O NATAL DO VIÚVO à maneira de Molloy de Beckett É tarde, a chuva bate nos vidros, ele está sentado num canto da sala. Talvez apóie o rosto numa das mãos ou cruze as pernas mas não se percebe nenhum movimento. A obscuridade é maior porque as cortinas estão descidas e a luz só filtra por algumas frestas. Não é possível registrar nada com nitidez, ele está parado ou parece parado na poltrona do canto da sala. Provavelmente os olhos permanecem fechados e se as pálpebras se abrem a vista acusa tonalidades de cor na quina de um móvel. Os carros passam pela rua da frente chiando os pneus no asfalto e alguma coisa estremece na casa, um ruído de folhas, o tinido de um cristal. Os copos estão enfileirados sobre a toalha ao lado dos pratos e talheres e dos guardanapos dobrados como um par de asas na penumbra. Os vidros e os metais não cintilam, as velas vermelhas dormem nos castiçais, o mais provável é que ainda não tenham saído dos armários e da cristaleira. Ele não fixa o olhar na mesa pois conserva a cabeça baixa ou apoiada na mão direita, talvez na esquerda. Se olhasse não veria nada porque lá também não há luz. Mas ele não é cego, olha para dentro e remexe, apalpa o que vê, as imagens vão de um lado para outro, rodopiam, escondem-se atrás da coluna de gesso e desaparecem sem deixar vestígio. O ar que ele respira é espesso, a neblina sobe do chão, a coluna vacila, de repente desaba, os pedaços se espalham pelo chão sem barulho. A criada de avental está varrendo o assoalho, a vassoura de pêlo trabalha como um autômato, a moça vira as costas para a sala, some pela porta da copa. Ele faz um gesto de impaciência, pode ser de dor, mergulha o rosto nas conchas das mãos e um resto de poeira branca se agita quando os carros passam pela rua. A campainha toca, toca, o chiado das rodas no asfalto abafa o toque remoto, ela toca outra vez, sobrevém o silêncio. Os passos se aproximam, o salto dos sapatos bate nos tacos, a esposa abre a porta, introduz a filha na casa com um beijo, as duas passam pela poltrona falando em surdina, agora é possível que ele se mova no assento da poltrona, faça menção de ir até a janela para abrir as cortinas. No centro da sala iluminada a filha está conversando com a mãe, elas mantêm os dedos enlaçados, o filho desce a escada em caracol e abraça as duas mulheres de perfil idêntico. A mesa foi posta, as velas vermelhas ardem nos castiçais, a moça de avental entra sorrindo com uma travessa nos braços. Os filhos chegam à poltrona do canto da sala, erguem as taças, pelo meio dos dois a mulher espia para ele, sorri, os dentes são brancos, as maçãs do rosto coradas e da linha alva do pescoço emerge um clarão. A cera começa a derreter, não se refaz, as figuras balançam como recortes de papelão no vento, o sino da igreja está batendo alto e uma rajada abre as vidraças sobre a praça. As árvores decoradas estão molhadas de chuva, os canteiros floridos, ele vê a família abraçada junto à janela, a mulher ainda se volta para a poltrona, faz um gesto com as mãos, insiste, insiste, ele quer dizer alguma coisa e emudece, talvez ele chore. As lágrimas devem rolar no escuro, escorrer pelo peito, pingar no tapete; não é exato descrever o que acontece. Pelas cortinas fechadas percebe-se que a noite avança, ele ainda está sentado imóvel na sala do sobrado que dá para a praça. Talvez apóie o rosto nas mãos ou cruze as pernas mas não se nota nenhum movimento. O sino não soa, não há sinos por perto, a sombra desliza sobre a mesa e os armários. O sobrado se destaca num halo de luz que vem de cima e tinge as nuvens de rosa, talvez um sopro as leve logo para longe. A porta lateral da casa está trancada, a campainha muda, o portão de ferro coberto pela hera, as vidraças vazias. Ele está sentado num canto da sala, quem sabe estique a cabeça e os braços no escuro. É tarde e a chuva bate nos vidros. Não era tarde. Não estava chovendo.