A CÓLERA DOS DEUSES - Théo! Você viu que horas são? THÉO! Théo não estava dormindo de verdade. A cabeça enfiada debaixo do lençol, entregava-se à deliciosa suavidade do despertar. No momento preciso em que sua mãe entrava no quarto, seus pés já começavam a deixá-lo e ele ia poder se erguer nos ares, sem seu corpo... Que sonho incrível! E teria de parar! Quando vagava tão bem entre o sono e o dia, por quê? - Anda, chega! - exclamou Melina Fournay. - Desta vez, você vai se levantar, senão... - Não! - gemeu uma voz sufocada. - Sacudir o travesseiro, não! - É sempre assim - protestou a mãe. - De tanto demorar para dormir, você acaba acordando mal. A culpa é sua também! Théo levantou-se com dificuldade. O mais duro era passar para a posição vertical e enfrentar a leve vertigem da manhã. Um pé surgiu da cama, depois uma perna, depois Théo inteirinho, remexendo os cabelos cacheados. Ficou de pé... E cambaleou. Sua mãe conseguiu ampará-lo e sentou-se com ele na beira da cama. Suspirando, Melina examinou os livros espalhados em cima do cobertor. - Dicionário do Egito antigo, mitologia grega, Livro dos mortos tibetano... Que horrores são estes? Não é para a sua idade, Théo! Até que horas ficou acordado esta noite? - perguntou ela repreensiva. - Hum... Não me lembro - resmungou Théo meio adormecido. - Você fica lendo até tarde - murmurou ela franzindo as espessas sobrancelhas negras. - Vai acabar ficando doente, sabia? - Que nada - respondeu Théo bocejando. - Só estou com um pouco de fome. - Está tudo na mesa e preparei suas vitaminas - disse ela beijando-o na testa. - Sua amiga Fatou vai chegar daqui a pouco. Rápido! Agasalhe-se bem, está fazendo um frio danado. E não se esqueça de passar pela farmácia para pegar suas ampolas. A receita do médico está no aparador da entrada... Théo! Mas Théo já corria para o banheiro, apoiando-se nas paredes. Pensativa, Melina voltou para a cozinha, onde seu marido, Jérôme, lia o vespertino do dia anterior. - Esse menino não está bem - disse ela a meia-voz. - Não está nada bem. - Quem? Théo? - replicou o marido sem erguer a cabeça. - Primeiro, aos catorze anos ele não é mais um menino. Segundo, o que você está vendo de errado nele? - Ora, você nunca enxerga nada. Ele está com uma cara péssima, tem dificuldade para se levantar... - Descartes também detestava se levantar de manhã. O que não o impediu de ser filósofo. - É que parece que tem vertigens e... - Você sabe perfeitamente que ele fica lendo até tarde - interrompeu Jérôme, tranqüilo. - Viu as leituras dele? - exclamou Melina. - Dicionário de mitologia, Livro dos mortos tibetano... O Livro dos mortos! - Escute aqui, querida, Théo não teve nenhuma educação religiosa. Estávamos de acordo quanto a esse princípio, você e eu... Não tem nada de mais ele próprio se informar! Deixe que se informe. Se quiser escolher uma religião, que tenha liberdade para isso... E, depois, ele cresceu um bocado. O exame médico anual não mostrou nada, que eu saiba, não é? - Você está brincando, Jérôme! O exame médico da escola? Auscultação, reflexos, raio X a jato, quando fazem, e ponto final... Não, está decidido, vou levá-lo para uma consulta com Delattre. - Pare com isso, Melina! Você o entope de fortificantes e o mima como se fosse um bebê! Ele fica lendo até tarde, é verdade. Mas eu acho até que isso é bom. Vamos, sente-se. - Ele está com alguma coisa - disse ela entre dentes. - Tenho certeza. - Tudo bem - suspirou o marido fechando o jornal. - Marque uma consulta com Delattre. Ele vai pedir o exame de sangue que você quer. E eu, se me permite, vou já para o meu laboratório. Será que mereço um beijo? Melina estendeu o rosto sem responder. - E não quero mais ouvir falar das vertigens do seu queridinho! - ameaçou saindo da cozinha. Só, diante do seu café, Melina ruminava esperando Théo. A FAMÍLIA DE THÉO Até este último inverno, o humor da família Fournay estava excelente. Nada de desemprego, nada de brigas. O pai de Théo era diretor de pesquisas do Instituto Pasteur, tocava piano maravilhosamente e se revelava o melhor dos maridos. Melina tinha muita sorte: professora de ciências naturais do liceu George Sand, onde Théo estudava, tinha colegas animados e alunos comportados. As irmãs de Théo adoravam o irmão: a mais velha, Irène, começava o curso de economia, e Athéna, a mais moça, ia entrar na quinta série. Não fossem as meias misturadas no cesto de roupa suja e algumas batalhas campais para ver quem tirava a mesa, Théo não tinha nenhum problema com as irmãs. Mas era frágil, aí é que está. Antes de se casar, Melina Chakros passara por momentos difíceis. Ainda era criança quando, em 1967, ameaçados pela ditadura militar da Grécia, Georges Chakros, seu pai, um jornalista, e sua mãe, uma violinista, tiveram de se exilar em Paris, cidade sem oliveiras e sem sol. Depois disso Melina cresceu, passou nos exames, conheceu Jérôme, se casou com ele, os filhos nasceram, a ditadura dos coronéis cedeu lugar à democracia e seus pais voltaram para Atenas. Em memória do país reencontrado, os filhos dos Fournay tinham nomes gregos. Por isso a mais velha se chamava Irène, isto é, paz, e a menor, Athéna, que quer dizer sabedoria. Quanto a Théo, seu nome completo era Théodore, que em grego significa "presente de Deus". Evidentemente, para Théodore e Athéna não era fácil suportar esses nomes na escola, mas logo seus colegas se acostumaram a chamá-los de Théo e Attie. Tudo teria sido perfeito, não fosse a saúde de Théo. O rapaz teve um nascimento tumultuado. Melina esperava gêmeos. Eles nasceram pouco mais de um mês antes do termo, mas somente Théo sobreviveu. Por isso tinha um sono difícil e uma verdadeira fragilidade. Para não o perturbar mais, Melina decidira que não lhe diriam nada do gêmeo natimorto, cuja existência ele ignorava. Théo foi um bonito menino um tanto magricela, com cachos negros e uns olhos verdes que enchiam de inveja suas irmãs. "A beleza do diabo...", dizia a falecida mãe de Jérôme, Marie, sua avó francesa que acreditava nas fadas e nos duendes das florestas. "A beleza dos deuses!", replicava vovó Théano, sua avó grega, que fartava o neto com mitologia antiga e religião ortodoxa. Théo era tão bonito, tão vulnerável que, quando as duas avós se extasiavam com os encantos do menino, Melina persignava-se discretamente e batia na madeira sem ninguém ver, para esconjurar o azar. Porque, embora não acreditasse em Deus, a mãe de Théo era terrivelmente supersticiosa. Na família, todos sabiam, Théo não era como os outros. Sempre o primeiro da classe, lia sem parar; começara pequenino, o nariz constantemente enfiado nos livros. E quando o arrancavam de suas leituras, plantava-se diante do Macintosh, no qual explorava seus CD-ROMS com paixão. Nestes últimos tempos, Théo não largava um jogo mitológico em inglês que sua mãe lhe dera de presente, Wrath of the gods [A cólera dos deuses], em que um jovem herói via-se confrontado a tudo o que a Grécia tem em matéria de sereias, gigantes e monstros, enquanto uma pítia de cabelos ruivos dava conselhos perversos para desorientar o jogador. Apesar de suas reticências aos videogames, Melina não resistira à Cólera dos deuses, por causa da Grécia. Horas e horas seguidas, Théo passeava no monitor pelo país natal de sua mãe, sob as oliveiras gregas, horas a fio jogava procurando a identidade do herói que se parecia com ele como um irmão. Bonito garoto, espertíssimo, meio magrelo, o herói da Cólera dos deuses tinha de enfrentar várias vezes o inferno a fim de encontrar seu pai verdadeiro, Zeus, o rei dos deuses gregos. Quando Jérôme Fournay procurava competir com o filho, acabava no inferno e nunca saía de lá... Porque era um fato comprovado: valendo-se de pedras preciosas, martelos, filtros e anéis misteriosos, só Théo conseguia encontrar o rei dos deuses com seu Macintosh. Todo mundo sabia que Théo era um menino muito inteligente. O fato de ele ser um geniozinho não preocupava ninguém. Mas ele era frágil, frágil demais. Melina enumerava: aos três anos, teve uma primoinfecção; aos sete, uma escarlatina violenta debilitou-o por um bom tempo (hoje estava com catorze e essa já era uma velha história); aos dez, tinha quebrado a tíbia jogando futebol. Depois cresceu muito, o esporte cansava-o, seus professores falavam de estafa, em resumo, Théo tinha uma estranha fraqueza. Será que era um problema hereditário? Aos catorze anos sua mãe tivera uma forte anemia. Ou teria sido uma simples hipoglicemia? A não ser que tivesse sido uma mononucleose... FATOU - Bom dia! - gritou uma voz no corredor. - Sou eu, Fatou! Como sempre, Fatou era de uma pontualidade exemplar. E, como sempre, chegava esbaforida, sacudindo suas trancinhas minúsculas rematadas por contas douradas. Fatou, a senegalesa, era vizinha deles e a alegria das manhãs. - Já? Nem ouvi a campainha! - Lógico - respondeu a menina pondo a mochila numa cadeira. - Cruzei com seu marido, ele me abriu a porta. Théo está pronto? - Claro que não - suspirou Melina. - Sabe como ele é. Sente-se e tome um café. - Não dá tempo. Vamos acabar chegando atrasados e temos uma chamada oral de história esta manhã. Vou buscá-lo. - Bata antes de entrar! Ele está no banheiro! - gritou Melina em vão. Como se Fatou se incomodasse em ver Théo pelado... Cresceram juntos desde o pré-primário. Na rue de l'Abbé-Grégoire, nunca se via Fatou sem Théo, nem Théo sem Fatou. Ela ria o tempo todo, salvo durante as passeatas - numa delas, um rapaz tinha sido assassinado num subúrbio. Quando tinha passeata, Fatou corria para a casa de Théo e pegava-o pela mão: "Ande", dizia ela, "vamos para a passeata". Théo não podia viver sem Fatou, que o arrancava de seus livros contando-lhe como era o Senegal. O nariz comprido das pirogas surfando na crista das ondas, os baobás de braços atormentados, os escuros celeiros de palha sobre pilotis, as praias em que os pescadores descarregavam as barracudas, o vôo pesado dos pelicanos, os grandes olhos vermelhos dos hipopótamos que apareciam a cada dez anos nas margens do rio Senegal... Fatou falava e Théo sonhava. O sr. Diop, pai de Fatou, era viúvo. Filósofo e funcionário da UNESCO, evocava as férias que um dia, com toda a certeza, passariam juntos na África... Mas todos os anos as duas famílias se encontravam em La Baule, onde, na praia, Abdoulaye Diop comparava melancolicamente as ondas cinzentas dos mares da França com as vagas turquesa de seu país. - MELINA! - berrou de repente Fatou no banheiro. - Depressa! Melina apressou-se. Estendido nos ladrilhos do chão, Théo virava os olhos. Fatou dava-lhe tapinhas no rosto sem resultado. Melina pegou um copo, encheu-o na torneira e jogou a água no rosto do filho, que pestanejou e espirrou. - Não se mexa, meu amor - sussurrou a mãe. - Espere... Vamos te levantar. Mas quando ficou de pé, o nariz de Théo começou a sangrar. - Cabeça para trás, Théo - mandou Melina com uma voz decidida. - Fatou, uma toalha, por favor. Molhe-a. Bem fria. Agora me dê... Vamos passá-la na testa. Não foi nada. Mas ela não acreditava no que dizia. Não era verdade que não era "nada". Melina não se enganara: Théo estava doente. E enquanto o sangramento parava, ela apalpava o pescoço do filho. Cheio de gânglios. A fisionomia de Melina ficou tensa. - Fatou, Théo não vai à escola esta manhã - decidiu. - Vou fazer um bilhete para o diretor. - Sim, senhora - respondeu Fatou petrificada. - Não me chame de senhora! - trovejou Melina. - Théo, vá se deitar. Eu levo seu café na cama. - Oba! - exclamou Théo. - Adoro tomar café na cama! - Preguiçoso! - disse-lhe Fatou. - Daqui a pouco torno a passar aqui. Não se preocupe, Théo. - Não estou nem um pouco preocupado - replicou Théo. - Por que estaria? É para estar? UMA DOENÇA MISTERIOSA O dr. Delattre tirou a pressão de Théo, verificou seus reflexos, apalpou os gânglios do pescoço, tateou as axilas e as dobras da virilha, detendo-se um instante num hematoma que Théo tinha na coxa. - Quando se machucou? - perguntou com o semblante carregado. Mas Théo, que vivia batendo em tudo, já não sabia direito nem onde, nem quando. Em seguida o médico fez um exame minucioso na pele do rapaz e encontrou na barriga outro hematoma, o que o deixou mais preocupado. Auscultou, fez Théo mexer os músculos, os membros, verificou a movimentação do pescoço, depois se levantou sem uma palavra, sem nem sequer se despedir. Théo ficou atrás da porta, para ouvir o que o médico ia dizer à sua mãe. Ao sair do quarto do garoto o dr. Delattre deu um enorme suspiro. - Sem os exames de sangue não dá para saber - falou após um longo silêncio. - Ligue para este número e mande o laboratório vir colher. Já. - O senhor quer dizer que não posso levá-lo ao laboratório? - perguntou Melina angustiada. - Prefiro que fique de cama. Temos que ser prudentes com esses sangramentos de nariz. - Doutor, tem alguma coisa errada, não é? - Com certeza - disse o médico. - Assim que eu receber os resultados, ligo para a senhora. - Mas o que pode ser? - gemeu Melina. - Minha senhora, pare de se torturar e vamos esperar até amanhã. Aliás, a senhora não dá aula hoje? - Claro, daqui a duas horas. Mas enquanto isso... - Enquanto isso, alimente-o bem, dê-lhe o que ele quiser e deixe-o em paz! Não deve ser nada grave! Satisfeito da vida, Théo voltou para a cama. Se não tinha nada grave, ia passar uma semana sossegado, com seus livros, seu computador e a tevê. A mãe ia levar todas as manhãs uma bandeja com chá, torradas e um ovo quente, e ele não seria mais obrigado a abandonar seus sonhos noturnos. Foi o que aconteceu naquela manhã: Melina levou a bandeja, o ovo, as torradas e o chá, depois foi para a escola e ele dormiu de novo como um bebê. Evidentemente, antes de Melina sair, a enfermeira do laboratório tinha espetado o braço de Théo para colher o sangue. Mas não era um preço tão alto assim para aquele dia de delícias, e afinal as injeções eram velhas conhecidas de Théo. Na manhã seguinte, Théo ouviu sua mãe telefonar ao dr. Delattre, depois fechar a porta. O que será que o médico podia estar lhe dizendo? Melina reapareceu, com um ar triste. - Vista-se, Théo. Vamos ao hospital para uns exames complementares. Temos uma consulta de urgência marcada. Hospital? Urgência? Théo sentiu-se fraquejar, mas não quis mostrar nada à mãe. Essa história de hospital estava cheirando mal. Bem, na pior das hipóteses, ele estava um ano adiantado na escola. - Que exames são esses? - perguntou com uma vozinha sumida. - Nada, meu amor. Vão colher um pouco de medula óssea. Vai doer um pouquinho. - Medula não é tutano? Desde quando sou osso de sopa? - brincou corajosamente Théo. PÂNICO A BORDO Quando chegaram os resultados do hospital, tudo mudou. A família ficou alvoroçada. A mãe escondia as lágrimas, o pai voltava mais cedo, Attie vinha o tempo todo até o quarto do irmão e Irène chorava. Quanto a Fatou, não ria mais. Théo até que tentou provocá-la por causa de suas tranças, que andavam meio desfeitas, mas Fatou se contentava com um sorrisinho triste de partir o coração. "O que será que eu tenho?", perguntava-se Théo. Naturalmente, ninguém lhe dizia nada. O estranho é que não voltou ao hospital. Passou-se uma semana. Théo não se sentia nem muito pior, nem muito melhor. Flutuava num oceano de fraqueza que não era nada desagradável. Quando Fatou lhe perguntava: "Então, Théo, como está se sentindo hoje?", ele respondia invariavelmente: "Um pouco cansado, mas tudo bem". Nem pensar em ir à escola. Dois dias depois do resultado da punção medular, o pai resolveu o problema num abrir e fechar de olhos. Fatou traria as lições, Théo estudaria em casa, faria as provas e as lições, os professores concordaram em corrigi-los, o diretor também. Não ia perder o ano, nenhum problema, dizia o pai. O pai tentava garantir o bom funcionamento do arranjo. Comprou uma mesa adequada para usar na cama, uma linda mesinha de pés curtos que armavam sobre os lençóis. Deu-lhe uma caneta que deslizava maravilhosamente no papel... Sim, o pai cuidava de tudo. Mas Théo preferia seus queridos livros aos manuais de matemática, e Fatou, que sabia disso, não parecia se indignar nem um pouco com essa preferência. Certa manhã ela lhe trouxe um colar no qual pendurava um escorpião de contas negras. "Um amuleto da minha terra", explicara, colocando o colar no pescoço de Théo. "Meu pai que deu. Use-o, só para me agradar... Vai te proteger, Théo." O animal protetor era engraçado com seus olhos de botões brancos, e o rapaz mexia nele feliz, pensando nas estranhas divindades que zelavam por ele na longínqua África, onde nascera Fatou. Naquele dia, Fatou sorrira. Mas, depois, nunca mais, e Théo estava inquieto. Pior era a mãe, com sua coragem e seus olhos vermelhos de tanto chorar. Claro, Théo engolia remédios todos os dias, mas agora que não tinham nem caixas nem bulas, ele não podia saber para que eram indicados. O médico passava com freqüência, para examinar a pele, vigiar o aparecimento de novos hematomas e apalpar os gânglios. Mamãe levava os comprimidos e o copo d'água e sentava na beira da cama sem pronunciar uma palavra. Certa manhã, ele perguntou se estava com aids e mamãe teve um sobressalto. Não, Théo não estava com aids. Depois ela fugiu bruscamente, com lágrimas nos olhos. Não, tudo o que ele sabia é que estava doente e que talvez, bem, talvez fosse até morrer. Mas isso ele não diria a ninguém, e aliás não tinha cem por cento de certeza.