Trecho do livro FANTOCHES E OUTROS CONTOS

Prefácio O ERICO CONTISTA Esta reedição de Fantoches é mais do que a recuperação de uma parte importante, e em geral pouco conhecida, da obra do grande escritor. É um verdadeiro evento literário, que proporciona ao leitor um encontro tríplice: com o jovem contista que dava seus primeiros passos na literatura; com o contista maduro e seguro de seu ofício, cujas histórias compõem a segunda parte do volume, e finalmente com o escritor que, no auge da carreira, olha seus trabalhos iniciais e comenta-os em notas manuscritas (ilustradas com desenhos: Erico pensava desenhando, coisa que Luis Fernando herdou dele, assim como o talento literário). Algo insólito, para dizer o mínimo, e, como logo veremos, profundamente instrutivo - um notável e muito raro exercício de autocrítica, que diverte e emociona o leitor. Fantoches foi o primeiro livro de Erico Verissimo. Nascido em Cruz Alta (RS), em 1905- seu centenário de nascimento foi, ainda recentemente, evocado e celebrado em todo o Brasil -, Erico era descendente, tanto pelo lado paterno como pelo materno, de estancieiros tradicionais. Ou seja: sua origem está ligada à própria história do Rio Grande do Sul, região conquistada a ferro e fogo aos espanhóis e que depois, dividida entre os senhores da guerra, deu origem ao latifúndio gaúcho. No pampa, aquela planura vasta e ondulada que se estende por Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, surgiu a primeira riqueza da região, o gado, criado livre no campo. No final do século XIX e começo do século XX, a exportação da carne era uma importante fonte de rendimentos: a Argentina era a quinta economia mundial. Mas, como freqüentemente sucede com as commodities, a atividade entrou em crise. O pai de Erico, Sebastião Verissimo da Fonseca, era um conhecido perdulário. Resultado: a fortuna da família se evaporou. Os pais se separaram em 1922 e Erico foi morar na casa da avó, com a mãe. Não pôde completar os estudos iniciados em Cruz Alta e que deveriam culminar com a entrada na Faculdade de Medicina (aliás, a vocação médica de Erico aparece repetidamente em sua obra, na qual são numerosos os personagens e temas médicos; Olhai os lírios do campo é um dos exemplos, mas não o único). Erico teve de ajudar no sustento da família, trabalhando como balconista no armazém do tio, o primeiro de seus vários empregos (foi também sócio de uma farmácia, que faliu). Enquanto isso, lia e escrevia. Lia muito. Autores brasileiros: Coelho Neto, Aluísio de Azevedo, Joaquim Manoel de Macedo, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Oswald de Andrade e Mário de Andrade. E também Walter Scott, Tolstói, Eça de Queiroz, Émile Zola, Dostoiévski, Oscar Wilde, Bernard Shaw (cuja influência aparece no conto "Pigmalião", de Fantoches), Anatole France, Nietzsche, Omar Khayyam, Ibsen, Verhaeren e Rabindranath Tagore. Um leitor eclético, portanto, que no entanto não fugia às preferências de sua geração, para quem os escritores franceses eram grandes guias literários. E não só lia, também traduzia, sobretudo do inglês e do francês; mais tarde, muitas obras de autores estrangeiros seriam publicadas pela Globo com tradução de Erico. Ele tinha tudo para se tornar escritor. Em primeiro lugar, a poderosa vocação de narrador - modestamente, intitulava-se um "contador de histórias". Só que Erico tinha a capacidade mágica de transformar narrativa em arte. Para essa vocação, contribuíram a vida atribulada, as copiosas leituras e o cenário. Literatura é parte importante na tradição cultural do Rio Grande do Sul, cuja tradição inclui os "causos", as histórias que os gaúchos contavam quando, após a lida no campo, reuniam-se para o churrasco e o chimarrão. A essas histórias juntavam-se as narrativas dos imigrantes; em muitos grupos, o apego ao livro (à Biblia, pelo menos) era um traço característico. Vivendo em Cruz Alta, praticamente no meio do estado, Erico vivenciava essas correntes culturais. Veio para a capital mais tarde. A Porto Alegre dos anos 30 era uma cidade pequena, provinciana, em que abundavam os pruridos moralistas (os livros de Erico foram proibidos em alguns colégios por serem "imorais"). A vida literária dependia das rodinhas de chope mencionadas pelo autor. Ele freqüentava a do bar Antonello, na rua da Praia (como ainda hoje é conhecida a rua dos Andradas, artéria central da cidade), onde estavam as lojas elegantes, se fazia o footing e ficava a Livraria do Globo e a Editora Globo, na qual Erico começou a trabalhar em 1930 e que publicou toda a sua obra. A roda de chope que o escritor freqüentava incluía Augusto Meyer, Theodemiro Tostes e Athos Damasceno Ferreira, entre outros intelectuais. Erico se classificava como "um conviva chatíssimo: não falava, não fumava... e não bebia". O fato de morar em Porto Alegre fez com que ele, a princípio, se enquadrasse na categoria dos escritores urbanos: é a classe média da cidade que Erico retrata em obras como Caminhos cruzados. Fantoches foi lançado em 1932. Já tinha publicado alguns contos em revistas. Em suas palavras: "Eu escrevia e publicava esparsamente desde 1929. Por quê? Necessitaria de escrever um ensaio enorme para responder a esse por quê. Talvez possa dizer, numa resposta incompleta, que me sentia inclinado à literatura - desejo de comunicar-me com os meus semelhantes e comigo mesmo; ânsia de sair do anonimato, da mediocridade duma vida de cidade pequena; necessidade de emular os escritores famosos que eu lia, pois sempre gostei muito de ler. E é natural que, aos dezoito ou vinte anos, todo o homem tenha o desejo de ver seu nome ligado a algum empreendimento, a algum feito. No meu caso esse desejo era o de ver o meu nome na capa de um livro". Fantoches vendeu cerca de 400 exemplares; outros 1100 foram destruídos num incêndio do depósito da Globo ("Casual, juro!", diz o autor). Assim, a edição ao menos não resultou em prejuízo e, segundo Erico, "encorajou-o" a oferecer à Globo a novela Clarissa (1933). O livro é de "pouca ou nenhuma importância literária", diz Erico no prefácio à edição fac-similar que comemorou os quarenta anos de lançamento de sua primeira obra. De novo, temos uma evidência de sua modéstia. Claro, trata-se do livro de um principiante, com todos os defeitos de um livro de principiante, mesmo que depois esse principiante tenha se tornado um grande escritor. Mas, ao mesmo tempo, Fantoches já revela as qualidades que apareceriam na maturidade do escritor. Diz ele que o livro "não tem unidade". Pode ser; isso costuma ocorrer (aliás, na maioria das vezes) com livros de contos. Mas as histórias têm traços em comum. Como é freqüente nos escritores em início de carreira, há a pretensão à universalidade, pretensão de abordar, não raro de forma pomposa e grandiloqüente ("Sangue do meu sangue!", brada um personagem), os grandes temas da condição: a paixão, o ódio, a submissão a um Destino (sempre com D maiúsculo) implacável. Não há cenários definidos, nem do ponto de vista de lugar, nem do ponto de vista da História. Em "Os três magos", o cenário é apresentado como uma praça deserta. "Onde?", pergunta a anotação de Erico; em que cidade, em que país? Numa nota ao conto "Chico", a mesma indagação: "Onde se passa esta estória? Não sei". Alguns contos têm a forma de pequenas peças teatrais, o que não deixa de ser curioso: teatro foi uma das poucas formas que Erico não tentou. Mas a sua capacidade de construir diálogos vivos, reveladores, já estava presente aqui. O aspecto mais original desta reedição de Fantoches é sem dúvida o diálogo entre Erico já veterano (com 66 anos) e o jovem Erico, autor das histórias. As observações escritas nas margens das páginas, na letra do próprio escritor, são antológicas e constituem não apenas num exercício literário, mas sobretudo uma lição de vida. Às vezes, Erico é severo. Sobre o conto "Como um raio de sol", diz: "Todo este drama é possível. Porém a maneira como foi desenvolvido me parece falsa". Outras vezes é bem-humorado, irônico. Dirigindo-se a um personagem, adverte: "João, você já disse isto. Não é preciso repetir". A propósito de um personagem que brada "Homem não chora", comenta: "Gaúcho macho". O conto "Chico" o faz suspirar: "Se um dia houver um concurso de lugares-comuns acho que vou me inscrever nele com este conto". Erico também analisa a gênese das histórias. "Os três magos": "Na roda literária que eu freqüentava, a pieguice era considerada um pecado mortal contra o bom gosto. Neste 'ato de circo' procuro equilibrar-me num fio de ironia, evitando - nem sempre com sucesso - cair na rede do sentimentalismo". Sobre "A aquarela chinesa": "Esta era a imagem do chim que me ficara na memória inconsciente, como resultado do filme seriado Os mistérios de Nova York, em que quase todos os bandidos eram chineses". Não deixa de notar as incorreções, as impropriedades. A propósito da frase: "Os três homens se submergem", pergunta: "Para que o se?". "Entra pela vidraça da janela um jorro de luar", escreveu o jovem Erico, e o maduro escritor pergunta aos leitores: "Vocês não acham jorro uma palavra forte demais, já que se trata de luar?". A segunda parte deste volume chama-se Outros contos. A diferença é impressionante. O que temos aqui é o escritor em sua maturidade, chegando ao apogeu de seu poder narrativo. As três primeiras histórias o demonstram. "As mãos de meu filho" é uma análise comovente e dilacerante das limitações da paternidade. Ao assistir ao concerto do filho, pianista famoso, um homem evoca seu passado. Bom pai ele não foi; dado à bebida, não conseguia sustentar a pequena família e por isso dependia da mulher, uma santa. Do filho, já crescido, teve de ouvir a frase arrasadora: "Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo!". Mas um mérito esse homem tem. Pelo menos um, como conta ao porteiro do teatro: numa noite em que, por causa do frio, tinham colocado o bebê a dormir junto com o casal, sentiu nas costas as mãozinhas do menino e ficou a noite inteira acordado, com medo de involuntariamente machucá-lo. As mãos do pianista devem-lhe algo e isso lhe serve não só de consolo - é uma glória. "O navio das sombras" é uma metáfora sombria sobre a morte. E em "Os devaneios do general" é o gaúcho Erico que, antecipando O tempo e o vento, conta a história de um caudilho dos pampas, o general Chicuta, em seu amargo ocaso: está numa cadeira de rodas, o empregado debocha dele (no fundo vingando o pai, morto por ordem do velho), o genro é um bacharel bem-comportado e seu passado guerreiro sumiu. Mas então o bisneto pequeno aparece, trazendo na mão uma lagartixa que acabou de degolar, e isso faz renascer a esperança do ancião: "Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa". Depois de Fantoches e Clarissa, a carreira de Erico decola, com reconhecimento do público e da crítica. Música ao longe e Caminhos cruzados recebem prêmios; o escritor viaja ao Rio de Janeiro, onde conhece Jorge Amado, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade e José Lins do Rego. Seus leitores crescem exponencialmente e ele diversifica a produção literária, escrevendo livros infantis, ensaios e livros de viagem, como Gato preto em campo de neve, relato de sua primeira viagem aos Estados Unidos, em 1941. Na Editora Globo, lança obras importantes de Balzac, Proust, Virginia Woolf, Thomas Mann, John Steinbeck, James Hilton e Katherine Mansfield, várias delas traduzidas por ele. E em 1947 começa a obra que o consagraria, o épico gaúcho O tempo e o vento - previsto para ser um livro único, transformou-se numa trilogia com mais de 2 mil páginas, consumindo-lhe quinze anos de trabalho. Tornou-se mais famoso e popular, ganhou mais prêmios: o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. Morreu em 28 de novembro de 1975. Carlos Drummond de Andrade escreveu então um poema: Falta uma tristeza de menino bom caminhando entre adultos na esperança da justiça. O "menino bom" foi o que escreveu Fantoches e também o mesmo que permaneceu vivo no grande escritor que foi Erico Verissimo. Moacyr Scliar Escritor