1 A bandeira de um país é um helicóptero: é necessário gasolina para manter a bandeira no ar; a bandeira não é de pano mas de metal: abana menos ao vento, frente à natureza. Avançamos sobre a geografia, estamos ainda no sítio antes da geografia, na pré-geografia. Depois da História não há geografia. O país está inacabado como uma escultura: vê a geografia de um país: falta-lhe terreno, escultura inacabada: invade o país vizinho para finalizares a escultura. Guerreiro-escultor. O massacre visto de cima: escultura. Todos os restos de corpos podem ser o início de outros assuntos. Com força arrancou do solo um cão. Não era uma pequena árvore, era um cão. Os animais não resistem como o mundo botânico, nem como um chapéu. O chapéu voa com o vento, o cão não, a árvore nunca. Mas por vezes vem uma perturbação média e a natureza mostra um dos seus luxos: a maldade. Voa o chapéu, os cães, e ainda as árvores. Johana saiu do velório e entrou num bar onde se cantava estupidamente o hino porque havia um jogo importante. Baixou os olhos, pediu um copo de vinho, às mulheres não damos vinho disse o homem, rude, não se interrompem homens quando eles cantam o hino. Johana tinha uma pedra no bolso, uma pedra forte; percebia-se que era uma pedra forte, pequena, mas densa, há energia nas coisas e energia violenta que os olhos percebem, Johana tirou a pedra do bolso, colocou-a em cima do balcão. Não é um candeeiro disse ela: se funcionar, cega-te. Mas ela não disse isto, pensou isto. O homem percebeu. Disse: se quer vinho eu dou-lhe. Foi buscar um copo, encheu-o de vinho. Uma máquina faminta. Johana levanta-se e cospe para cima da máquina. Põe moedas para ouvires música, não cuspas. Moedas, cuspo não, percebes? Johana quer pagar, discute o preço: demasiado caro, diz. É um copo de vinho, diz o homem, eu ofereço-o. Não venha cá mais. O homem fumava um cigarro, era bonito, novo. Johana olhou-o e saiu. Mas não chegou a sair mesmo quando já a mais de 100 metros, no exterior, porque ainda o olhava. Os tanques entravam na cidade. O som militar entrava na cidade e a música calma escondia-se na cidade. Alguém furiosamente na rua tentava vender os jornais. Os tanques entravam na cidade, as notícias aceleravam no papel. Mas isso não existe: os olhos aceleravam sobre a notícia: havia gente ansiosa: as mulheres não morriam, mas ouviam morrer. Johana urina-se pelas calças. Urinei-me, diz ela. Desculpa. (O homem que está ao seu lado não é seu irmão.) Uma mulher extraordinária olha longamente para uma formiga. Uma formiga, um. Uma coisa estúpida e preta. Uma terra santa e preta que avança no mundo minúsculo, mais baixo que os nossos pés, há coisas mais baixas que os nossos pés, vês? Uma formiga que vai ser furada pela agulha neutra de uma mulher. De uma mulher magnífica. Dizem que se casou fazendo vibrar as frases do evangelho: todos os homens viam nas palavras meigas anúncios de sedução, sentenças que escondem o erotismo do mundo. Os homens que são mais fortes entram para o exército, os homens que são mais fortes violam as mulheres que ficaram atrás, mulheres dos inimigos que fugiram. Um soldado de rosto muito vermelho baixa as calças masculinas fortemente contra o chão. Fortemente as mãos tiram o vestido, como se os cortinados fossem arrancados e mostrassem uma anatomia em estado raro: seios de tamanho grande que tremem. O homem tem o rosto ainda mais vermelho e o pénis também vermelho. Matéria vermelha fornica longamente uma mulher fraca. É sexta-feira, e uma árvore ainda está no jardim, apesar de existirem tanques a passar nas ruas. Johana não é essa mulher debaixo do soldado, mas ouviu falar do que aconteceu a essa mulher debaixo do soldado. O ruído a ler o livro era o ruído dos aviões no céu. Não bombardeiam de dia, disse Klaus. Klaus pousou o livro e olhou para o ruído directamente. Este não é o som da leitura, disse. Nem o som natural do céu. Os aviões infiltravam-se na natureza alta e assustavam. Não há marinheiros, os marinheiros acabaram. Eles fecharam o mar. Têm um barco fixo na água. Não sai dali. Na filosofia o mínimo de recursos rápidos, o exame surge na velhice: a lentidão que ainda se dissipa. Aumentar a lentidão interminável. Os meninos com um caderno em branco ficam contentes. O importante na infância são as tentativas. O fragmento de uma notícia torna-se hipótese para um verso. Johana está quieta e o jornal nas suas mãos inquieto. Quem foi morto hoje? De manhã os tanques parecem objectos particulares, coisas grandes feitas para a higiene das ruas. Limpam as praças, limpam o lixo das praças. Limpam a linguagem das praças e dos cafés, e limpam a linguagem porque quando os tanques passam os homens falam baixo, já reparaste nisso? É Johana que o diz a Klaus. Nunca viste um tanque a trabalhar. Este país ainda é perfeito, esta rua ainda é perfeita: nunca uma bomba rebentou próximo de ti. É bom ter assim os inimigos tão perto, a passar com os tanques nas nossas ruas: assim temos a certeza de não ser bombardeados. Os tanques passam nas ruas. As ruas têm o nome dos nossos heróis. Eles não conhecem a língua: não sabem dizer o nome. Tropeçam na pronúncia, não conseguem acentuar as sílabas. E os tanques não têm tempo para aprender línguas. Klaus deixou o seu ofício, mas apenas hoje. Trabalha numa tipografia, mais: é editor, quer fazer livros que perturbem os tanques em definitivo. Isso não é um livro, é uma pequena bomba. Queres perturbar tanques com prosa? Um caracol quase não passa de tão pequeno ao lado de Klaus, junto aos seus pés. Repara como os caracóis quase não passam, disse Klaus. Johana riu-se. Klaus subitamente levantou o pé e pisou fortemente o caracol. Ouviu-se o som. Por que fizeste isso? Klaus não respondeu. Não ver nada é ficar oculto. Há demasiado asfalto neste país. Os homens corajosos já não têm bosque suficiente para se esconderem. Um terço dos homens da cidade estava escondido. Os tanques não gostavam dos homens que estavam escondidos. Mas havia ainda uma instabilidade nos vencedores. Passeavam pela rua e por vezes sorriam, outras vezes eram cruéis. Ontem haviam ameaçado partir os óculos a Klaus. Klaus ajoelhou-se: beijou as botas de um homem. Klaus lembrou-se da infância: ficava envergonhado quando não sabia resolver um problema de álgebra. Vermelho, a fixar números à esquerda de um sinal e outros números à direita do mesmo sinal. Os que conseguiam resolver as equações eram para ele, nessa idade, heróis. São bons os tempos em que admiramos os matemáticos. Klaus não se tinha envergonhado enquanto dava um beijo na bota direita do soldado. Mais tarde sim. Afastado da acção. Porque quando se tem medo não se tem vergonha, ou a vergonha ocupa menos espaço que o medo enorme. E por isso não existe. Só mais tarde se lembrou de como ficava envergonhado, de pé, em frente ao quadro com uma equação, o professor a olhá-lo, e ele sem saber como sair dali. Era a sensação de estar num labirinto, cada equação era um labirinto de onde não sabia sair. Não sei resolver isto, dizia o pequeno Klaus. E era então que via o professor começar a sorrir. O professor sorria pouco. Nunca sorria. Só sorria quando algum aluno falhava redondamente ou quando algum aluno baixava os braços e dizia: não sei resolver isto. O professor mandava, então, Klaus pôr-se de rabo para cima, debruçado sobre a secretária, e dizia para baixar as calças. Batia-lhe com uma trave grossa de madeira. Batia-lhe três vezes fortes. E Klaus odiava três vezes os números. A vergonha não existe na natureza. Os animais sabem a lei: a força, a força; a força. Quem é fraco cai e faz o que o forte quer. A inundação, as chuvas, o mamífero mais pesado e mais rápido e o mamífero pequeno. Os primatas, os répteis, os peixes maiores e os mais minúsculos, a cascata: já viste algum animal cair?, não há a mais breve compaixão entre os animais e a água, o mar engoliu milhares e milhares de cães desde o início do mundo. Não há a mais breve compaixão entre a água e as plantas, entre a terra que desaba e os pequenos animais acabados de nascer. A natureza avança com o que é forte e a cidade avança com o que é forte: qual a dúvida? Queres o quê? Não há animais injustos, não sejas imbecil. Não há inundações injustas ou desabamentos da maldade. A injustiça não faz parte dos elementos da natureza, um cão sim, e uma árvore e a água enorme, mas a injustiça não. Se a injustiça se fizesse organismo: coisa que pode morrer, então, sim, faria parte da Natureza. Os homens quiseram introduzir na Natureza coisas inventadas pelos fracos: foram os fracos que inventaram a injustiça para mais tarde poderem inventar a compaixão. Nem a água dócil percebe o que é isso de injustiça. Queres ser mais bondoso que uma substância química que se escreve tão simplesmente como isto: H2O? Não sejas imbecil: olha para os tanques: dispara com eles, ou contra eles. A vida em guerra só tem dois sentidos: com eles ou contra eles. Se não queres morrer beija as botas do mais forte, é isto. Entretanto os astros imundos mantêm a harmonia mansa. Johana olha pela janela. Klaus, o amante, ainda não chegou. Enquanto o amante não chega a mulher não sai da janela. As janelas existem porque os amantes existem, e porque os amantes ainda não estão em casa. As janelas deixam de existir quando as pessoas que amas voltam. Vê o frio, a tempestade lá fora. Klaus ainda não veio. Chegará Klaus com os dois braços com que saiu? O mundo por vezes amputa um braço dos homens que estão do lado de fora da janela. Vê o mundo, o mundo tem uma lâmina.