I - BRINCADEIRA DE CRIANÇA Apenas o gari com a vassoura farfalhante recolhendo as folhas caídas da sarjeta. Os vizinhos poderiam ter visto, mas, no meio de uma manhã de dia útil, todos saíram para o trabalho ou por outras razões do dia-a-dia. Ela estava ali, na entrada do portão da casa dos pais, quando ele chegou, pronta para lhe sorrir, e logo dar o sinal para poderem zombar da situação estranhamente absurda (apenas temporária) de não poderem se abraçar, e aceitá-la. A lembrança de um abraço de amizade é menos emocionante do que a lembrança de um abraço de amor. Tudo é corriqueiro. O gari passa empurrando o fim do verão à sua frente. Radiante. Literalmente radiante. Mas não emitindo luz como os santos mostrados com uma auréola. Ele irradia o perigo, invisível para os outros, de uma substância destrutiva que serviu para contra-atacar o que o estava destruindo. Agarrou-o pela garganta. Câncer da glândula tireóide. No hospital, foi mantido em isolamento. Até o do silêncio; ficou sem voz por um período, mudo. Cordas vocais afetadas. Ele permanece, e ainda continuará, sem controle sobre si, expondo pessoas e objetos ao que ele emana, tudo e todos que ele tocar. Tudo tem que ser corriqueiro. Chamando da janela de um carro para o outro: ela se lembrou do seu laptop? Algumas fitas cassete? Seus Adidas? O livro sobre o comportamento de elefantes deslocados que tinha lido até a metade quando voltou para o hospital? Berenice - Benni - por que os pais castigam os filhos com nomes esquisitos? - fez sua mala. Ela chorava enquanto tomava decisões por ele: põe isto, tira aquilo. Mas ela não apenas lembrou; a familiaridade sabia do que ele precisaria, do que sentiria falta. Num dos livros ele descobrirá que ela enfiou uma foto de si própria de que ele gostava particularmente, tirada por ele antes que o romance se transformasse em casamento. Tem um instantâneo do filho quando bebê. A mãe foi apanhá-lo no hospital. Ele abriu a porta do banco de trás do carro, para se sentar, desde o princípio precisa começar a seguir certa conduta, torná-la um hábito por enquanto, mas a mãe é como ele (se isto não for uma inversão das características herdadas), havia decidido seu próprio código de conduta em resposta à ameaça que ele representa. Ela se inclina para abrir a porta do banco do carona ao seu lado e dá-lhe uma palmadinha, de modo autoritário. Ele tem mulher e filho. Que vida, que risco vale menos do que esses? Os pais são responsáveis por trazer ao mundo a sua prole, por opção ou imprudência, segundo um pacto entre eles, não escrito em lugar nenhum, de que a vida do filho, e por descendência a do filho do filho, deve ser mais valorizada que a dos progenitores originais. Assim Paul - é ele, o filho - voltou para casa - ah, mais de maneira tão diferente por enquanto -, para a velha casa, a dos pais. Lyndsay e Adrian não são velhos. A escada do envelhecimento estendeu-se depois que a ciência médica, exercícios criteriosos e uma dieta saudável permitiram às pessoas viver por mais tempo e mais jovens, antes de ascenderem e desaparecerem no mistério do alto. ("Passar desta para melhor" é o eufemismo, mas para onde?) Impensável que o filho os preceda, vá na frente deles, lá para cima. O pai, vigoroso aos sessenta e cinco anos, está às vésperas de se aposentar do cargo de diretor executivo de uma fábrica de veículos e equipamentos agrícolas. A mãe, com cinqüenta e nove anos que parecem quarenta e nove, uma beleza natural antiga sem nenhum desejo de lifting facial, está pensando se deve ou não deixar sua parte na sociedade de um escritório de advocacia e se juntar ao seu outro parceiro nessa nova fase da existência. O cão salta e põe as patas nele, fareja o cheiro forte e frio do hospital em sua bolsa abarrotada e a mala entregue com o que sua mulher achou que ele poderia precisar, naquela fase da existência. - Qual quarto? - Não é seu quarto antigo, é o da irmã, transformado num escritório onde seu pai se dedicará a quaisquer interesses que venha a cultivar, pronto para a aposentadoria. Essa irmã e irmão nascidos com apenas doze meses de diferença devido à paixão juvenil excessiva ou à confiança equivocada na eficácia contraceptiva da amamentação - Lyndsay ri até hoje de sua ignorância e do oportunismo da reprodução rápida! Há duas outras irmãs, biologicamente mais espaçadas. Ele não tem irmão. Ele é único. O pestilento, o leproso. O novo leproso, é assim que ele se vê, com sardônica irreverência. Esse recurso vem provavelmente do estilo desembaraçado da confraria/panelinha da publicidade, que ele assimilou em companhia dos colegas de Benni. Paul Bannerman é um ecologista qualificado academicamente por universidades e instituições dos Estados Unidos, Inglaterra, e pela experiência em florestas, desertos e savanas da África Ocidental e América do Sul. Ocupa um cargo numa fundação para conservação e controle ambiental, nesse país da África onde nasceu; um funcionário atualmente em licença prolongada por razões de saúde. Benni/Berenice é redatora de publicidade, que ascendeu à gerência de uma das agências publicitárias internacionais cujas campanhas têm atuação no mundo inteiro e cujo nome é globalmente tão familiar como o de um astro pop, mantendo a sua fórmula sem necessidade de tradução, fazendo parte do vocabulário de todas as línguas. Ela ganha mais do que ele, claro, mas isso não gera desequilíbrio na relação, pois o papel do homem de provedor está ultrapassado, como preço da liberdade feminista. É provavelmente o contraste de ambientes e as práticas diferentes de suas vidas profissionais que garantem para eles uma sensação de desconhecido, mesmo sexualmente, que costuma se perder na rotina após alguns anos de casamento. Familiaridade; se ela o conhecia bem, a ponto de prever suas necessidades básicas aprendidas em cinco anos de intimidade, isso não significava que a compreensão dele do mundo e de seu funcionamento, as intuições dele, não fossem diferentes das dela. Sempre um assunto para conversarem, uma frustração, uma conquista, sempre o elemento do estranho, cada um percebendo algo, com o terceiro olho, na órbita do outro. Quando chegou o veredicto do oncologista, através do clínico-geral que era da geração deles e de seu grupo de amigos, foi ela quem atendeu à ligação de manhã cedo. Todo dia ele levantava da cama deles primeiro, acostumado a acordar cedo no trabalho de campo. Saiu do banheiro e encontrou-a agarrada aos travesseiros, lágrimas rolando pelo rosto, como se algo dentro dela tivesse subitamente desmoronado. Ele parou junto à porta aberta. Antes que ele pudesse falar, ela contou. Não adianta esperar por um momento mais apropriado para esta... o quê? Notícia, informação. - É câncer. Da tireóide. Maligno. Não deu para Jonathan disfarçar. - As lágrimas desceram-lhe até os lábios, tremularam no queixo. Ficou parado ali. Sua boca se mexeu, como se fosse falar. Parado, sozinho. Notícias assim pertencem apenas àquele cujo corpo emitiu a mensagem. Depois fechou a boca numa linha apertada, numa distorção de sorriso na tentativa de reconhecer a presença dela. - Bem. Podia ter sido atropelado por um ônibus. Uma hora a gente tem que morrer. Tendo acabado de se barbear, seu rosto bronzeado brilhava, após a viagem de uma semana aos pântanos costeiros dos quais retornara alguns dias antes, ignorando a espera pela decisão dos médicos quanto ao resultado dos exames. Mas aos trinta e cinco anos! De onde viera aquilo? Nenhum câncer no histórico de saúde da família! Nada! Infância sadia, sem doenças - como? Por quê? Ela não conseguia parar de balbuciar acusações. Ele sentou na cama, ao lado da forma das pernas dela sob os cobertores. Moveu a cabeça em sinal de negação, não de desespero, por um momento, depois se levantou automaticamente, decidido, e vestiu a calça sobre a cueca minúscula que continha - incólume, aquela extremidade, ao menos - sua masculinidade. Enquanto se vestia e ela continuava deitada, fez suas perguntas: - Então, o que Jonathan disse que precisa ser feito? Ele não continuou, mas todo mundo sabe que os médicos, mesmo seu amigo íntimo, nunca proferem uma sentença de morte clara. - Eles vão operar. Deve ser logo. Ambos se confrontaram com o que seria a evidência a desafiar, adiar seja lá o que aquela mutilação viesse a ser: olhe este homem, a arquitrave nítida da caixa torácica contendo o sobe-e-desce da respiração vital por baixo do enchimento muscular dos peitorais, o contorno harmonioso e rígido dos bíceps, os antebraços fortes e sem gorduras - a construção evolutiva completa da natureza para todas as funções. Existe uma bonita expressão para isso que está obsoleta: a imagem da saúde. Ele não pôde evitar que ela contemplasse sua presença, como se mantivesse em vista uma estátua, enquanto ele colocava o relógio de pulso e tratava de se vestir. A vítima é conduzida ao cadafalso - existem médicos para isso na falta de carcereiros - sem aquela que o ama. Esta é impedida de entrar. Precisa fazer algo por ela. Voltou para onde ela estava deitada, inclinou-se para envolvê-la com os braços contra a maciez dos travesseiros e beijou cada uma das faces úmidas. Mas ela desvencilhou as mãos com energia e, agarrando a cabeça do marido, trouxe a boca dele com força contra a dela, abriu-lhe os lábios com a língua dura, e o beijo estava quase se tornando um prelúdio ardente quando ouviram o filho pedindo atenção no quarto ao lado, chamando, chamando. Levantou-se de cima dela, os dois desajeitadamente se separaram, e ela correu descalça para responder aos apelos insistentes da vida que haviam gerado certa noite num abraço ardente naquela cama.