Prefácio Em 1983, perdi meu emprego - ou saí dele. Uma coisa, outra, ou as duas. De qualquer forma, eu já estava trabalhando meio período fazia algum tempo, ia à editora uma vez por semana para a sessão de correspondência-telefonemas-reuniões que eram parte do trabalho; editava os manuscritos em casa. Sair da editora foi uma boa idéia por duas razões. Primeiro, eu havia escrito quatro romances e parecia claro para todo mundo que escrever era a minha atividade principal. A questão de prioridades - como se pode ser editora e escritora ao mesmo tempo - parecia-me estranha e previsível; soava assim: "Como se pode ao mesmo tempo dar aulas e criar?", "Como pode um pintor, um escultor, um ator fazer seu trabalho e orientar outros?". Mas para muita gente essa combinação editar-escrever era conflitante. A segunda razão era menos ambígua. Os livros que eu editara não estavam rendendo rios de dinheiro, mesmo quando isso não significava a mesma coisa que hoje. Minha lista a meus olhos era espetacular: escritores de incrível talento (Toni Cade Bambara, June Jordan, Gayl Jones, Lucille Clifton, Henry Dumas, Leon Forrest); acadêmicos com idéias originais e pesquisas experimentais (Shenfan, de William Hinton; They came before Columbus [Eles vieram antes de Colombo], de Ivan Van Sertima; Sexist justice [Justiça sexista], de Karen DeCrow; The West and the rest of us [O Ocidente e o resto de nós], de Chinweizu); personalidades públicas que queriam esclarecer as coisas (Angela Davis, Muhammad Ali, Huey Newton). E, quando achava que um livro precisava ser feito, procurava um autor para escrevê-lo. Meu entusiasmo, compartilhado por algumas pessoas, era silenciado por outras, refletindo os números inexpressivos nas vendas. Posso estar errada, mas, mesmo no final dos anos 70, conseguir autores que vendessem era mais importante que editar manuscritos ou dar apoio a autores emergentes ou autores velhos através de sua carreira. Basta dizer que convenci a mim mesma de que era hora de viver como uma escritora adulta: dos royalties e da escritura apenas. Não sei de que gibi saiu essa idéia, mas me agarrei a ela. Dias depois de meu último dia de trabalho, sentada na frente de minha casa, no píer que entra pelo rio Hudson, comecei a sentir uma inquietação em vez da calma que eu esperava. Percorri o meu índice de áreas problemáticas e não encontrei nada novo ou urgente. Não conseguia vislumbrar o que estava, tão inesperadamente, perturbando um dia tão perfeito, olhando um rio tão sereno. Não tinha nada na agenda e não dava para ouvir o telefone, se tocasse. Ouvia meu coração, porém, batendo dentro do peito como potro. Voltei para casa e examinei essa apreensão, esse pânico mesmo. Sabia como era o medo; aquilo era diferente. Então me veio como uma bofetada: eu estava feliz, livre, de um jeito que nunca havia estado, jamais. Era a sensação mais estranha. Não êxtase, não satisfação, não um excesso de prazer ou realização. Era um deleite mais puro, uma insidiosa expectativa com certeza. Entra em cena Amada. Acho agora que foi o choque de liberação que levou minhas idéias para o que poderia significar ser "livre" para as mulheres. Nos anos 80, esse debate ainda estava em curso: pagamento igual, tratamento igual, acesso a profissões, escolas... e escolha sem estigma. Casar ou não. Ter filhos ou não. Inevitavelmente, essas idéias me levaram à história diferente das mulheres negras neste país - uma história na qual o casamento era desestimulado, impossível ou ilegal; em que era exigido ter filhos, mas "ter" os filhos, ser responsável por eles - ser, em outras palavras, mãe deles - era tão fora de questão quanto a liberdade. A afirmação de paternidade nas condições peculiares da lógica da escravidão institucional constituía crime. A idéia era estimulante, mas esse panorama me era opressivo. Criar personagens que pudessem manifestar o intelecto e a ferocidade que essa lógica devia provocar me parecia demais para minha imaginação até que me lembrei de um dos livros que havia publicado quando ainda tinha um emprego. Um recorte de jornal do The Black Book [O livro negro] resumia a história de Margaret Garner, uma jovem que, depois de escapar da escravidão, foi presa por matar um de seus filhos (e tentar matar os outros), para impedir que fossem devolvidos à plantação do senhor. Ela se transformou numa cause célèbre da luta contra as leis dos Escravos Fugitivos, que determinava que os que escapavam fossem devolvidos a seus donos. O equilíbrio e a ausência de arrependimento dela chamaram a atenção dos abolicionistas, assim como dos jornais. Ela era, sem dúvida, determinada e, a julgar por seus comentários, tinha a inteligência, a ferocidade e a vontade de arriscar tudo por aquilo que, para ela, era a necessidade de liberdade. A Margaret Garner histórica era fascinante, mas, para um romancista, era limitadora. Muito pouco espaço imaginativo para o que eu queria. Então eu inventaria seus pensamentos, prenderia esses pensamentos a um subtexto que fosse historicamente verdadeiro em essência, mas não estritamente factual, a fim de relacionar sua história com questões contemporâneas sobre a liberdade, a responsabilidade e o "lugar" da mulher. A heroína representaria a aceitação indesculpada da vergonha e do terror; assumiria as conseqüências de escolher o infanticídio; reclamaria a própria liberdade. O terreno, a escravidão, era formidável e sem trilhas. Convidar os leitores (e eu própria) a percorrer a paisagem repelente (oculta, mas não completamente; deliberadamente enterrada, mas não esquecida) era armar uma tenda num cemitério habitado por fantasmas muito eloqüentes. Sentei na varanda, me embalando numa cadeira de balanço, olhei as pedras empilhadas para aparar os golpes ocasionais do rio. Acima das pedras, há um caminho pela relva, mas interrompido por um gazebo de madeira situado debaixo de um grupo de árvores, em sombra profunda. Ela caminhou até a água, subiu pelas pedras e encostou-se no gazebo. Lindo chapéu. Então ela estava ali desde o começo e, a não ser eu, todo mundo (os personagens) sabia - uma frase que depois se tornou "As mulheres da casa sabiam". A figura mais central da história teria de ser ela, a assassinada, não a assassina, aquela que perdeu tudo e não tivera nenhuma opção em nada. Ela não podia ficar do lado de fora; tinha de entrar na casa. Uma casa de verdade, não uma cabana. Uma casa com endereço, onde antigos escravos vivessem independentes. Não haveria saguão nessa casa, e não haveria nenhuma "introdução" nem para a casa, nem para o romance. Queria que o leitor fosse seqüestrado, impiedosamente jogado num ambiente estranho como primeiro espaço para uma experiência comum com a população do livro - assim como os personagens eram arrancados de um lugar para outro, de qualquer lugar para qualquer outro, sem preparação nem defesa. Era importante dar nome a essa casa, mas não do jeito que "Doce Lar" ou outras plantações tinham nomes. Não haveria adjetivos sugerindo aconchego, grandeza, ou pretensão a um passado instantâneo e aristocrático. Apenas números aqui para identificar uma casa e ao mesmo tempo separá-la de uma rua ou cidade - marcar como é diferente das casas de outros negros no bairro; atribuir um indício de superioridade, de orgulho, que antigos escravos haviam de ter em possuir endereço próprio. Mas ao mesmo tempo uma casa que tem, literalmente, uma personalidade - que chamamos de "assombrada" quando essa personalidade é ostensiva. Na tentativa de tornar a experiência do escravo íntima, eu esperava que a sensação de as coisas estarem ao mesmo tempo controladas e fora de controle fosse convincente de início a fim; que a ordem e quietude da vida cotidiana fosse violentamente dilacerada pelo caos dos mortos carentes; que o esforço hercúleo de esquecer fosse ameaçado pela lembrança desesperada para continuar viva. Para mostrar a escravatura como uma experiência pessoal, a língua não podia atrapalhar. Eu prezo aquele momento no píer, o rio fugidio, a instantânea consciência das possibilidades, o pulsar forte do coração, a solidão, o perigo. E a garota com chapéu bonito. Depois, o foco. I O 124 era rancoroso. Cheio de um veneno de bebê. As mulheres da casa sabiam e sabiam também as crianças. Durante anos cada um lidou com o rancor de seu próprio jeito, mas em 1873 Sethe e sua filha Denver foram suas únicas vítimas. A avó, Baby Suggs, tinha morrido, e os filhos, Howard e Buglar, haviam fugido ainda com treze anos de idade, assim que o simples olhar no espelho o estilhaçava (foi esse o sinal para Buglar); assim que as marcas de duas mãozinhas apareceram no bolo (esse foi o de Howard). Nenhum dos dois rapazes esperou para ver mais; outro caldeirão de ervilhas fumegando amontoadas pelo chão; biscoitos esfarelados e espalhados numa linha junto ao batente da porta. Não esperaram nem por um dos períodos de alívio: as semanas, meses mesmo, em que nada acontecia. Não. Cada um fugiu de uma vez - no momento em que a casa cometeu o que para ele era o único insulto a não ser suportado nem visto uma segunda vez. No prazo de dois meses, no pico do inverno, deixaram a avó, Baby Suggs; Sethe, a mãe; e a irmãzinha pequena, Denver, completamente sozinhas na casa cinza e branca da rua Bluestone. A casa não tinha número então, porque Cincinnati não chegava até ali. Na verdade, Ohio se chamava de estado há apenas setenta anos quando primeiro um irmão depois o outro enterrou o chapéu na cabeça, agarrou os sapatos e se esgueirou para longe do rancor vivo que a casa sentia por eles. Baby Suggs nem levantou a cabeça. De seu leito de doente, ouviu os dois irem embora, mas não era essa a razão de sua imobilidade. Era um mistério para ela seus netos terem levado tanto tempo para entender que nem todas as casas eram como a da rua Bluestone. Suspensa entre a sordidez da vida e a baixeza dos mortos, ela não conseguia se interessar por deixar a vida, nem por viver a vida, muito menos pelo pavor dos dois meninos fujões. Seu passado tinha sido igual a seu presente - intolerável - e, como ela sabia que a morte não era nada além de esquecimento, usou a pouca energia que lhe restava para ponderar sobre cor. "Me traga um pouco de lilás, se tiver. Rosa, se não tiver." E Sethe a satisfazia, com qualquer coisa, desde um pedaço de tecido até sua própria língua. O inverno em Ohio era especialmente duro para quem tinha apetite por cor. O céu só provia drama e contar com um horizonte de Cincinnati como alegria principal da vida era mesmo temerário. Então, Sethe e a menina Denver faziam por ela o que podiam, e o que a casa permitia. Juntas travavam uma inútil batalha contra o comportamento daquele lugar; contra penicos virados, tapas no traseiro e rajadas de ar viciado. Porque elas entendiam a fonte da infâmia tão bem quanto conheciam a fonte de luz. Baby Suggs morreu logo depois que os irmãos foram embora, sem nenhum interesse na partida deles ou dela e, logo depois, Sethe e Denver resolveram encerrar a perseguição invocando o fantasma que tanto as atormentava. Talvez uma conversa, pensaram, uma troca de opiniões ou alguma outra coisa pudesse ajudar. Então deram-se as mãos e disseram: "Venha. Venha. Podia pelo menos aparecer". O guarda-louças deu um passo adiante, mas nada mais se manifestou. "Vovô Baby não deve estar deixando", disse Denver. Tinha dez anos e ainda estava furiosa com Baby Suggs por ter morrido. Sethe abriu os olhos. "Duvido", disse ela. "Então por que ela não aparece?" "Está esquecendo como ela é pequena", disse a mãe. "Não tinha nem dois anos quando morreu. Muito pequena para entender. Muito pequena até para falar." "Vai ver que ela não quer entender", disse Denver. "Pode ser. Mas se ela viesse, eu pelo menos podia contar tudo para ela." Sethe largou a mão da filha e juntas empurraram de volta o guarda-louças até encostar na parede. Lá fora, um cocheiro chicoteou o cavalo para galopar como as pessoas dali achavam necessário fazer ao passar na frente do 124. "Para um bebê ela tem bastante força", disse Denver. "Não mais do que a força do meu amor por ela", Sethe respondeu, e lá estava de novo. O frescor de boas-vindas de lápides não lapidadas; aquela que, na ponta dos pés, ela escolhera para encostar, os joelhos tão abertos como qualquer túmulo. Rosa como uma unha e polvilhado de pontos cintilantes. Dez minutos, ele disse. Você tem dez minutos e eu faço grátis. Dez minutos para cinco letras. Com mais dez ela podia ter conseguido "Bem" também? Não tinha pensado em perguntar a ele e ainda a incomodava aquilo ter sido possível - que em troca de vinte minutos, meia hora digamos, ela podia ter conseguido a coisa toda, todas as palavras que tinha ouvido o pregador dizer no enterro (e tudo o que havia para dizer, com certeza) entalhado na lápide: Bem-Amada. Mas o que ela havia conseguido, que escolhera, era a única palavra que importava. Ela achou que podia bastar, copular entre as lápides com o entalhador, o filho dele, menino, olhando, tão velho o ódio em seu rosto; bem novo o apetite nesse rosto. Aquilo com certeza devia bastar. Bastar para responder a mais um pregador, a mais um abolicionista e a uma cidade cheia de aversão. Contando com a quietude de sua própria alma, ela esquecera a outra: a alma de sua filha bebê. Quem haveria de dizer que um velho bebezinho pudesse abrigar tanta raiva? Copular entre as lápides sob os olhos do filho do entalhador não bastou. Não só ela teve de viver seus anos numa casa paralisada pela fúria do bebê por lhe terem cortado a garganta, como aqueles dez minutos que passou esmagada contra a pedra cor de amanhecer salpicada de lascas de estrelas, os joelhos tão abertos como o túmulo, foram os mais longos de sua vida, mais vivos e mais pulsantes que o sangue do bebê que encharcaram seus dedos como óleo. "Podemos mudar", ela sugeriu uma vez à sogra. "Para quê?", Baby Suggs perguntou. "Não tem uma casa no país que não esteja recheada até o teto com a tristeza de algum negro morto. Sorte nossa que esse fantasma é um bebê. O espírito do meu marido podia baixar aqui? Ou do seu? Nem me fale. Sorte a sua. Ainda tem três sobrando. Três puxando suas saias e só uma infernizando do outro lado. Agradeça, por que não agradece? Eu tive oito. Um por um foram para longe de mim. Quatro levados, quatro perseguidos, e todos, acho, assombrando a casa de alguém para o mal." Baby Suggs esfregou as sobrancelhas. "Minha primeira. Dela só lembro é do quanto gostava da ponta queimada do pão. Dá para acreditar? Oito filhos e é só disso que eu lembro." "É só isso que você deixa voltar na sua lembrança", Sethe disse, mas a ela havia sobrado só uma, uma viva, quer dizer, os meninos expulsos pela morta, e sua lembrança de Buglar estava se apagando depressa. Howard tinha pelo menos um formato de cabeça que ninguém conseguia esquecer. Quanto ao resto, ela batalhava para lembrar o mínimo possível. Infelizmente seu cérebro era tortuoso. Podia estar indo depressa pelo campo, praticamente correndo, para chegar rápido à bomba e lavar a seiva de camomila das pernas. Nada mais na cabeça. A imagem dos homens vindo para mamar nela era tão sem vida quanto os nervos de suas costas onde a pele era ondulada como uma tábua de lavar roupa. Também não havia mais nem o menor cheiro da tinta ou da goma de cereja e da casca de carvalho de que a tinta era feita. Nada. Só a brisa refrescando seu rosto enquanto corria para a água. E, então, enxaguando a camomila com a água da bomba e trapos, a cabeça pensando apenas em conseguir remover a seiva toda - em seu descuido de tomar um atalho pelo campo só para economizar meio quilômetro, e só perceber que as hastes estavam altas até a coceira já estar chegando nos joelhos. Depois, alguma coisa. O poço de água, a visão de suas meias e sapatos revirados no caminho onde os tinha jogado; ou Aqui Rapaz pulando na poça junto a seus pés, e, de repente, lá estava Doce Lar, se desdobrando, desdobrando, desdobrando diante de seus olhos e, embora não houvesse uma única folha naquela fazenda que não lhe desse vontade de gritar, a fazenda se desdobrava na sua frente em desavergonhada beleza. Nunca parecera tão terrível como agora e a fazia pensar se o inferno seria um lugar bonito também. Fogo e enxofre, sim, mas escondidos em bosques rendilhados. Rapazes pendurados nos sicômoros mais lindos do mundo. Sentia vergonha de lembrar das maravilhosas árvores sussurrantes mais que dos rapazes. Por mais que tentasse o contrário, os sicômoros venciam as crianças todas as vezes e não conseguia perdoar sua memória por isso. Quando toda a camomila desapareceu, voltou para a frente da casa, pegou os sapatos e as meias no caminho. Como para castigá-la ainda mais por sua memória terrível, sentado na varanda a menos de quinze metros estava Paul D, o último homem da Doce Lar. E embora ela jamais pudesse confundir sua cara com outro, perguntou: "É você?". "O que sobrou." Ele se levantou e sorriu. "Como vai, menina, apesar de descalça?" Quando ela riu, foi um riso solto e jovem: "Sujei a perna lá adiante. Camomila". Ele fez uma careta, como se tivesse provado uma colher de alguma coisa amarga. "Não quero nem ouvir falar disso. Sempre detestei esse negócio." Sethe embolou as meias e enfiou no bolso. "Vamos entrar." "Está bom na varanda, Sethe. É fresco aqui." Ele voltou a se sentar e olhou o campo do outro lado da estrada, sabendo que a ansiedade que sentia apareceria no olhar. "Dezoito anos", disse ela, de mansinho. "Dezoito", ele repetiu. "E juro que andei durante esses anos todos. Se importa de eu imitar você?" Indicou com a cabeça os pés dela e começou a desamarrar os sapatos. "Quer pôr na água? Vou buscar uma bacia de água para você." Ela chegou mais perto dele para entrar na casa. "Não, não, não. Amolecer o pé, não. Muita estrada ainda pela frente." "Não pode ir embora já, Paul D. Tem de ficar um pouco." "Bom, um pouco só para ver a Baby Suggs, então. Onde é que ela está?" "Morreu." "Ah, não. Quando?" "Faz oito anos já. Quase nove." "Ela sofreu? Não foi duro morrer para ela, espero." Sethe balançou a cabeça. "Macio feito creme. Viver é que estava difícil. Pena você sentir falta dela. Foi isso que veio fazer aqui?" "Uma parte do que eu vim fazer aqui. A outra parte é você. Mas se é para falar a verdade, eu não vou mais para lugar nenhum agora. Em nenhum lugar que me deixem sentar." "Está com a cara boa." "Confusão do diabo. Ele me deixa com a cara boa contanto que eu me sinta mal." Olhou para ela e a palavra "mal" assumiu outro sentido. Sethe sorriu. Eles eram desse jeito - sempre tinham sido. Todos os homens da Doce Lar, antes e depois de Halle, a tratavam como um meigo flerte fraterno, tão sutil que era preciso olhar bem para ver. A não ser por um monte de cabelo a mais e alguma expectativa nos olhos, ele estava com a mesma cara que tinha em Kentucky. Pele de caroço de pêssego; costas retas. Para um homem de cara dura, era incrível a prontidão com que sorria, se zangava, ou demonstrava pena. Como se só bastasse chamar sua atenção para, na mesma hora, ele demonstrar o sentimento que estava sentindo. Com menos que uma piscada, a cara dele parecia mudar: por baixo ficava a prontidão. "Dele eu não preciso perguntar, preciso? Você me contava se tivesse alguma coisa para contar, não contava?" Sethe baixou os olhos para os pés e mais uma vez viu os sicômoros. "Contava. Claro que contava. Mas não sei mais nada agora do que eu já sabia antes." A não ser pelo coalho, ele pensou, e isso você não precisa saber. "Você deve achar que ele ainda está vivo." "Não. Eu acho que ele morreu. Não ter a certeza é que faz ele continuar vivo." "O que a Baby Suggs achava?" "A mesma coisa, mas para ela os filhos estavam todos mortos. Dizia que sentia quando cada um ia embora no mesmo dia e hora." "Quando ela disse que o Halle foi embora?" "Mil oitocentos e cinqüenta e cinco. No dia que meu bebê nasceu." "Você teve aquele bebê, então? Nunca pensei que você ia ter." Ele riu. "Fugir grávida." "Precisei. Não dava para esperar." Ela baixou a cabeça e pensou, como ele, como era improvável ter conseguido. E, se não fosse aquela menina procurando veludo, nunca teria tido. "E sozinha ainda por cima." Ele ficou orgulhoso e incomodado por ela. Orgulhoso de ela ter feito aquilo; incomodado de ela não ter precisado nem de Halle nem dele no acontecido. "Quase sozinha. Não sozinha de tudo. Uma moçabranca me ajudou." "Então ela ajudou foi ela mesma, benza Deus." "Você podia ficar para dormir, Paul D." "Você não parece muito certa do convite." Por cima do ombro dele, Sethe olhou a porta fechada. "Ah, é sincero, sim. Só espero que não repare na casa. Vamos entrar. Converse com Denver enquanto eu faço alguma coisa para você comer." Paul D amarrou os sapatos um no outro, pendurou no ombro e foi atrás dela porta adentro direto para uma poça de luz vermelha e ondulante que o imobilizou onde estava. "Está com visita?", ele sussurrou, franzindo a testa. "De vez em quando", disse Sethe. "Meu Deus." Ele recuou da porta de volta à varanda. "Que mal é esse que tem aí dentro?" "Não é mal, é só tristeza. Venha. Entre de uma vez." Ele então olhou para ela, com atenção. Mais atenção do que quando ela chegara perto da casa com as pernas molhadas e brilhantes, segurando os sapatos e as meias numa mão, as saias na outra. A garota do Halle - de olhos de aço e tutano igual. Ele nunca tinha visto o cabelo dela em Kentucky. E, embora seu rosto estivesse dezoito anos mais velho que da última vez que a vira, estava mais suave agora. Por causa do cabelo. Um rosto imóvel demais para ser confortável; as íris da mesma cor da pele, coisa que, naquele rosto imóvel, costumava fazê-lo pensar numa máscara com olhos misericordiosamente perfurados. A mulher do Halle. Grávida todo ano, inclusive no ano em que, sentada ao lado do fogo, contou a ele que ia fugir. Os três filhos ela já havia despachado num carroção de outros em uma caravana de negros que ia atravessar o rio. Seriam deixados com a mãe de Halle perto de Cincinnati. Mesmo naquele barraco minúsculo, tão perto do fogo que dava para sentir o cheiro do calor do vestido dela, seus olhos não captavam nem uma faísca de luz. Eram como dois poços dentro dos quais ele tinha dificuldade para olhar. Mesmo perfurados tinham de ser cobertos, tapados, marcados com alguma placa para alertar as pessoas do vazio que continham. Então ele preferiu ficar olhando o fogo enquanto ela contava, porque o marido dela não estava lá para contar. Mr. Garner tinha morrido e a esposa dele estava com um caroço no pescoço do tamanho de uma batata-doce, não conseguia mais falar. Ela se inclinou para perto do fogo o máximo que a barriga de grávida permitia e contou para ele, Paul D, o último dos homens da Doce Lar. [...]