Trecho do livro A FELICIDADE PARADOXAL

Apresentação Uma nova modernidade nasceu: ela coincide com a "civilização do desejo" que foi construída ao longo da segunda metade do século XX. Essa revolução é inseparável das novas orientações do capitalismo posto no caminho da estimulação perpétua da demanda, da mercantilização e da multiplicação indefinida das necessidades: o capitalismo de consumo tomou o lugar das economias de produção. Em algumas décadas, a affluent society alterou os gêneros de vida e os costumes, ocasionou uma nova hierarquia dos fins bem como uma nova relação com as coisas e com o tempo, consigo e com os outros. A vida no presente tomou o lugar das expectativas do futuro histórico e o hedonismo, o das militâncias políticas; a febre do conforto substituiu as paixões nacionalistas e os lazeres, a revolução. Sustentado pela nova religião do melhoramento contínuo das condições de vida, o maior bem-estar tornou-se uma paixão de massa, o objetivo supremo das sociedades democráticas, um ideal exaltado em todas as esquinas. Raros são os fenômenos que conseguiram modificar tão profundamente os modos de vida e os gostos, as aspirações e os comportamentos da maioria em um intervalo de tempo tão curto. Jamais se reconhecerá tudo que o homem novo das sociedades liberais "deve" à invenção da sociedade de consumo de massa. Aparentemente, nada ou quase nada mudou: continuamos a nos mover na sociedade do supermercado e da publicidade, do automóvel e da televisão. No entanto, a contar das duas últimas décadas, surgiu um novo "ismo" que pôs fim à boa e velha sociedade de consumo, transformando tanto a organização da oferta quanto as práticas cotidianas e o universo mental do consumismo moderno: a própria revolução do consumo foi revolucionada. Estabeleceu-se uma nova fase do capitalismo de consumo: ela não é mais que a sociedade de hiperconsumo. Seu funcionamento e seu impacto sobre as existências são o objeto deste livro. O sistema fordista, ao difundir produtos padronizados, cedeu o passo a uma economia da variedade e da reatividade na qual não apenas a qualidade, mas também o tempo, a inovação e a renovação dos produtos tornaram-se critérios de competitividade das empresas. Em paralelo, a distribuição, o marketing e a comunicação inventaram novos instrumentos com vista à conquista dos mercados. Enquanto se desenvolve uma abordagem mais qualitativa do mercado levando em conta as necessidades e a satisfação do cliente, passamos de uma economia centrada na oferta a uma economia centrada na procura. Política de marca, "criação de valor para o cliente", sistemas de fidelização, crescimento da segmentação e da comunicação: está em atividade uma revolução copernicana que substitui a empresa "orientada para o produto" pela empresa orientada para o mercado e o consumidor. A nova predominância dos mercados de consumo não se exprime apenas nas estratégias das empresas, mas também no funcionamento global de nossas economias. Não são mais os produtores que estão na origem da recente subida dos preços do petróleo, mas o extremo vigor da procura, em particular americana e chinesa. No momento em que se intensificam as ameaças de catástrofes ecológicas, a temática do "consumo durável" encontra amplo eco, aparecendo o hiperconsumidor como um ator a ser responsabilizado com toda a urgência, uma vez que suas práticas excessivas desequilibram a ecoesfera. Sabe-se, além disso, que as despesas de consumo das famílias se tornaram o primeiro motor do crescimento; daí o imperativo de instaurar um clima geral de confiança dos compradores a fim de que, poupando menos e tomando mais empréstimos, eles contribuam para uma expansão econômica forte, considerada primordial. O crescimento da economia mundial depende em grande parte do consumo americano, que representa um pouco menos de 70% do PIB dos Estados Unidos e quase 20% da atividade mundial. A sociedade de hiperconsumo coincide com um estado da economia marcado pela centralidade do consumidor. É assim que, em uma escala mais ampla, a nova era do capitalismo se constrói estruturalmente em torno de dois atores preponderantes: o acionista de um lado, o consumidor do outro. O rei bolsista e o cliente rei: essa nova configuração de poderes está no princípio da mutação da economia globalizada. Em relação ao primeiro pólo, a hora é a da busca sistemática de uma criação de valor muito elevada para os detentores do capital. No que se refere ao segundo, o imperativo é mercantilizar todas as experiências em todo lugar, a toda hora e em qualquer idade, diversificar a oferta adaptando-se às expectativas dos compradores, reduzir os ciclos de vida dos produtos pela rapidez das inovações, segmentar os mercados, favorecer o crédito ao consumo, fidelizar o cliente por práticas comerciais diferenciadas. Enquanto triunfa o capitalismo globalizado, o assalariado, os sindicatos e o Estado passaram para segundo plano, suplantados que são, daí em diante, pelo poder dos mercados financeiros e dos mercados de consumo. A nova economia-mundo não se define apenas pela soberania da lógica financeira: é também inseparável da expansão de uma "economia do comprador". A essa ordem econômica, em que o consumidor se impõe como o senhor do tempo, corresponde uma profunda revolução dos comportamentos e do imaginário de consumo. Um Homo consumericus de terceiro tipo vem à luz, uma espécie de turboconsumidor desajustado, instável e flexível, amplamente liberto das antigas culturas de classe, imprevisível em seus gostos e em suas compras. De um consumidor sujeito às coerções sociais da posição, passou-se a um hiperconsumidor à espreita de experiências emocionais e de maior bem-estar, de qualidade de vida e de saúde, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comunicação. O consumo intimizado tomou o lugar do consumo honorífico, em um sistema em que o comprador é cada vez mais informado e infiel, reflexivo e "estético". Pouco a pouco, desvanecem-se os antigos limites de tempo e de espaço que emolduravam o universo do consumo: eis-nos em um cosmo consumista contínuo, dessincronizado e hiperindividualista, no qual mais nenhuma categoria de idade escapa às estratégias de segmentação do marketing, mas no qual cada um pode construir à la carte seu emprego do tempo, remodelar sua aparência, moldar suas maneiras de viver. A hora é do consumo-mundo em que não apenas as culturas antagonistas foram eliminadas, mas em que o ethos consumista tende a reorganizar o conjunto das condutas, inclusive aquelas que não dependem da troca mercantil. Pouco a pouco, o espírito de consumo conseguiu infiltrar-se até na relação com a família e a religião, com a política e o sindicalismo, com a cultura e o tempo disponível. Tudo se passa como se, daí em diante, o consumo funcionasse como um império sem tempo morto cujos contornos são infinitos. Daí a condição profundamente paradoxal do hiperconsumidor. De um lado, este se afirma como um "consumator", informado e "livre", que vê seu leque de escolhas ampliar-se, que consulta portais e comparadores de custo, aproveita as pechinchas do low-cost, age procurando otimizar a relação qualidade/preço. Do outro, os modos de vida, os prazeres e os gostos mostram-se cada vez mais sob a dependência do sistema mercantil. Quanto mais o hiperconsumidor detém um poder que lhe era desconhecido até então, mais o mercado estende sua força tentacular; quanto mais o comprador está em situação de auto-administração, mais existe extrodeterminação ligada à ordem comercial. O hiperconsumidor não está mais apenas ávido de bem-estar material, ele aparece como um solicitante exponencial de conforto psíquico, de harmonia interior e de desabrochamento subjetivo, demonstrados pelo florescimento das técnicas derivadas do desenvolvimento pessoal bem como pelo sucesso das sabedorias orientais, das novas espiritualidades, dos guias da felicidade e da sabedoria. O materialismo da primeira sociedade de consumo passou de moda: assistimos à expansão do mercado da alma e de sua transformação, do equilíbrio e da auto-estima, enquanto proliferam as farmácias da felicidade. Numa época em que o sofrimento é desprovido de todo sentido, em que os grandes referenciais tradicionais e históricos estão esgotados, a questão da felicidade interior "volta à tona", tornando-se um segmento comercial, um objeto de marketing que o hiperconsumidor quer poder ter em mãos, sem esforço, imediatamente e por todos os meios. A crença moderna segundo a qual a abundância é a condição necessária e suficiente da felicidade do homem deixou de ser evidente: resta saber se a reabilitação da sabedoria não recompõe por sua vez uma ilusão de outro gênero. Reinvestindo na dimensão do "ser" ou da espiritualidade, o neoconsumidor está mais bem inserido no caminho da felicidade que seus predecessores? A civilização consumista distingue-se pelo lugar central ocupado pelas aspirações de bem-estar e pela busca de uma vida melhor para si mesmo e os seus. Não faltam indícios que façam pensar que, nesse domínio, a sociedade de hiperconsumo detém um certo número de cartas mestras. Prolongando um movimento secular, a esperança de vida não cessa de aumentar: agora é de 76,7 anos para os franceses e de 83,8 anos para as francesas; uma menina nascida em 2001 tem 50% de possibilidades de viver pelo menos até cem anos. Vive-se mais, em melhor forma e beneficiando-se com melhores condições materiais. Cada um é reconhecido como senhor da condução de sua vida; os nascimentos são decididos; os comportamentos sexuais são deixados às livres inclinações dos homens e das mulheres. A parte do tempo não trabalhado representa, nos países mais desenvolvidos, entre 82% e 89% da duração total do tempo desperto de um indivíduo. O tempo e o dinheiro consagrados aos lazeres estão em alta constante. As festas, os jogos, os lazeres, as incitações ao prazer invadem o espaço da vida cotidiana. O tempo não é mais aquele no qual Freud escrevia que "a felicidade não é um valor cultural": agora ela triunfa, no reino dos ideais superiores. A progressão dos salários é deficiente? O poder de compra está ameaçado? Isso não impede que nove entre dez franceses se declarem felizes. Coisa que fornece alguns desmentidos a todas as aves agourentas. Vistas do alto, ao menos as regiões ricas são felizes. A noiva é tão bela quanto esse primeiro plano fotográfico sugere? A imensa maioria se diz feliz, contudo a tristeza e o estresse, as depressões e as ansiedades formam um rio que engrossa de maneira inquietante. Majoritariamente, declaramo-nos felizes pensando que os outros não o são. Jamais os pais se esforçaram tanto em satisfazer os desejos dos filhos, jamais os "distúrbios de comportamento" (entre 5% e 9% dos jovens de quinze anos) e as doenças mentais destes estiveram tão disseminados: segundo o Inserm (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica), uma criança em oito sofre de distúrbio mental. Se o PIB dobrou desde 1975, o número de desempregados quadruplicou. Nossas sociedades são cada vez mais ricas: apesar disso, um número crescente de pessoas vive na precariedade e precisa fazer economias em todos os itens de seu orçamento, tornando-se a falta de dinheiro uma preocupação cada vez mais obsessiva. Somos cada vez mais bem cuidados, o que não impede que os indivíduos se tornem uma espécie de hipocondríacos crônicos. Os corpos são livres, a miséria sexual é persistente. As solicitações hedonísticas são onipresentes: as inquietudes, as decepções, as inseguranças sociais e pessoais aumentam. Aspectos que fazem da sociedade de hiperconsumo a civilização da felicidade paradoxal. "Quem fala da felicidade com freqüência tem os olhos tristes", escrevia Aragon. Então é preciso dar razão ao poeta e, hoje, às leituras paranóicas do consumo, que detectam o abismo atrás do espetáculo radiante da abundância e da comunicação? Esforcei-me em evitar semelhante propensão à demonização. Evidentemente, o balanço humano e social da sociedade hipermercantil não é muito lisonjeiro, mas é negativo em todos os pontos? Se ela não é o paraíso, tampouco se parece com o inferno de derrelição e de frustração pintado por seus detratores habituais. Progredimos no caminho da felicidade? Afirmá-lo seria confundir indevidamente bem-estar material e vida feliz. Em todo caso, o hiperconsumidor pode ter acesso a prazeres sempre mais numerosos e freqüentes, provar os gozos incontáveis dos lazeres, das evasões e da mudança. Se esses consumos não são sinônimos de felicidade, não deixam de ser, muitas vezes, fontes de reais satisfações. Contra a postura hipócrita de grande parte da crítica do consumo, é preciso reconhecer os elementos de positividade implicados na superficialidade consumista. O que é que permite pensar o consumo como um domínio incapaz de proporcionar verdadeiras satisfações? Enganamo-nos ao considerar os gostos pela facilidade e a frivolidade, pela evasão e o jogo como necessidades "inferiores": eles são consubstanciais ao desejo humano. É neles, entre outros, que se enxerta a espiral do hiperconsumo. Os excessos prejudiciais da atividade consumidora não bastam para depreciar em seu conjunto um fenômeno que tem laços íntimos com a busca do agradável e do divertimento. Com bom senso, Aristóteles já o assinalava: o homem feliz tem necessidade de gozar, sem dificuldade, de diferentes bens exteriores. Acrescentemos que, se as manifestações da "má vida" se multiplicam, os indivíduos têm igualmente mais oportunidades de poder "recomeçar" mais depressa. A sociedade de hiperconsumo funciona como uma sociedade de desorganização psicológica que é acompanhada por numerosos processos de "recuperação" ou de redinamização subjetiva. Mais do que nunca, acelera-se a sucessão dos altos e baixos da vida: movimentos de vaivém que justificam tanto o pessimismo quanto um certo otimismo. Sem dúvida, há mais esperança a ser depositada nessa aceleração dos dados da existência que nas promessas dos novos gurus da sabedoria. Nada vem confirmar os pontos de vista dos mais pessimistas, que analisam a sociedade da satisfação total e imediata como o caminho que prepara a eclosão de um "fascismo voluntário". A verdade é que a sociedade de hiperconsumo é menos aquela que se empenha em impulsionar um tiro pela culatra autoritarista do que aquela que nos protege dele. E, quaisquer que sejam as ameaças que pesem sobre a educação e a cultura, as capacidades transcendentes, reflexivas e críticas dos sujeitos não foram de modo algum decapitadas. As razões para ter esperança não estão caducas: apesar da inflação das necessidades mercantilizadas, o indivíduo continua a viver para outra coisa que não os bens materiais passageiros. Os ideais de amor, de verdade, de justiça, de altruísmo não faliram: nenhum niilismo completo, nenhum "último homem" se desenha no horizonte dos tempos hipermodernos. Se o novo regime mercantil não deve ser posto no pelourinho, tampouco deve ser incensado. Contemporâneo de um comprador conscientizado e "profissionalizado", ele é igualmente produtor de um "mal infinito", de comportamentos desenfreados e excessivos, de uma infinidade de desordens subjetivas e de fracassos educativos. De um lado, a sociedade de hiperconsumo exalta os referenciais do maior bem-estar, da harmonia e do equilíbrio; do outro, ela se apresenta como um sistema hipertrófico e incontrolado, uma ordem bulímica que leva ao extremo e ao caos e que vê coabitar a opulência com a amplificação das desigualdades e do subconsumo. As mazelas são duplas: dizem respeito tanto à ordem subjetiva das existências quanto ao ideal de justiça social. É assim que a era da felicidade paradoxal exige soluções, elas próprias paradoxais. Precisamos claramente de menos consumo, entendido como imaginário proliferativo da satisfação, como desperdício da energia e como excrescência sem regra das condutas individuais. A hora é da regulação e da moderação, do reforço das motivações menos dependentes dos bens mercantis. Impõem-se mudanças, a fim de assegurar não apenas um desenvolvimento econômico durável, mas também existências menos desestabilizadas, menos magnetizadas pelas satisfações consumistas. Mas precisamos também, sob certos aspectos, de mais consumo: isso, para fazer recuar a pobreza, mas também para ajudar os idosos e cuidar sempre melhor das populações, utilizar melhor o tempo e os serviços, abrir-se para o mundo, provar experiências novas. Não há salvação sem progresso do consumo, ainda que ele fosse redefinido por novos critérios; não há esperança de uma vida melhor se não rediscutirmos o imaginário da satisfação completa e imediata, se nos ativermos apenas ao fetichismo do crescimento das necessidades comercializadas. O tempo das revoluções políticas está terminado, o do reequilíbrio da cultura consumista e da reinvenção permanente do consumo e dos modos de vida está diante de nós. A sociedade de hiperconsumo começa sua carreira por volta do fim dos anos 1970 e seu decurso não se dá sem incontáveis críticas. Sem dúvida, estas modificarão sua fisionomia atual. A pós-sociedade de hiperconsumo está, então, na ordem do dia? A meu ver, não é nada disso, sendo o roteiro mais provável seu alargamento na escala do planeta, em uma época que não dispõe de substituto digno de crédito: em breve, serão centenas de milhões de chineses e de indianos que entrarão na espiral da abundância dos bens e serviços pagos, indefinidamente renovados. Não nos enganemos: nem os protestos ecologistas nem os novos modos de consumo mais sóbrio bastarão para destronar a hegemonia crescente da esfera mercantil, para fazer descarrilar o trem-bala consumista, para opor-se à avalanche dos novos produtos com ciclo de vida cada vez mais curto. Estamos apenas no começo da sociedade de hiperconsumo, nada, por ora, está em condições de deter, nem mesmo de frear, o avanço da mercantilização da experiência e dos modos de vida. No entanto, cedo ou tarde, chegará o momento de sua superação, que inventará novas maneiras de produzir, de trocar, mas também de avaliar o consumo e de pensar a felicidade. Em um futuro distante, uma nova hierarquia de bens e de valores virá à luz. A sociedade de hiperconsumo terá morrido, cedendo o passo a outras prioridades, a um novo imaginário da vida em sociedade e do bem viver. Para um melhor equilíbrio? Para maior felicidade da humanidade?