Trecho do livro FRAGMENTOS SETECENTISTAS

Introdução No início de abril de 1796, depois de seis anos como vice-rei do Estado do Brasil, o conde de Resende escreveu uma longa carta ao secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, Luís Pinto de Souza Coutinho. Estava preocupado com os "inumeráveis e prejudiciais inconvenientes" que vinha observando na cidade do Rio de Janeiro, causados pelo "grande número de escravos" ociosos e pela "imensa quantidade de mulatos e pretos forros" vadios ali existentes. Souza Coutinho tornara-se importante na corte de Lisboa, mas já havia governado a capitania de Mato Grosso e talvez pudesse entender suas inquietações. Segundo o conde, o costume dos senhores "mais opulentos" de ter um grande número de cativos, mais que o necessário, e de colocar muitos deles "ao ganho" pelas ruas da cidade gerava graves problemas: sem serem alugados ou empregados nas fábricas e lavouras, e sem acharem meios de buscar o próprio sustento, acabavam desocupados, entregando-se "ao ócio, à bebedice e a todo gênero de vícios". Adoeciam ou cometiam crimes, e então fugiam com medo dos castigos ou metiam-se "pelos matos, onde muitos passam toda a vida, causando aos lavradores danos muito consideráveis". O mesmo acontecia com as escravas, que ficavam ociosas nas casas ou andavam a vender "coisas insignificantes" pelas ruas, completando seus jornais "com escandalosas ofensas de Deus [...] [e] péssimo exemplo às famílias". A esse "defeituoso e terrível costume segue-se outro mal, não menos considerável, na multidão de filhos destas mesmas escravas, porque, sendo criados com demasiado mimo, se fazem depois altivos, insolentes e propensos a toda a qualidade de crimes". Com isso, aquela escravaria, em vez de concorrer para consolidar a posição senhorial, acabava trazendo a "ruína" e até a "desonra" para seus proprietários, além de prejudicar o bem comum. Mais perniciosa era, entretanto, a "multidão inumerável de mulatos, crioulos e pretos forros" que havia naquela cidade. Ela era fruto da facilidade com que os senhores libertavam os escravos nascidos e criados em casa, concediam alforria aos que lhes entregassem seu valor ("adquirido quase sempre por meios criminosos") ou ainda permitiam que ficassem libertos depois de seu falecimento. Livres, "todos estes indivíduos [...], sem meios de poderem subsistir ou com desprezo daqueles que lhes facilitam os ofícios [...] entregam-se a todo o gênero de vícios, tornando-se facinorosos, lascivos, ébrios e irreligiosos". As mulatas eram ainda piores, pois as que viviam "agregadas à família de seus antigos senhores" tornavam-se nocivas pela "má conduta ou pelas intrigas" que geravam e, quando moravam "sobre si ou em companhia de outras da mesma classe", levavam uma "vida escandalosa e libertina". Clamando contra essa multidão que só servia para inquietar o "sossego dos outros moradores", ele ponderava ainda, ao final de seu diagnóstico, que aquele "grande número de pessoas vadias" na cidade contribuía para o aumento da carestia: além de consumir os alimentos, esse contingente tirava as esmolas daqueles que realmente as mereciam. Havia, portanto, "defeitos" políticos e materiais graves que precisavam ser sanados com urgência. Até aqui, a descrição feita pelo conde não destoa de muitos outros documentos produzidos ao longo do período colonial. Na segunda metade do século XVIII, esse tipo de crítica começou a se fazer mais presente: vários letrados e diversas autoridades coloniais manifestavam preocupação com o número excessivo de escravos, condenavam o modo como os senhores governavam seus cativos e mostravam-se incomodados com os pecados e vícios que acompanhavam o domínio escravista. A carta escrita pelo conde de Resende possui algumas características que a tornam particularmente interessante para introduzir o tema deste livro, que discute os significados políticos da presença cada vez maior de escravos e libertos nos centros urbanos da América portuguesa. Colocando-se na posição paternal daquele que deve zelar pelo bem comum, o conde procurava indicar como esses desregramentos, que redundavam em tantos prejuízos aos senhores e à Coroa, podiam ser remediados. Baseado em sua experiência de governo, fazia um balanço político do problema. A "multidão de escravos" era, sem dúvida, um grande inconveniente - mas não havia como intervir no domínio senhorial e "arbitrar a cada morador aqueles [cativos] que lhe sejam indispensáveis para o serviço de sua casa e subsistência de sua família". A impossibilidade era de tal ordem que a hipótese não mereceu mais que duas breves linhas em sua longa carta. Nessa direção, pouco havia a fazer. Mas, "quanto aos libertos", a coisa era diferente. Valia a pena aprofundar o diagnóstico e propor medidas mais eficazes. Ponderando sobre temas que deviam sensibilizar Souza Coutinho, como a grande desproporção entre "esta qualidade de gente [liberta] e a força militar" da cidade e o perigo de ter tantos soldados arruinados pelas doenças contraídas com as libertas entregues à prostituição, ele propôs um conjunto de medidas. Recomendou primeiramente a feitura de uma "relação de todos os mulatos, crioulos e pretos forros, da qual constassem as suas idades, ocupações e estado", bem como do registro de todas as cartas de liberdade - tarefa que deveria ficar a cargo de um ministro, especialmente encarregado "deste importantíssimo objeto de polícia". Depois de investigar "o modo de vida, procedimento e conduta" daqueles homens, ele decidiria quais deveriam continuar a viver dentro da cidade: os que não tivessem ofício, fossem solteiros e de idade competente seriam recolhidos em uma "casa de correção", onde residiriam, aprenderiam um ofício e trabalhariam para seu próprio sustento; os "vadios e viciosos" seriam remetidos para o continente do Rio Grande, Santa Catarina e Cantagalo, para serem empregados na agricultura e na criação de gado; os casados também seriam empregados "fora da cidade", à semelhança do procedimento adotado com os casais vindos das Ilhas e enviados para as regiões do sul. As mulheres seriam igualmente registradas. As que fossem honradas e estivessem ligadas a uma família poderiam permanecer como estavam. As que vivessem "sobre si" seriam enviadas para outra casa de correção, para aprender "alguma ocupação própria do seu sexo". Sob os cuidados de "pessoas capazes e de probidade", podiam depois casar com aqueles formados em instituição semelhante, permanecendo na cidade ou indo para as partes do sul, com ajuda semelhante à concedida aos casais das Ilhas. As propostas do conde de Resende, pela rapidez com que trataram dos escravos e pela riqueza de detalhes em relação aos libertos, são surpreendentes. Sua preocupação maior não era com a escravidão propriamente dita, já que não havia como interferir no poder dos senhores sobre seus cativos, assunto restrito ao âmbito do domínio particular. Era, sim, com os homens e mulheres "pretos, crioulos e mulatos" que haviam obtido a liberdade. Não mais sujeitos ao domínio de seus senhores, eles deviam ser objeto de um domínio de outra natureza: deviam ser registrados, triados e classificados conforme suas respectivas índoles, e a vida deles tinha que ser encaminhada segundo os interesses do bem comum. Realizando uma leitura política do espaço urbano e da concentração desses homens e mulheres que julgava ociosos, o conde procurava estabelecer mecanismos para inseri-los naquela sociedade. Pretendia transformar essa "classe de gente" em seres úteis, socialmente aceitáveis, com ofícios e casados. Sua fórmula, ao mesmo tempo em que evitava a dissolução dos costumes, tentava contribuir para a produção de alimentos, para a fixação e o aumento da população e para o reequilíbrio entre os poderes no principal palco político do Estado do Brasil. Sua preocupação estava diretamente associada ao "grande número", à "imensa quantidade" de gente não branca existente no Rio de Janeiro. De fato, ao longo do século XVIII, o aumento do número de escravos e de negros e pardos libertos e livres foi especialmente significativo nas cidades da América portuguesa. Durante todo o período colonial, levas e levas de africanos foram obrigadas a atravessar o Atlântico para trabalhar como escravos nas lavouras, engenhos e lavras minerais. As estimativas mais aceitas atualmente informam que chegaram ao Brasil 50 mil africanos escravizados até 1600, 160 mil no período entre 1600 e 1640, 400 mil entre 1640 e 1700, 960 mil entre 1700 e 1760 e 726 mil entre 1760 e 1800. Crescendo em volume mais rapidamente no século XVIII, o tráfico alimentava uma concentração de escravos que em geral representava entre 30% e 50% do total da população, mas que podia chegar a mais de 70% em algumas regiões açucareiras e mineradoras. O desequilíbrio demográfico não era causado apenas pela existência dos escravos. Havia ainda os negros e mulatos livres e libertos, que também compunham essa "multidão" problemática, a exigir soluções urgentes. Os dados demográficos para o período colonial, mesmo para a segunda metade do século XVIII, são bastante imprecisos e rarefeitos, mas as porcentagens são significativas. Em 1798, dois anos depois de o conde de Resende escrever sua carta, a população do Brasil era estimada em cerca de 3,25 milhões de pessoas, sem incluir os índios considerados "bravios". Desse total, os índios "pacificados" perfaziam 7,7%, os brancos chegavam a 31,1%, os libertos somavam 12,5% e os escravos 48,7%.5 A cidade do Rio de Janeiro acompanhava grosso modo essas proporções. Censos realizados em 1779, 1789 e 1797 indicam que no período cerca de 55% dos habitantes da cidade não eram brancos: os escravos oscilavam entre 34% e 43% da população e os pardos e pretos livres, quando foram contados, ficaram entre 18% e 20% do total. Em algumas freguesias, como São José, onde ficava o palácio dos vice-reis, os brancos não ultrapassavam a casa dos 30%. Certamente os números levantados pelas autoridades coloniais destinavam-se à análise de questões práticas, militares e econômicas. Na historiografia, a desproporção entre negros e brancos é geralmente explicada por aspectos econômicos: a escravidão cresceu e se adensou ao longo do século XVIII, com o desenvolvimento da mineração e de novas áreas de cultivo de açúcar, bem como com o incremento do volume do tráfico negreiro. Os estudiosos chamam também a atenção para o crescimento significativo do número de libertos e, neste grupo, para uma proporção maior de mulatos do que de pretos. Apesar das diferenças regionais e das oscilações ao longo do tempo, as explicações mais freqüentes para esse fenômeno referem-se às altas taxas de manumissão que caracterizaram o escravismo brasileiro e chamam a atenção para a larga incidência da mestiçagem. O exame empreendido pelo vice-rei conde de Resende em sua carta de 1796 era, entretanto, eminentemente político. Ao detectar problemas no comportamento senhorial, como a tendência à ostentação e à liberalidade em conceder alforrias, e ao apontar os perigos da concentração daquela multidão de libertos viciosos e libertinos, ele estava preocupado com o governo da cidade do Rio de Janeiro e do próprio Estado do Brasil. Seus alvos eram a ruína das famílias, a dissolução dos costumes, os prejuízos ao bem co-mum acarretados pela diminuição das riquezas agrícolas e, sobretudo, pelo aumento do número de escravos libertos malnascidos, desobedientes e desocupados. Seguindo o caminho aberto pelas avaliações do conde de Resende, este livro discute como esse fenômeno foi percebido por letrados e autoridades coloniais. Antes de indicar os parâmetros da análise empreendida, é preciso situar essa opção nos quadros mais amplos dos movimentos historiográficos pelos quais vem passando o estudo do período colonial. Não é o caso de historiar aqui a longa trajetória que, forjada desde meados do século XIX, constituiu a área dos estudos do período colonial no Brasil. Nem é necessário voltar às obras matriciais de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda, nem aos debates que marcaram os anos 1960 e 1970 - questões já suficientemente exploradas por diversos autores. Podemos começar com os desdobramentos historiográficos que se desenvolveram a partir do final da década de 1970 e que constituem a base para a reflexão que será empreendida a seguir. Depois das disputas teóricas que visitavam o período em busca de matrizes explicativas para interpretar o Brasil, o desenvolvimento dos programas de pós-graduação deu origem a várias monografias sobre conjunturas precisas ou temas específicos. No interior das diversas opções teóricas que haviam marcado o debate nos anos 1970, esses trabalhos foram alargando os horizontes da historiografia colonial. Paralelamente aos temas clássicos da história econômica (da produção açucareira, da mineração e do comércio colonial) ou da demografia histórica (incluindo aí a análise das relações familiares), a influência da escola francesa fez surgir novos temas e áreas de pesquisa. Abriu-se, assim, um leque de obras que, incorporando fontes inquisitoriais e cartoriais, passou a explorar aspectos ligados às mentalidades e ao cotidiano, como as crenças religiosas, as sexualidades, as "heresias" sociais, as formas de viver e sentir. Ao mesmo tempo, combinadas com outros desenvolvimentos historiográficos, como no caso dos estudos feministas ou daqueles sobre as cidades, começaram a aparecer análises que focalizavam novos personagens e experiências sociais diversificadas. Índios aldeados, administradores coloniais, homens livres pobres, comerciantes de pequeno e grosso trato, lavradores de cana e de alimentos foram sendo investigados no Norte, no Sul, nas minas, nas áreas de lavoura e nos sertões. No mesmo período, embora fruto de outros desdobramentos, a produção internacional sobre o Brasil também se fortaleceu, com a publicação de obras importantes. Na França e sobretudo nos Estados Unidos, o grande interesse pela história do Brasil observado nos anos 1970 ajudou a consolidar uma produção continuada sobre a história colonial da América portuguesa. Muitas vezes desenvolvido no interior de uma reflexão sobre a América Latina, aos poucos o conjunto foi delimitando um campo de trabalho com áreas e especialistas de destaque. Obras importantes sobre diversos aspectos da economia e da sociedade na América portuguesa, algumas de síntese, outras de caráter monográfico, foram publicadas e muitas delas logo traduzidas para o português. Enfatizando continuidades, muitos pesquisadores buscaram elementos comuns capazes de caracterizar práticas especificamente coloniais, enquanto outros procuravam diferenciar as experiências sociais e culturais em tempos e espaços diversos. Cada vez mais conhecido em suas dimensões políticas, sociais e culturais, o universo colonial ganhou densidade, variações, nuances. Quase simultaneamente, as análises também passaram a inquirir as projeções políticas presentes nas várias interpretações produzidas ao longo do tempo e a própria historiografia começou a ser posta em causa. Os elos que durante muito tempo levavam à concepção da colônia como uma unidade temporal, espacial e social foram rompidos e a história começou a escapar do império da nação. Esse movimento também se beneficiou de modificações experimentadas em outras áreas de estudo. Nos anos 1980, a história da escravidão no Brasil passou por transformações significativas, que redimensionaram a abordagem das relações entre senhores e escravos nessa parte do mundo. Recuperando nuances e ambigüidades que antes poderiam parecer surpreendentes, a experiência da escravidão começou a ser inquirida de modo a recuperar a perspectiva dos sujeitos em confronto. Temas como a família, as fugas e revoltas, as lutas por alforria, as irmandades, as relações dos escravos com as instituições senhoriais e tantos outros passaram a ser objeto de vários estudos, configurando terrenos historiográficos com debates próprios. Já não bastava mostrar que os escravos haviam se rebelado ao longo de toda a vigência da escravidão, por exemplo. Era preciso descobrir as variantes das ações de resistência, compreender seus significados, perceber mudanças e variações ao longo do tempo, conforme os contextos demográficos, econômicos etc. Se inicialmente o volume das pesquisas sobre a escravidão esteve centrado no século XIX, aos poucos as novas questões e os novos procedimentos de análise foram sendo incorporados às possibilidades da pesquisa que se dedicava ao período colonial. A tendência foi reforçada por estudos em áreas próximas, como nos trabalhos sobre o cativeiro indígena, fazendo com que uma perspectiva centrada nos sujeitos se consolidasse cada vez mais. Assim, o interesse pelas relações entre os colonizadores e as diversas nações indígenas ou o modo como estas conviveram ou reagiram diante do processo colonizador combinou-se à preocupação com as diferenças culturais entre os africanos trazidos como escravos para as terras da América. A partir dos anos 1990, a história política, que até então havia passado praticamente incólume diante de tantas transformações, começou a se mover com velocidade. Acompanhando a renovação dos estudos sobre a sociedade do Antigo Regime português, surgiram novas abordagens sobre as relações de poder no mundo colonial, especialmente sobre as tensões entre os interesses "centrais" e "locais". As pesquisas sobre as formas de governar os domínios ultramarinos, o funcionamento das diversas instituições que agregavam e davam consistência às redes hierárquicas que ligavam horizontal e verticalmente a sociedade colonial foram se desenvolvendo, em conexão com estudos realizados para outras áreas do Império português. Aos poucos, os nexos imperiais das políticas metropolitanas e das dinâmicas coloniais foram se impondo nas análises, fazendo com que eventos "brasileiros" pudessem ser analisados em conexão com outros ocorridos na África ou na Índia. Assim, a dualidade Brasil-Portugal, que havia presidido boa parte de nossa produção historiográfica, passou a conectar-se às dimensões do Império português. As trocas comerciais passaram a ser examinadas em perspectiva mais ampla, os mecanismos da dominação escravista começaram a aparecer imbricados em dinâmicas sociais e políticas mais complexas, e os movimentos sociais ocorridos deste lado do Atlântico foram comparados com seus contemporâneos na África ou na Índia. Este livro se situa na confluência desses vários desdobramentos historiográficos, narrados aqui de modo propositalmente resumido. Diante de tantos desafios interpretativos, é oportuno retomar antigas perguntas e verificar se e como elas podem ter novas respostas. Duas delas me parecem mais importantes e podem ser formuladas de modo bem sintético, pois estão intimamente articuladas e constituem o pano de fundo de quase todas as páginas deste livro. Trata-se, em primeiro lugar, de buscar os elementos capazes de caracterizar aquilo que distinguia o mundo colonial do metropolitano. A questão, evidentemente, não é nova. Ela constituiu o centro dos debates empreendidos nos anos 1970 e esteve na base de muitas análises sobre o período colonial. O caráter estrutural da escravidão no mundo colonial, ainda que analisado de formas e a partir de formulações conceituais diversas, tem sido apontado como o diferencial mais importante a separar o mundo colonial do metropolitano. Certamente havia cativos em Portugal, mas nunca na proporção e com a importância que essa forma de exploração do trabalho assumiu no Brasil. Entretanto, se o cerne da resposta continua a ser o modo como a escravidão se tornou o centro da vida econômica e social da colônia, é preciso se perguntar sobre os significados políticos dessa diferença para os que viveram naquele período. Em segundo lugar, é preciso compreender se e como os escravos foram integrados à rede hierárquica que ordenava as relações sociais na América portuguesa. As teses sobre a rigidez das relações sociais na colônia e as que afirmavam a incompatibilidade entre as estruturas do Antigo Regime e a escravidão já não se sustentam diante dos conhecimentos acumulados nos últimos anos sobre a sociedade e a política coloniais. Não se pode continuar a afirmar que a estrutura da sociedade colonial era "extremamente simples", nem que o universo das relações sociais no período colonial se reduzia à polaridade entre senhores e escravos. Como então seguir adiante? Sem dúvida, essas questões podem se desdobrar em muitas outras e há muitos caminhos para procurar respostas. O escolhido aqui foi buscar entender os significados políticos da escravidão e da presença massiva dos africanos e seus descendentes na América portuguesa na segunda metade do século XVIII. Esse é o tema central deste livro e os limites do desafio a ser enfrentado nas próximas páginas. Realizada nos últimos dez anos, a pesquisa orientou-se de forma estratégica, combinando ventos de ocasião com uma perspectiva analítica deliberada. Em vez de seguir os métodos clássicos da história social, partindo da demografia e das configurações sociais, ou da história cultural, lidando com idéias e valores, procurei um procedimento que me pareceu mais adequado para os estudos das percepções políticas. Tendo por inspiração procedimentos da micro-história, a análise buscou seguir elementos oferecidos por documentos bastante circunscritos, selecionados por conterem aspectos que pareciam inicialmente estranhos. Seguindo a lição oferecida por Robert Darnton, a pesquisa procurou desvendar enigmas, entender significados e abrir possibilidades de interpretação. Não se visou a cultura em termos gerais, os modos de pensar e agir mais coletivos, mas as formas de percepção do social e de suas tensões, em circunstâncias e contextos bastante precisos. Puxando os fios e trilhando caminhos pouco comuns, tais fragmentos foram aos poucos permitindo vislumbrar nexos e processos importantes. Como pequenas frestas por onde se pode divisar um ambiente mais amplo, eles permitiram iluminar significados da experiência humana em uma sociedade fundamentalmente diversa da que vivemos hoje em dia. A metáfora, aqui, é proposital. As fontes não apenas revelam fragmentos de práticas e fenômenos diversos, mas possuem elementos materiais que devem necessariamente integrar a análise. A retórica que molda os textos setecentistas e os códigos visuais operados nas representações iconográficas não apenas "interferem" no modo como o historiador pode ter acesso ao passado. Eles podem ser objetos mesmos da análise histórica. Tanto quanto fontes de informações, os documentos revelam modos de pensar e interpretar a realidade que eram próprios dos sujeitos históricos que os produziram. Se a história é interpretação de interpretações, é preciso lidar com as conexões entre cultura e poder tanto na história que se quer compreender quanto na constituição dos vestígios que nos permitem chegar até ela. O que é dito, escrito, desenhado está diretamente relacionado ao modo como, em determinada sociedade, as coisas podem ser ditas, escritas, faladas: os nexos que conformam um período histórico estão presentes também no movimento que dá origem às próprias fontes da história. Assim, por exemplo, uma pequena série de ordens legais sobre o vestuário das escravas pode permitir o acesso ao universo hierarquizado das relações sociais da colônia, às formas de articulação entre o público e o doméstico, aos modos do exercício do poder na vida cotidiana das cidades coloniais. Textos encomiásticos que narram festas públicas dinásticas ou pranchas cartográficas e aquarelas produzidas por um engenheiro militar permitem refletir sobre as formas de teatralização do poder no espaço urbano e sobre a diversidade de olhares e identidades no mundo colonial. Por isso, à semelhança de muitos trabalhos históricos, a iconografia pode servir de ilustração - mas também integra a análise como fonte de informação e chega, em alguns momentos, a constituir a base da argumentação desenvolvida, como no capítulo 5. Certamente, a maior parte dos documentos informa o ponto de vista "senhorial", metropolitano, das autoridades coloniais ou dos senhores propriamente ditos, facilitando a análise do modo como a escravidão e os negros foram incorporados à teia hierárquica que ordenava e codificava as relações sociais na América portuguesa. O ponto de vista dos escravos e dos libertos aparece pouco nas fontes aqui utilizadas e demanda outros procedimentos analíticos para ser conhecido. São as percepções expressas por letrados, viajantes, autoridades da administração colonial e metropolitana que servem de ponto de partida, mesmo quando se quer ir além, em busca das ações e dos valores dos que são falados e representados em seus textos e imagens. Trabalhando no interior desses limites e lidando com os filtros das fontes, é possível apreender as tensões presentes em situações nas quais as desigualdades sociais e as diferenças culturais estavam profundamente imbricadas. A pesquisa deliberadamente se restringiu a fontes setecentistas, privilegiando a segunda metade do século XVIII. Ainda que algumas vezes a análise recorra a fontes produzidas em momentos anteriores, não avança pela virada do século, de modo a evitar que as transformações do início do XIX possam nela interferir. Isso está presente no elenco dos documentos textuais examinados e foi particularmente importante na seleção do material iconográfico. Assim, o nascimento da nação não penetra na abordagem da história colonial, nem as imagens de Debret servem de parâmetro para investigar a sociedade setecentista. Do mesmo modo, essas páginas focalizam as cidades do Rio de Janeiro e Salvador, as maiores da América portuguesa na segunda metade do século XVIII, respectivamente com cerca de 45 mil e 50 mil habitantes. As Minas Gerais aparecem aqui de forma subsidiária, não apenas porque já possuem farta bibliografia, mas porque os elementos que muitos julgaram ser mais agudos nas vilas mineiras setecentistas, ou delas quase exclusivos, também conformam aspectos significativos da vida de outras cidades coloniais. O resultado aparece agrupado em cinco capítulos. Cada um deles está articulado por um ou dois documentos centrais, em torno dos quais a interpretação vai se construindo. Redigidos de maneira a apresentar um aspecto da análise mais global, podem ser lidos de forma quase independente. O primeiro oferece um panorama dos nexos que conformavam os espaços urbanos, tema tão caro ao conde de Resende, mas que aqui é retomado de forma mais ampla. A análise trata especialmente do modo como se articulavam as diversas instâncias de poder no mundo colonial e como as estruturas hierárquicas estendiam-se desde a metrópole até as vilas e cidades coloniais. O Rio de Janeiro é o cenário principal para essa discussão dos usos e sentidos políticos do espaço urbano. O segundo capítulo avança no sentido de integrar a escravidão a esse universo de reflexões. Tomando como ponto de partida algumas determinações legais sobre as roupas das escravas, a análise procura mostrar como a escravidão se integrava ao sistema hierarquizado das relações sociais e quais os significados que a presença de cativos e de negros e mulatos livres ou libertos adquiria naquele contexto. O exame de situações específicas permite discutir as aproximações e os dissensos entre os poderes locais e metropolitanos, e o lugar conferido aos negros e mulatos, livres ou escravos, na maneira de apreender alguns temas de governo e encaminhar soluções para o que aparecia como problemático. Os capítulos seguintes aprofundam os elementos surgidos nos anteriores. O terceiro se dedica a interrogar mais detalhadamente as formas de percepção e os sentidos diversos atribuídos por senhores, autoridades coloniais e viajantes à multidão de negros e mulatos que se concentrava na América portuguesa. Os significados dos termos empregados para designar as pessoas e as marcas neles impressas pela dominação escravista e colonial constituem elementos importantes da discussão ali empreendida. O quarto capítulo explora outras dimensões desse mesmo tema, retomando as festas públicas dinásticas e outras ocasiões solenes em que negros e mulatos ganhavam as ruas das cidades. Escandindo interpretações diversas sobre os espetáculos negros nos espaços urbanos, privilegiam-se aqui as tensões internas à sociedade colonial. Por fim, o último capítulo abre a perspectiva da análise, procurando apreender o olhar metropolitano, mais genérico, sobre as Conquistas e seus habitantes. A escravidão e a mestiçagem aparecem sob outra chave, para acentuar distâncias geográficas, sociais e culturais. Os argumentos do conde de Resende são retomados no texto que arremata o livro. Ao mesmo tempo em que os elementos discutidos ao longo dos capítulos ajudam a desvendar as implicações de suas propostas, os temores do conde servem de fio condutor para algumas considerações finais, que apontam para os nexos mais amplos da articulação entre escravidão, cultura e poder no final do século XVIII. De certa forma, os fragmentos são ali misturados e rearranjados, para possibilitar um balanço das tensões que a dominação escravista fez surgir nesta parte do Império português.