políticos que tiveram significações e desdobramentos diversos, ambos do maior interesse. Contudo, desde que dei com a frase citada por Van Gogh - apenas muito tempo depois me preocupei em descobrir quem era seu autor -, convenci-me de que dificilmente uma outra imagem conseguiria exprimir tão bem a situação que vivemos há algumas décadas. Certamente, não me refiro com nostalgia à falta de barricadas em nossa época. À sua maneira elas ainda existem em várias partes do mundo, e muitas vezes pelas piores razões. O que me parecia admirável na frase de Victor Hugo, tal como a usava Van Gogh, era a clareza com que ela expunha o que poderíamos chamar hoje uma crise de inimigos, a dificuldade de as forças sociais se articularem tanto pela ausência de um opositor claro quanto pela incapacidade de ordenarem a si mesmas, movimentos que se complicam mutuamente. A dificuldade contemporânea para delinear, ainda que tentativamente, as relações entre as classes, grupos, movimentos sociais, propostas políticas e econômicas por certo não significa que vivamos no melhor dos mundos. No entanto, faltam moinhos. O pouco alcance de parte considerável da produção artística e intelectual das últimas décadas talvez se explique em boa medida justamente pela dificuldade de experimentar uma realidade que se tornou demasiado lábil para os instrumentos que possuímos. Numa entrevista de 1984, Giulio Carlo Argan afirmava: "Não dissocio moderno e vanguarda. Antes, ligo-os ao conceito de revolução". Para o historiador italiano não se tratava de atribuir posições politicamente revolucionárias aos artistas modernos, e sim de entender a dinâmica de sua produção ligada estreitamente a uma intuição do mundo que teve eficácia ao menos até os anos 60. O entusiasmo e as magníficas obras da arte moderna sem dúvida foram impulsionados por uma realidade social cujo processo se constituía em oposições e rupturas que aparentemente apontavam para uma ordenação mais justa da sociedade. Essa história conflituada que punha seus próprios obstáculos e horizontes mostrava-se de maneira mais permeável que a contemporânea (ao menos até hoje), e a grandeza da arte moderna, escusado dizer, não foi somente um sintoma desse processo. Em sua diversidade e potência ela não apenas revelava a complexidade daquele processo, como sobretudo ajudava a afirmar sua vitalidade, ou seja, a enorme capacidade de produzir alternativas, de criar formas que ajudassem a experimentar o mundo como algo permeado por alternativas e possibilidades. De Manet a Pollock - em apenas cem anos -, a arte moderna produziu uma quantidade de grandes obras de arte comparável apenas à do Renascimento e, por razões que os ideais das duas épocas ajudam a explicar, com uma diversidade estilística nunca antes vista na história da arte. Embora a visibilidade mundana da produção contemporânea seja incomparavelmente maior (e mais discutível), acredito que não haja termos de comparação entre o que realizou nos últimos cinqüenta anos e os trabalhos de, entre outros, Manet, Monet, Van Gogh, Cézanne, Picasso, Matisse, Duchamp, Malevich, Mondrian, Morandi, Miró, Klee, Brancusi, Bram van Velde, Giacometti e Pollock. Mesmo no Brasil, cuja arte moderna foi tardia e ambígua, penso não haver ainda entre nossos artistas contemporâneos quem tenha chegado à altura de Goeldi, Volpi, Mira Schendel, Amilcar de Castro, Sergio Camargo e Hélio Oiticica, entre tantos outros. E acredito que esse desequilíbrio se explica fundamentalmente pelas dificuldades que mencionei logo acima. Os diferentes períodos artísticos colocam para si mesmos seus ideais estéticos, e se torna praticamente impossível entender seu ritmo sem considerar a que esses artistas se propunham. Um artista bizantino - praticamente alheio à noção de indivíduo criador - movia-se em função de objetivos muito distintos dos de um renascentista e algo semelhante deve ocorrer entre artistas modernos e contemporâneos. Portanto seria inútil medi-los com o mesmo metro, embora me pareça possível cotejar a grandeza artística de diferentes épocas justamente pela capacidade de estabelecer com seu tempo relações significativas, pertinentes àqueles períodos históricos. Nunca como hoje as artes visuais se moveram tão velozmente, com uma sucessão vertiginosa - nem sempre por motivos artísticos - de correntes, estilos, novas técnicas e gêneros. No entanto, fica a impressão de que essa seqüência de novidades se explica mais pela originalidade e fugacidade da situação social contemporânea do que pela força das próprias expressões artísticas. Por certo há esforços bem-sucedidos e obras à altura dos nossos dilemas. Na maior parte dos casos, porém, parece que o não reconhecimento das dificuldades da atual experiência histórica tem conduzido a uma incorporação exterior e rebaixada de dinâmicas que terminam sendo apenas tematizadas, sem que os trabalhos de arte tenham a capacidade de aceder - e de revelar - à articulação desses movimentos e estabelecer com a realidade uma relação em que eles, justamente por agirem como uma força interna ao mundo que fendem, mostram-se também capazes de apresentá-lo como uma realidade menos impositiva, cujas fissuras cabe à arte (entre outras forças) revelar e manter. Qualquer pessoa razoavelmente familiarizada com a produção das últimas décadas deve ter deparado várias vezes com trabalhos que procuram restituir às artes visuais um tom de engajamento, seja abordando questões de gênero e sexualidade, seja denunciando problemas étnicos, desigualdades sociais, guerras, violência racial, a alienação ou a degradação das drogas. Outras vertentes buscam essa politização na própria disposição e configuração dos trabalhos - em geral, instalações, ambientes, obras de tipo site specific, intervenções urbanas etc. -, visando dessa maneira a romper com o que consideram a aristocrática autonomia do objeto de arte moderno, bem como com a aparente passividade do observador contemplativo. Para essas posições, as obras de arte deveriam praticamente abrir mão de suas particularidades e, no limite, dissolver-se no mundo. Próximos a essas soluções, muitos outros trabalhos contemporâneos se esforçam para mostrar-se enquanto formas abertas, simples sugestões que adquiririam maior definição somente com a participação do público. Não há por que duvidar da boa vontade desses artistas. Contudo, me parece que lhes falta o reconhecimento de que, dadas as novas circunstâncias, tudo conduz a que, em seus trabalhos, apenas se reitere a dispersão do vento - para permanecer com a imagem com que iniciei -, num movimento em que aquelas intenções relutam em reatar com um processo que lhes retire do estrito âmbito da vontade. O caráter aguerrido de parcela significativa da arte contemporânea parece se apoiar sobre um ponto frágil: incorporar às obras de arte uma estridência que, nas vanguardas modernas, dizia tanto respeito ao choque com a opinião conservadora quanto à construção das próprias obras. Pode-se reivindicar quase tudo a qualquer momento. Já obter a possibilidade de tornar real essa intenção supõe uma intuição do mundo que não o considere apenas como objeto de ações generosas. É necessário apreender-lhe o ritmo e as possibilidades, operar a partir de seu interior, produzindo obras que - à semelhança do que, com diferenças, pensam Adorno, José Arthur Giannotti e Roberto Schwarz - sejam simultaneamente sujeito e objeto, ordenados de maneira a se reconhecer neles a realidade contemporânea e suas potencialidades. Se o trabalho de arte reproduzir a forma tradicional de se agir sobre o mundo - um sujeito que conforma um objeto -, dificilmente superará essas limitações por uma temática combativa. E não há como prescindir de uma aguda noção de forma e de experiência se quisermos manter a pertinência das artes, a menos que se reitere a posição de exterioridade a que somos induzidos a nos relacionar com a realidade atual. É à capacidade da arte de nos fazer experimentar essa ampliação do mundo e de nossas potencialidades que me parece adequado associar a emoção que ela nos desperta. Penso que os melhores artistas contemporâneos são aqueles que, de diferentes maneiras, se deram conta das dificuldades de nossa época e, em vez de apenas replicar na forma envergonhada de seus trabalhos - porque de resto apenas fantasmas não têm forma - a fugacidade contemporânea, se esforçam para mapear o terreno em que nos movemos, permeáveis a ele e céticos quanto às soluções ansiosas. Provavelmente tenha sido Samuel Beckett o artista que melhor conseguiu caracterizar essa situação singular. A dispersão formal reivindicada pelos contemporâneos - em boa medida justificada como uma oposição ao que seria o formalismo moderno - tem colocado importantes setores da arte num beco sem saída. Da arte pop em diante - com destaque para as teses do minimalismo -, reivindica-se uma fragilidade formal que corresponderia criticamente à vida contemporânea, na qual a massificação, a produção em série, o anonimato, a força das imagens e da circulação de mercadorias desautorizariam as relações complexas da arte moderna, com sua busca de autonomia e diferenciação. Paralelamente, outras vertentes - mais ou menos influenciadas pela onda desconstrucionista - insistem em realizar obras cujo objetivo reside em acentuar as imposturas da arte, como se a ênfase nos seus limites fosse razão suficiente para não se abandonar essa atividade. A combinação desses tópicos - que certamente não dão conta de toda a arte contemporânea - tem conduzido a uma região dúbia. Na ausência de um processo artístico que conseguisse delinear sua inserção e pertinência no mundo, a própria arte parece ter se posto como o inimigo a ser vencido, o obstáculo à sua própria realização. O desdém com que muitos artistas encaram seus trabalhos - mas não o meio artístico, com seus curadores, críticos, galeristas e respectivas instituições - salta aos olhos. O efeito imediato dessa conjunção é a predominância de uma produção que se rege por uma impotência arrogante, irônica quanto a qualquer afirmação por meio da arte - e não apenas por seus temas - e contudo orgulhosa dessa auto-imolação. Essa espécie de teologia negativa da arte - só se pode afirmar sobre ela o que ela não pode ser - tem conduzido a limitações que convém observar mais de perto.