Trecho do livro CARTA A UMA NAÇÃO CRISTÃ

Você acredita que a Bíblia é a palavra de Deus, que Jesus é o filho de Deus e que apenas aqueles que têm fé em Jesus alcançarão a salvação após a morte. Como cristão, você acredita nessas afirmações não porque elas o fazem sentir-se bem, mas porque crê que são verdadeiras. Antes de apontar alguns problemas que essas crenças apresentam, eu gostaria de reconhecer que há muitos pontos em que concordo com você. Nós concordamos, por exemplo, que se um de nós está certo, o outro está errado. Ou a Bíblia é a palavra de Deus, ou não é. Ou Jesus oferece à humanidade o único verdadeiro caminho para a salvação (João 14, 6), ou não oferece. Concordamos que ser um bom cristão é acreditar que todas as outras religiões estão erradas, e profundamente erradas. Se o cristianismo está correto, e eu persistir na minha descrença, devo esperar que um dia irei sofrer os tormentos do inferno. Pior ainda, já convenci outras pessoas, muitas delas próximas a mim, a rejeitar a própria idéia da existência de Deus. Elas também irão padecer no "fogo eterno" (Mateus 25, 41). Se a doutrina básica do cristianismo está correta, então desperdicei a minha vida da pior maneira que se possa conceber. Eu reconheço isso, sem restrição alguma. O fato de que a minha rejeição do cristianismo, pública e contínua, não me preocupa nem um pouco já demonstra o quanto considero inadequadas as suas razões para ser cristão. É claro que há cristãos que não concordam nem comigo, nem com você. Há cristãos que vêem outras religiões como caminhos igualmente válidos para a salvação. Há cristãos que não têm medo do inferno e que não acreditam na ressurreição física de Jesus. Esses cristãos costumam se definir como "religiosos liberais" ou "religiosos moderados". Do ponto de vista deles, tanto você como eu não compreendemos corretamente o que significa ser uma pessoa de fé. Existe, pelo que eles nos garantem, um vasto e belo território entre o ateísmo e o fundamentalismo religioso que muitas gerações de cristãos ponderados já exploraram discretamente. Segundo os liberais e os moderados, a fé se baseia não só no mistério e no significado, mas também na comunidade e no amor. As pessoas elaboram a religião a partir de todo o tecido de suas vidas, e não apenas de suas crenças. Já escrevi em outros textos sobre os problemas que vejo no liberalismo religioso e na moderação religiosa. Aqui só precisamos observar que o problema é mais simples e, ao mesmo tempo, mais urgente do que os liberais e moderados costumam reconhecer. Ou a Bíblia é apenas um livro comum, escrito por mortais, ou não é. Ou Cristo era divino, ou não era. Se a Bíblia é um livro comum, e Cristo era um homem comum, então a doutrina básica do cristianismo é falsa. Se a Bíblia é um livro comum, e Cristo era um homem comum, então a história da teologia cristã é a história de homens estudiosos dissecando uma ilusão coletiva. E se os princípios básicos do cristianismo são verdadeiros, então há surpresas extremamente desagradáveis à espera de descrentes como eu. Isso você compreende. Pelo menos a metade da população americana compreende. Assim, sejamos honestos: com o decorrer do tempo, um dos dois lados vai realmente vencer essa discussão, e o outro lado realmente sairá derrotado. Pense nisto: cada muçulmano devoto tem as mesmas razões para ser muçulmano que você tem para ser cristão. E, no entanto, você não acha essas razões convincentes. O Corão declara repetidas vezes ser a palavra perfeita do criador do universo. Os muçulmanos acreditam nisso tão piamente quanto você acredita na definição da Bíblia sobre ela própria. Há uma vasta literatura relatando a vida de Maomé que, do ponto de vista do islã, prova que ele foi o mais recente dos profetas de Deus. Maomé também garantiu aos seus seguidores que Jesus não era divino (Corão 5, 71-75; 19, 30-38), e que qualquer pessoa que pense diferente passará a eternidade no inferno. Os muçulmanos estão certos de que a opinião de Maomé a respeito desse assunto, assim como de todos os outros, é infalível. E por que você não perde o sono pensando se deve ou não se converter ao islamismo? Você é capaz de provar que Alá não é o único e verdadeiro Deus? Você é capaz de provar que o arcanjo Gabriel não visitou Maomé em sua caverna? Claro que não. Mas você não precisa provar nada disso para rejeitar as crenças muçulmanas, considerando-as absurdas. Recai sobre os muçulmanos o ônus da prova de que suas crenças acerca de Deus e de Maomé são válidas. E até agora eles não fizeram isso. Eles não podem fazer isso. As afirmações feitas por eles acerca da realidade simplesmente são impossíveis de ser comprovadas. E isso é perfeitamente claro e óbvio para qualquer um que não tenha se anestesiado com o dogma do islã. A verdade é que você sabe exatamente como é ser ateu, em relação às crenças dos muçulmanos. Pois não é óbvio que os muçulmanos estão enganando a si mesmos? Não é óbvio que qualquer um que considere o Corão a palavra perfeita do criador do universo não leu o livro de maneira crítica? Não é óbvio que a doutrina do islã representa uma barreira praticamente perfeita para a investigação honesta? Sim, tudo isso é óbvio. Compreenda, então, que a maneira como você vê o islamismo é exatamente a mesma como os muçulmanos devotos vêem o cristianismo. E é dessa maneira que eu vejo todas as religiões. A SABEDORIA DA BÍBLIA Você acredita que o cristianismo é uma fonte inigualável de bondade humana. Você acredita que Jesus ensinou as virtudes do amor, da compaixão e do altruísmo melhor do que qualquer outro mestre que já viveu. Você acredita que a Bíblia é o livro mais profundo jamais escrito, e que seu conteúdo suportou tão bem o teste do tempo que só pode ter sido escrito por inspiração divina. Todas essas crenças são falsas. As questões morais são questões de felicidade e sofrimento. É por isso que eu e você não temos obrigações morais em relação às pedras. Até onde nossas ações podem afetar a experiência de outras criaturas, de maneira positiva ou negativa, as questões de moral se aplicam. A idéia de que a Bíblia é o guia perfeito para a moralidade é simplesmente espantosa, em vista do conteúdo do livro. Não há dúvida de que o conselho de Deus para os pais é direto e claro: sempre que os filhos saem da linha, devemos bater neles com uma vara (Provérbios 13, 24; 20, 30; e 23, 13-14). Se eles tiverem a pouca-vergonha de nos responder com insolência, devemos matá-los (Êxodo 21, 15, Levítico 20, 9, Deuteronômio 21, 18-21, Marcos 7, 9-13, Mateus 15, 4-7). Também devemos apedrejar pessoas até a morte por heresia, adultério, homossexualismo, por trabalhar no sábado, adorar imagens, praticar feitiçaria e mais uma ampla variedade de crimes imaginários. Eis aqui apenas um exemplo da sabedoria eterna de Deus: Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu amigo que amas como à tua própria alma te incitar em segredo, dizendo: "Vamos e sirvamos a outros deuses" [...] não concordarás com ele, nem o ouvirás; não o olharás com piedade, não o pouparás, nem o esconderás, mas, certamente, o matarás. A tua mão será a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo. Apedrejá-lo-á até que morra, pois te procurou apartar do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão [...]. Quando em alguma das tuas cidades que o SENHOR, teu Deus, te dá, para ali habitares, ouvires dizer que homens malignos saíram do meio de ti e incitaram os moradores da sua cidade, dizendo: "Vamos e sirvamos a outros deuses", que não conheceste, então, inquirirás, investigarás e, com diligência, perguntarás; e eis que, se for verdade e certo que tal abominação se cometeu no meio de ti, então, certamente, ferirás a fio de espada os moradores daquela cidade, destruindo-a completamente e tudo o que nela houver, até os animais. Deuteronômio 13, 6, 8-15 Muitos cristãos acreditam que Jesus acabou com toda essa barbárie, nos termos mais claros imagináveis, e pregou uma doutrina de puro amor e tolerância. Mas não foi assim. Em vários pontos do Novo Testamento se pode ler que Jesus confirmou integralmente a lei do Velho Testamento. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. Mateus 5, 18-20 Os apóstolos repetiram várias vezes esse tema (por exemplo, veja 2 Timóteo 3, 16-17). É verdade, claro, que Jesus disse coisas profundas sobre o amor, a caridade e o perdão. A Regra de Ouro é realmente um preceito moral maravilhoso. Mas numerosos mestres já deram essa mesma orientação séculos antes de Jesus (Zoroastro, Buda, Confúcio, Epicteto...), e incontáveis escrituras discutem a importância do amor que transcende o próprio eu de maneira mais articulada do que a Bíblia, sem serem maculadas pelas obscenas celebrações de violência que encontramos em abundância tanto no Velho como no Novo Testamento. Se você acha que o cristianismo é a expressão mais direta e pura de amor e compaixão que o mundo já viu, é porque não conhece bem as outras religiões. Veja, por exemplo, o jainismo. Essa religião prega a doutrina da absoluta não-violência. É verdade que os jainistas acreditam em muitas coisas improváveis acerca do universo; mas não do tipo de coisas que acenderam as fogueiras da Inquisição. Você provavelmente pensa que a Inquisição foi uma perversão do "verdadeiro" espírito do cristianismo. Talvez tenha sido. O problema, porém, é que os ensinamentos da Bíblia são tão confusos e contraditórios que foi possível para os cristãos queimar alegremente os heréticos nas fogueiras, durante cinco longos séculos. Inclusive foi possível para os mais venerados patriarcas da Igreja, como santo Agostinho e santo Tomás de Aquino, concluir que os heréticos deviam ser torturados (santo Agostinho) ou mortos logo de uma vez (santo Tomás de Aquino). Martinho Lutero e João Calvino defendiam o assassinato em massa de heréticos, apóstatas, judeus e feiticeiras. Naturalmente, você é livre para interpretar a Bíblia de outra maneira - mas não é espantoso que você tenha conseguido discernir os verdadeiros ensinamentos do cristianismo, enquanto os mais influentes pensadores na história da religião cristã falharam nesse ponto? É claro que muitos cristãos acreditam que uma pessoa inofensiva como Martin Luther King Jr. é o melhor exemplo da religião cristã. Mas isso apresenta um sério problema, pois a doutrina do jainismo é, objetivamente, uma orientação melhor do que a doutrina do cristianismo para quem deseja ser como Martin Luther King Jr. Não há dúvida de que King se considerava um cristão devoto, mas ele assumiu seu compromisso com a não-violência basicamente a partir dos escritos de Mohandas K. Gandhi. Em 1959, King até viajou para a Índia a fim de aprender os princípios do protesto social não-violento diretamente com os discípulos de Gandhi. E com quem Gandhi, um hinduísta, aprendeu a doutrina da não-violência? Com os jainistas. Se você acredita que Jesus ensinou apenas a Regra de Ouro e o amor ao próximo, deve reler o Novo Testamento. Preste atenção especial à moralidade que ficará em evidência quando Jesus voltar à terra, deixando um rastro de nuvens de glória: se, de fato, é justo para com Deus que ele dê em paga tribulação aos que vos atribulam [...] quando do céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em chama de fogo, tomando vingança contra os que não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder. 2 Tessalonicenses 1, 6-9 Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam. João 15, 6 Se levarmos em conta a metade das afirmações de Jesus, podemos facilmente justificar as ações de são Francisco de Assis ou Martin Luther King Jr. Levando em conta a outra metade, podemos justificar a Inquisição. Qualquer pessoa que acredite que a Bíblia oferece a melhor orientação possível em assuntos de moralidade tem idéias muito estranhas - ou sobre orientação, ou sobre moralidade. [...]