Cheguei domingo às oito da manhã, pé ante pé para não acordar minha mulher. Apesar do vôo, que saíra de Manaus às três da madrugada, estava disposto: havia dormido algumas horas no barco-escola e durante toda a viagem, até aterrissarmos em São Paulo. Desfiz a mala, providência adotada desde que comecei a viajar feito cigano e sem a qual não sinto haver chegado a lugar nenhum, e fui correr no Minhocão. "Alegria de paulista", disse uma amiga carioca quando contei que aproveitava a interdição do tráfego aos domingos para correr na pista elevada que faz parte da ligação leste-oeste da cidade, excrescência do urbanismo paulistano acessível a quinhentos metros de casa, no centro. Minha amiga tem razão, talvez seja programa de quem vive numa cidade cinzenta, congestionada, gigantesca, na qual, para enxergar uma nesga de céu, é preciso correr risco de morte debruçado na janela. Compreendo o encanto de morar em meio a paisagens paradisíacas ou em cidades bucólicas onde todos se conhecem, mas para os neuróticos, fascinados pela velocidade do cotidiano, pelo convívio com a diversidade étnica e com as manifestações de criatividade que emergem nos aglomerados humanos, correr domingo de manhãzinha na altura do segundo andar dos prédios da avenida São João é um prazer. No interior dos apartamentos o olhar bisbilhoteiro entrevê mobílias escuras, guarda-roupas pesados, estantes improvisadas e, claro, o televisor. Logo cedo, os craqueiros recolhem seus pertences nas rampas laterais para dar espaço aos primeiros corredores, ciclistas e andarilhos, e caminham na direção da Estação da Luz com o cobertorzinho ordinário nos ombros. Parecem morcegos afugentados pela claridade. Duvido que exista paisagem dominical mais urbana. A mulher de camisola florida e cabelo desgrenhado abre a cortina e boceja, despudorada; o senhor de pijama leva a gaiola do passarinho para o terraço espremido; o homem de abdômen avantajado escova os dentes distraído na janela; o de barba branca com gorro de lã, a cara do Bin Laden, empilha os móveis para a faxina da semana. Havia planejado completar vinte e quatro quilômetros, mas, depois de percorrer seis vezes os três quilômetros de extensão da referida excrescência, sucumbi ao peso da noite maldormida. Tomei água-de-coco, comprei pão e subi pela escada até o décimo quarto andar do prédio onde moro, exercício aprendido com um de meus pacientes, que aos setenta e seis anos subia dez vezes por dia doze andares. E, não satisfeito com a intensidade do esforço, fazia-o vestido com um blusão repleto de bolsos, nos quais distribuía vinte quilos de chumbo. Meu domingo seguiu a rotina: fui ao hospital, telefonei para alguns doentes, tomei uma dose de cachaça mineira, visitei minha netinha, escrevi durante a tarde e assisti ao terceiro episódio de uma série sobre obesidade apresentada por mim, na televisão. Às quatro da madrugada acordei. Entrava um vento cortante pela janela do banheiro. Quando voltei para a cama, meu corpo estava congelado. Achei estranho: Regina, eternamente mais agasalhada do que eu, dormia com uma colcha leve. Peguei o cobertor, mas tremia tanto que ela acordou e foi buscar uma manta grossa. A crise durou minutos. Fiquei encolhido, trêmulo, com a testa gelada, o corpo retesado, os músculos das costas contraídos e a boca cerrada para não bater os dentes, à espera do calor que as cobertas não traziam. Só consegui lembrar-me de tanto frio em duas ocasiões. Num 1o de janeiro, em Londres, a dez graus abaixo de zero, quando corri dois quarteirões com o rosto anestesiado para me abrigar numa lanchonete em cuja entrada uma moça quase albina sapateava e chorava de dor nos pés enregelados. Outra vez, em Cleveland, sob a neve, sofrimento idêntico porque menosprezei o vento e a distância que me separava da porta do hospital. Nas duas experiências, entretanto, o impacto era causado pelo frio que vinha do exterior; dessa vez, o gelo brotava da medula óssea. Os calafrios me trouxeram as imagens de um filme de Akira Kurosawa em que dois personagens são surpreendidos pela chegada da noite durante uma tempestade de neve, antes de avistar o acampamento - na verdade situado a pequena distância do local onde caíram exaustos. Quase invisíveis em meio à revoada de flocos, enquanto um deles fazia de tudo para impedir que o amigo desfalecesse, surgia a morte encarnada na figura evanescente de uma mulher de rosto encoberto, a convidá-los para acompanhá-la. O termômetro marcou 40,2 graus. Os calafrios eram o prenúncio de uma doença que por pouco não me levou desta para outra melhor, como diria minha avó. Tomei um comprimido de dipirona e dormi novamente. Às sete, levantei indisposto, com o corpo moído e as pernas combalidas, para ir a uma reunião na faculdade de medicina. Foi uma luta para não pegar no sono no meio da discussão. Bem fazem meus colegas japoneses, que se dão o direito de cochilar em rodízio durante as reuniões científicas, sem recriminações mútuas. No jardim da faculdade, a caminho da rua, achei prudente voltar para casa. Um pouco de repouso me deixaria em condições de ir à Penitenciária do Estado depois do almoço, para o atendimento aos presos, atividade iniciada nesse presídio após a implosão do Carandiru. Apesar da intenção, não consegui sair. Passei a tarde qual cachorro decrépito, caindo em cima do computador enquanto tentava escrever minha coluna de jornal. Afora a falta de energia, no entanto, nenhum sintoma de gripe, resfriado ou outra enfermidade. À noitinha a febre retornou alta, acompanhada dos mesmos calafrios e de dor nas costas. Tentei fazer o que muitas vezes aconselhei a meus pacientes nessas crises: respirar fundo e relaxar. Não sei onde aprendi recomendação tão inútil para quem não é monge budista nem vive nas montanhas do Tibete. Relaxar, com o corpo tremendo feito vara verde? Na febre alta, as toxinas cravam as garras nos músculos e entorpecem o cérebro. O pensamento fica fragmentado, fugidio, em estado de introspecção autista. A astenia deixa o corpo avesso aos mínimos esforços. Encolhido sob três cobertores incompetentes para derreter o iglu em que se transformara meu esqueleto, empenhado em dar à minha mulher a impressão de que tudo não passava de uma gripe forte, evento banal a que estava sujeito qualquer um, caí naquela fase inicial do sono, na qual o cérebro ainda mantém resquícios de comando sobre a motricidade suficientes para fazer o corpo reagir em sobressalto ao sonho ameaçador, quando surgiu nublada a imagem da negra do manjar. Emergiu do passado com vestido de organdi e renda branca, colar de contas coloridas, cavalete na mão e um turbante sobre o qual equilibrava o tabuleiro com os manjares. Sorriu para mim, olhou para a garotada que se aglomerava na calçada da fábrica em frente à casa onde morávamos com a avó espanhola, minha segunda mãe, abriu o cavalete e sobre ele apoiou o tabuleiro coberto com uma toalha de filó. Parou tão perto que pude admirar a sensualidade da pele reluzente, o colo farto, o vigor dos braços nus, e reconhecer a fragrância do Cashmere Bouquet. O sorriso da negra, neta de escravos, as crianças descalças ao redor dos manjares trêmulos, o cenário da rua cinzenta com casas coletivas de janelas altas e as torres da igreja de Santo Antônio pertenciam à infância no bairro operário do Brás, mas meu olhar era atual, tão fascinado pela aparição, que duas vezes fechei os olhos e fiz força para voltar ao sonho. Em que sótão aquelas memórias se esconderam por tantos anos, para vir à tona em meio a calafrios?