ENCONTRO DE ACASO - Olá, pá, não pagas nada?! Um encontro de acaso. Um encontro cruel que me lembrou a meninice descuidada. Ele, eu e os outros. A Grande Floresta e o Clube Kinaxixi refúgio de bandidos. Os sardões e os pássaros. As fugas da escola. Por detrás da Agricultura existia a Grande Floresta. Grande Floresta para nós miúdos de oito anos que fizemos dela o centro do mundo, a sede do nosso grupo de "cobóis". Mafumeiras gigantes, cheias de picos, habitadas por sardões, plim-plaus, picas, celestes, rabos-de-junco. Um encontro de acaso! Sempre fui amigo dele. Desde pequeno que era o chefe do bando. As pernas tortas, as feições duras, impusera-se pela força. Da sua pontaria com a fisga nasceu o respeito como chefe. Nós gostávamos dele porque tinha imaginação. Inventava as aventuras na água suja que se acumulava na floresta. Foi o inventor das jangadas que nos levariam à conquista do reduto dos Bandidos do Kinaxixi. Ah! O Kinaxixi dos bailes ao domingo. Ele nos mandou despir a todos e meter na água, em direcção ao clube e matar os bandidos. E os nossos corpos escuros, de brancos que brincavam todo o dia nas areias vermelhas, que jogavam a bola-de-meia com rede bem feita pelo Rocha, que comiam quicuerra e açúcar preto com jinguba, metiam-se na água vermelha e avançavam para o Kinaxixi. Um encontro de acaso! Como são dolorosas as recordações! Oh, quem me dera outra vez mergulhar o corpo na água suja e ter a alma limpa como nos tempos em que ele, eu, o Mimi, o Fernando Silva, o João Maluco, o Margaret e tantos outros, éramos os reis da Grande Floresta. Mas tudo se modificou e só a ferida feita pela memória persiste ainda. Tractores invejosos a soldo de bandos de inimigos desconhecidos invadiram-nos a floresta e derrubaram as árvores. Fugiram os sardões e as pica-flores. As celestes e os plim-plaus. Planos maquiavélicos de engenheiros bem pagos libertaram as chuvas. E nunca mais houve ataques ao Kinaxixi. Fomos crescendo. A vida separou-nos. Cada um com a sua cela nesta imensa prisão. Não éramos mais os cavaleiros da Grande Floresta. Uns continuaram a estudar. Outros trabalham. Ele não continuou a estudar. Mais tarde soube que tinha tentado ir clandestinamente para a América, dentro de um barril, mas que fora descoberto perto de Matadi. A vida fez dele um farrapo. As companhias que a vida lhe trouxe modificaram-no. O seu espírito de aventura compatibilizou-se com a rufiagem. E quando o via nas ruas, ao sol, as pernas cada vez mais arqueadas, a voz rouca, a pronúncia de negro, dirigindo os pretos na colocação de tubos para a conduta da água, ficava a olhar para ele. Já não me conhecia. Era-lhe estranho. E eu quase chorava ao ver ali o meu chefe da Grande Floresta, que não me cumprimentava, farrapo da vida. Muitas vezes tentei a aproximação, mas só o olhar de ódio dele me respondia. Reconhecer-me-ia ele por detrás do meu disfarce feito de fazenda e nylon, de uma barba bem escanhoada, dos meus sapatos engraxados? Não, ele não podia ver que eu era o mesmo menino do bando, que comia com ele jinguba e peixe frito na loja do velho Pitagrós. Ele não podia ver que eu era o sócio dele nas grandes rifas que fazíamos. Ah! Aquelas rifas... Como eu tenho saudades delas. Nos degraus da casa grande, à entrada para a mercearia, com a Guerra Ilustrada, Neptuno e outras revistas de guerra que o consulado nos dava, armávamos as grandes rifas anuais. Aparos velhos. Tinteiros com água e tinta. Sabonetes de cinco tostões. Com a capa e a folha do meio a cores, de uma revista, duas revistas. E sempre o prémio bom com o número bem à vista, mas que nunca estava na rifa. E os tamarindos melaços e mucefos que a Joana Maluca nos trazia do Bungo? Ele não podia ver que eu era o mesmo. Mas eu, por detrás daqueles modos bruscos, daquela voz rouca, via o mesmo chefe, sedento de aventuras, que matava rabos-de-junco só com uma fisgada. O chefe que conseguiu subir a uma mafumeira. E ontem eu vi-o outra vez. Há tanto tempo que o não via! Mas já não era o mesmo chefe, nem o rapaz das ruas que colocava tubos para a nova conduta de água. Era o produto das fases que atravessara. No meu deambular pelo musseque, casa da Toninha, Bar América, Colonial, parei diante duma taberna. Escuro cá fora, escuro lá dentro. Só o brilho dos corpos e das garrafas. Um candeeiro meio apagado. Cá fora chegavam até mim os ecos esborrachados dum baião tocado em harmónica de boca. Pelas frinchas ele fugia. Por mim passaram dois mulatos em discussão. De longe vinha o som dum baile. Baile em terreno batido, à pouca luz dos petromaxes, quase que apostava! Empurrei a porta e entrei na taberna. Sombras. Ao centro a mesa, as garrafas, os copos. Num canto um par de bêbados dormia. De pé, um negro batia com o pé descalço no chão e marcava o compasso duma música que a sua boca tirava da harmónica. O outro negro magrinho dançava com ele, o chefe da Grande Floresta. O espectáculo tinha tanto de estranho como de belo. Sombras pinceladas pela luz amarela do candeeiro, personagens irreais. Um negro de pé. Só se viam os olhos brilhar e os pés a bater o ritmo duma canção de instrumento barato. O outro negro, que se torcia e retorcia na febre do ritmo, tocado de leve pela luz, amarfanhado pela sombra da própria cor, dançava com ele, de pernas mais tortas, cabelo a cair para a testa, os olhos raiados de sangue. Fiquei durante momentos na contemplação daquele quadro. Depois o negro da harmónica parou. Os dois que ressonavam no chão foram sacudidos a pontapé. Eu estava ali a olhar para tudo. Ele avançou para mim, cambaleando. Os dois negros atrás olharam admirados. Ele chegou-se. Conservei-me quieto. O seu hálito tocava--me. Suportei tudo e inconscientemente sorri. Ele despertava em mim todas as imagens da minha infância. Por isso eu sorria, com um sorriso que o tocou. Olhou bem para mim e bateu-me no ombro. - Olá, pá, não pagas nada?! E eu vi no brilho dos seus olhos mortiços e raiados de sangue que me tinha reconhecido. E na noite quente, eu e ele falámos muito, toldados ambos pelo palhete da taberna. Nunca me soube tão bem vinho palhete! Cá fora, sumindo-se na escuridão, negra como eles, os dois amigos cambaleavam abraçados. E o da harmónica tirava do instrumento uma música que parecia arroto de bêbado através de palhetas, mas que no fundo era a canção de todos nós, meninos brancos e negros que comemos quicuerra e peixe frito, que fizemos fugas e fisgas e que em manhãs de chuva deitávamos o corpo sujo na água suja e de alma bem limpa íamos à conquista do reduto dos bandidos do Kinaxixi. 13-9-54