I 1 No futuro ele vai invadir a cidade. Por enquanto é só paisagem: mar, mar, mar. Do outro lado, pensou, a África. Olhou em torno, o quarto era pequeno. Colchão, mesa, duas cadeiras, livros e CDs espalhados, CD-player, mochila, garrafinhas d'água e uma janela. Lá fora gente falando, rádio ligado, cachorro latindo e o esgoto aberto. Como se a África estivesse ali mesmo. Uma velha subia os degraus acompanhada de um garotinho preto. Luger cromada enfiada dentro da bermuda vermelha, o garoto percebeu que era observado. Ok, estava feito o contato. Desviou o olhar além das lajes de concreto: oceano cobalto, céu azul e um emaranhado de nuvens de cimento flutuando no horizonte. A ironia é que a melhor paisagem é privilégio dos mais miseráveis. E daí?, pensou. E daí? Qual a utilidade da paisagem? Ou da ironia? Colocou no CD-player um rap cubano. Yo lo que quiero es/ que no me toquen/ yo lo que quiero es... Decidiu exercitar os músculos numa tentativa de diminuir a ansiedade. Abriu espaço no chão, empurrando livros, e iniciou uma série de flexões. Não percebeu quando abriram a porta. De perto a arma na cintura do garoto parecia maior. 2 De olhos fechados, Renato Pellegrini sentia os dedos melados de óleo de eucalipto subirem lentamente em direção à virilha. Ainda havia joelhos e coxas a percorrer, a massagista terminara o trabalho nos pés e começava a manusear sem pressa a panturrilha esquerda. Música new-age soava ao fundo, hipnótica. Um perfume de eucalipto pairava entre lembranças desconexas e o aconchego escurinho da sala de massagem do spa do hotel Plaza Athenée, em Paris. Renato pensava agora em Mônica caminhando pela avenue Montaigne e olhando a si mesma refletida na vitrine de uma loja. Ela dividiria a atenção entre o vestido caríssimo e a imagem do próprio corpo. Lamentaria o infortúnio dos centímetros extras acumulados nas laterais do abdome. Então manifestou-se a dor terrível e Renato imaginou um punhal rompendo vértebras. As imagens se dissiparam de repente. Uma hérnia de disco implodira a viagem de férias. Dois dias antes, durante o vôo São Paulo-Paris, apesar do conforto da poltrona da classe executiva, Renato percebera o primeiro sintoma, uma dor aguda e persistente na região lombar. No dia seguinte, ao cumprir seu ritual pessoal de passear pelo boulevard Saint-Gérmain, sentiu a perna arder como se nervos e ossos se consumissem num incêndio. De madrugada experimentou o que interpretou como dor de parto caso tivesse um útero nas costas. Mônica ofendeu-se sutilmente com a comparação, já que nunca tivera filhos, e sugeriu a Renato que perguntasse à ex-mulher, com quem ele tivera dois, o que doía mais: um parto ou uma crise de hérnia. Ele preferiu ligar para o médico. O dr. Pinsky sugeriu antiinflamatórios, repouso e consulta com um especialista em Paris. Talvez fosse necessária uma cirurgia, mas exames teriam de ser feitos para uma avaliação mais detalhada. Acabaram-se as férias, sentenciou, com o sadismo delicado que Renato reconhecia nos médicos. Elas nem sequer haviam começado. Como não cogitava submeter-se a uma cirurgia em terra estrangeira nem repousar numa cama que lhe custaria oitocentos euros por dia, preferiu marcar rapidamente o retorno ao Brasil. Poderiam embarcar naquela mesma noite, informou a agência de viagens. Mas Mônica não aceitou a idéia de voltar ao Brasil sem antes cumprir o seu próprio ritual pessoal: compras e compras nas lojas sofisticadas da avenue Montaigne e o tão esperado jantar no restaurante de Zhing Tao, o chef zen, cuja reserva havia sido feita com três meses de antecedência. Três meses de antecedência para conseguir um lugar num restaurante? Que tipo de vida era aquela que ele estava levando, perguntou-se Renato Pellegrini, inebriado pelo cheiro do óleo de eucalipto e pela música new-age, que agora soava como água de cachoeira. A massagista ordenou que virasse de costas. Uma constatação acrescentou uma sombra de frustração à tarde de outono: ela não tocou em sua virilha. Renato voltou ao quarto vestido com o roupão branco bordado com o brasão do Plaza Athenée. Deitou e ligou a TV num canal árabe. Um sujeito gordo berrava notas agudas em tom de lamento. A melodia conduziu-o a um estado confuso de autocomiseração e nostalgia. Mudou de canal. Na CNN um repórter americano transmitia notícias ao lado de uma mesquita, mas Renato não se concentrou no que ele dizia. Esquecera de pedir a Mônica que comprasse um CD de rock para Sofia e camisas de times franceses de futebol para Felipe. Da última vez que visitara os filhos, Felipe havia lhe mostrado a coleção de camisas esportivas que guardava no armário. Renato pensou no armário bagunçado do filho. O armário de Sofia era mais organizado, mas lembrar daqueles armários sempre deixava Renato melancólico, e ele não sabia explicar por quê. As divagações foram interrompidas pela chegada de Mônica, que entrou no quarto acompanhada por uma comitiva de nomes famosos estampados em sacolas coloridas. Ermenegildo Zegna, Stella McCartney, Giorgio Armani. "Amor...", disse, franzindo os olhos numa careta misericordiosa. "Melhorou?" "Não." "E a massagem?" "Mais ou menos. Não posso esquecer de levar umas camisas de futebol para o Felipe." Mônica sorriu: "Já comprei. O vendedor me sugeriu Nice, Olympique de Lyon e Olympique de Marseille. Uma gracinha, ficou feliz de saber que eu era brasileira." "Preciso levar um CD para a Sofia." "Comprei um DVD ao vivo do U2", contou ela, orgulhosa de sua eficiência. "O vendedor da Virgin disse que acabou de ser lançado. Ele também foi muito gentil. Não sei por que falam que os franceses são antipáticos." "Homens sempre são simpáticos com você." Mônica ajoelhou-se sobre o marido, abriu o roupão que ele vestia e descortinou um pau quase duro. Gratidão. Inclinou-se para chupá-lo, o telefone tocou. Renato atendeu no momento em que a língua de Mônica tocava a glande: "Lílian?". Mônica interrompeu o ato. O nome maldito: Lílian. Só mesmo uma ex-mulher para escolher com tanta precisão a hora de ligar. "Tudo bem? Aconteceu alguma coisa?" Enquanto Lílian falava, Mônica reparou na expressão preocupada de Renato. "A Sofia? Como assim? Desde quando?" "Aconteceu alguma coisa com a Sofia?", perguntou Mônica, aproximando-se de Renato e percebendo palidez em seu rosto. 3 O bimotor pousou com um tranco. Levantou poeira da pista de terra batida. Urubus voaram de trás das folhagens. Perro Blanco estava ansioso. Quis levantar da poltrona, mas o piloto pediu que aguardasse o desligamento dos motores. Foi o primeiro a saltar e acendeu o cigarro logo que tocou os pés na terra vermelha. Diezpesos veio atrás carregando a sacola com amostras da mercadoria. Diezpesos era um garoto, quase uma criança ainda. Fazia calor. O carro estava estacionado próximo ao bimotor, como combinado. Perro Blanco não gostou da cara do motorista mulato. Num país estranho tudo parece suspeito. "Malhando?", perguntou o garoto da bermuda vermelha. "Você não bate antes de entrar?", disse o outro, interrompendo as flexões. "Que som é esse?" "Rap cubano", respondeu, levantando do chão. "Orishas. Gosta?" "Parece música de Carnaval. Gostei das trancinhas." "São as raízes. Por que não deixa teu cabelo crescer? Preto fica bem de trança." "Tu é gringo?", perguntou o garoto. "Não. Descendente de escravos africanos. Como você." "Tu é estranho." "Por causa das tranças?" "Não, o jeito de falar." "Meu nome é Samora." "Parece nome de mulher." "É o nome de um líder político, um guerrilheiro que ajudou um país a conquistar a liberdade." O garoto ficou quieto. "Não vai dizer o nome, compadre?" "Pelinha." "Também parece nome de mulher. Chega mais, senta aí." Samora sentou numa cadeira e indicou outra. Pelinha notou livros e CDs amontoados pelo cômodo. Antes de sentar, colocou a Luger cromada sobre a mesa, ao lado de um livro cujo título era Império. "Veio de onde?", perguntou Pelinha. "Leblon." "Andam dizendo que tu é rico." "Olha a minha riqueza aí", Samora apontou os livros e os cds. "Morava no asfalto, em apartamento de bacana. Tô sabendo." "Morava no apartamento do meu padrasto. Ele sim é gringo. E rico." "Africano?" "Nada. Inglês, maior galego. Parece um coelho." "Ele ficou pobre?" "Está cada vez mais rico." "Então tu veio pro morro fazer o quê, mané?" "Viver a minha vida. Antes eu vivia a vida do coelho." "Vivia a vida do teu padrasto?", o garoto riu. "É." "Melhor que viver a vida de um padrasto pobre." "Nem sempre", afirmou Samora. "Estão dizendo que tu é X9." "Quem está dizendo?" Pelinha olhou na direção do alto do morro. "A galera." "Que galera?" "A galera", repetiu. "A Mara Maluca?" O garoto não respondeu. "Eu tenho cara de X9, Pelinha?" "X9 não tem cara." "Como é que eu faço pra dar uma idéia com a Mulher?" "Quer o quê com ela?" "Business." "Pó?" "Troca de informação." "Já sei, tu é jornalista." "Qual é, Pelinha? Já viu jornalista preto?" "Tu é negão, mas fala como playboy." "É porque já fui um branco rico. Não sou mais. Imagine um Michael Jackson ao contrário." "Tu é estranho", constatou mais uma vez Pelinha. Levantou, guardou a arma na cintura. "Pra que tanto livro?" "Pra exercitar a cabeça." Samora tirou o cd dos Orishas do aparelho de som e deu de presente para Pelinha. "Vê lá se a Mara Maluca topa me encontrar." "Melhor trancar a porta", alertou o garoto antes de sair.