INTRODUÇÃO Quando criança, tive várias crenças religiosas fortes, mas pouca fé em Deus. Há uma distinção entre a crença num conjunto de proposições e a fé que nos possibilita depositar nossa confiança nelas. Eu acreditava implicitamente na existência de Deus; mas também acreditava na Presença Concreta de Cristo na Eucaristia, na eficácia dos sacramentos, na perspectiva de danação eterna e na realidade objetiva do purgatório. Contudo, não posso dizer que minha crença nessas opiniões religiosas sobre a natureza da realidade última me fizesse acreditar que a vida aqui na terra fosse boa ou benéfica. O catolicismo romano de minha infância era assustador. James Joyce mostrou-o bem em Retrato do artista quando jovem: cansei de ouvir sermões sobre o fogo do inferno. Na verdade, o inferno parecia uma realidade mais poderosa que Deus, porque era algo que eu podia apreender intelectualmente. Deus, por outro lado, era uma figura um tanto difusa, definida em abstrações intelectuais, e não em imagens. Lá pelos oito anos, tive de memorizar a seguinte resposta à pergunta do catecismo "O que é Deus?": "Deus é o Espírito Supremo, o Único que existe por Si Mesmo e infinito em todas as perfeições". Não surpreende que isso pouco significasse para mim, e devo dizer que ainda me deixa indiferente. Sempre me pareceu uma definição singularmente árida, pomposa e arrogante. Depois que escrevi este livro, no entanto, passei a achá-la também incorreta. À medida que crescia, fui compreendendo que há na religião outras coisas além do medo. Li vidas de santos, poetas metafísicos, T. S. Eliot e alguns textos mais simples dos místicos. Comecei a me emocionar com a beleza da liturgia e, embora Deus continuasse distante, senti que era possível chegar até ele e que essa visão iria transfigurar toda a realidade criada. Para isso, entrei numa ordem religiosa e, como noviça e jovem freira, aprendi muito mais sobre a fé. Dediquei-me à apologética, às Escrituras, à teologia e à história da Igreja. Mergulhei na história da vida monástica e numa minuciosa discussão da regra de minha ordem, que tínhamos de decorar. O curioso é que Deus entrava muito pouco em cada uma dessas coisas. Parecia que a atenção se concentrava em detalhes secundários e nos aspectos mais periféricos da religião. Ao rezar, lutava comigo mesma, tentando obrigar minha mente a encontrar Deus, mas ele continuou a ser um feitor severo, atento a cada uma de minhas infrações à regra, ou, ao contrário, tantalicamente ausente. Quanto mais eu lia sobre o êxtase dos santos, mais me sentia um fracasso. Eu tinha a triste consciência de que, de algum modo, havia fabricado minha parca experiência religiosa, ao trabalhar meus sentimentos e minha imaginação. Às vezes, a sensação de devoção era uma reação estética à beleza do canto gregoriano e à liturgia. Mas, na verdade, não me aconteceu nada que procedesse de uma fonte transcendente. Nunca tive um vislumbre do Deus descrito pelos profetas e místicos. Jesus Cristo, sobre quem falávamos muito mais que sobre "Deus", parecia uma figura puramente histórica, entranhada no final da Antiguidade. Também passei a ter sérias dúvidas sobre algumas doutrinas da Igreja. Como alguém pode ter certeza de que o homem Jesus era Deus encarnado? O que essa crença significa? O Novo Testamento realmente ensina a complexa - e contraditória - doutrina da Trindade, ou, como tantos outros artigos de fé, ela também foi inventada pelos teólogos, séculos após a morte de Cristo em Jerusalém? Acabei, com pesar, deixando a vida religiosa, e, uma vez livre do fardo do fracasso e da incompetência, senti minha fé em Deus esvair-se tranqüilamente. Ele na verdade jamais entrara em minha vida, apesar de todos os meus esforços nesse sentido. Agora que já não me sentia tão culpada e ansiosa a seu respeito, ele se tornou distante demais para ser real. Mas meu interesse pela religião se manteve, e fiz vários programas de televisão sobre a história dos primórdios do cristianismo e a natureza da experiência religiosa. Quanto mais me enfronhava na história da religião, mais minhas apreensões anteriores pareciam justificadas. As doutrinas que, na infância, eu aceitara sem questionar eram, na verdade, constructos humanos, elaborados ao longo do tempo. A ciência parecia ter eliminado o Deus Criador, e os estudiosos bíblicos haviam provado que Jesus jamais se proclamara divino. Sendo epiléptica, eu tinha visões que, bem sabia, eram um mero defeito neurológico: será que as visões e os êxtases dos santos também não passavam de esquisitice mental? Cada vez mais Deus parecia uma aberração, algo que a humanidade havia superado. Apesar de meus anos de freira, não acredito que minha experiência de Deus seja incomum. Minhas idéias sobre Deus se formaram na infância e não acompanharam meu crescente conhecimento de outras matérias. Abandonei meus conceitos simplistas de Papai Noel; passei a compreender as complexidades da condição humana com uma maturidade que, evidentemente, não seria possível no jardim-de-infância. Contudo, minhas primeiras e confusas idéias sobre Deus não se modificaram nem se desenvolveram. Pessoas sem meu histórico religioso também podem achar que sua idéia de Deus se formou na infância. Mais tarde na vida, deixamos de lado essas infantilidades e descartamos o Deus de nossos primeiros anos. No entanto, meu estudo da história da religião revelou que somos animais espirituais. De fato, há motivo para afirmar que o Homo sapiens é também o Homo religiosus. Homens e mulheres começaram a adorar deuses assim que se tornaram reconhecivelmente humanos; criaram religiões ao mesmo tempo que criaram obras de arte. E não só porque desejavam propiciar forças poderosas; essas crenças primitivas exprimiam a perplexidade e o mistério que parecem um componente essencial da experiência humana deste mundo belo mas aterrorizante. Como a arte, a religião constituiu uma tentativa de encontrar sentido e valor na vida, apesar do sofrimento da carne. Como qualquer outra atividade humana, a religião pode sofrer abusos - os quais, ao que tudo indica, sempre ocorreram. Ela não foi imposta a uma natureza primordialmente secular por reis e sacerdotes manipuladores, mas é inerente à humanidade. Nosso secularismo atual é uma experiência inteiramente nova, sem precedentes na história humana. Resta saber como vai funcionar. Também é verdade que nosso humanismo liberal ocidental não é espontâneo: como a apreciação de arte ou poesia, tem de ser cultivado. O próprio humanismo é uma religião sem Deus - nem todas as religiões são teístas. Nosso ideal ético secular tem suas próprias disciplinas da mente e do coração e nos fornece os meios para encontrar o sentido último da vida humana, outrora proporcionados pelas religiões mais convencionais. Quando comecei a pesquisar esta história da idéia e da experiência de Deus nos três credos monoteístas correlatos - judaísmo, cristianismo e islamismo -, esperava descobrir que Deus é apenas uma projeção das necessidades e desejos humanos. Pensava que "ele" reflete os medos e anseios da sociedade em cada etapa de seu desenvolvimento. Minhas previsões não eram de todo injustificadas, mas algumas de minhas descobertas me surpreenderam muito, e teria sido ótimo saber tudo isso trinta anos antes, quando me iniciei na vida religiosa. Teria me poupado muita ansiedade aprender - com eminentes monoteístas das três religiões - que, em vez de esperar que Deus descesse das alturas, eu deveria defini-lo para mim. Outros rabinos, padres e sufistas teriam me repreendido por supor que Deus fosse - em algum sentido - uma realidade "que está lá fora"; teriam me advertido para não esperar experimentá-lo como um fato objetivo, passível de ser descoberto pelo processo racional comum. Teriam me dito que, num sentido importante, Deus é um produto da imaginação criadora, como a poesia e a música que eu achava tão edificantes. Uns poucos monoteístas extremamente respeitados teriam me explicado, com calma e firmeza, que Deus não existe - e, no entanto, é a realidade mais importante do mundo. A história contida neste livro não é a da inefável realidade de Deus, que transcende o tempo e a transformação, mas a da maneira como homens e mulheres o têm percebido desde Abraão até hoje. A idéia humana de Deus tem uma história, já que sempre significou algo ligeiramente diferente para cada comunidade que a adotou em diversos momentos. A idéia de Deus formada numa geração por um grupo de pessoas pode não ter sentido em outra. Com efeito, a afirmação "Eu creio em Deus" não tem sentido objetivo como tal, mas, como qualquer outra afirmação, só significa alguma coisa dentro de um contexto, quando pronunciada por determinada comunidade. Por conseguinte, a palavra "Deus" não contém uma idéia imutável; ao contrário, contém todo um espectro de acepções, algumas das quais contraditórias ou até mutuamente excludentes. Se não tivesse tal flexibilidade, a noção de Deus não teria sobrevivido e se tornado uma das grandes idéias humanas. Sempre que um conceito de Deus deixou de ter sentido ou importância, foi discretamente abandonado e substituído por uma nova teologia. Um fundamentalista negaria isso, pois o fundamentalismo é anti-histórico: acredita que Abraão, Moisés e todos os profetas posteriores experimentaram seu deus exatamente como as pessoas de hoje. Contudo, basta examinar nossas três religiões para constatar que não há visão objetiva de "Deus": cada geração tem de criar a imagem de Deus que funciona para ela. A mesma constatação se aplica ao ateísmo. A declaração "Eu não creio em Deus" sempre teve um significado ligeiramente diferente em cada período da história. Os chamados "ateus" sempre negaram um determinado conceito do divino. O "Deus" rejeitado pelos ateus de hoje será o Deus dos patriarcas, o Deus dos profetas, o Deus dos filósofos, o Deus dos místicos ou o Deus dos deístas do século XVIII? Todos eles foram venerados como o Deus da Bíblia e do Corão por judeus, cristãos e muçulmanos em vários momentos de sua história. Veremos que são bastante diferentes entre si. O ateísmo muitas vezes foi um estado de transição: assim, judeus, cristãos e muçulmanos foram chamados de "ateus" por seus contemporâneos pagãos porque adotaram um conceito revolucionário de divindade e transcendência. Será o ateísmo moderno uma negação semelhante de um "Deus" que já não condiz com os problemas de nosso tempo? Apesar de sua transcendência, a religião é extremamente pragmática. Veremos que é muito mais importante uma determinada idéia de Deus funcionar do que ser lógica ou ter validade científica. Assim que perde a eficácia, é substituída - às vezes por algo radicalmente diferente. Os monoteístas do passado costumavam não se incomodar com isso porque tinham plena consciência de que suas idéias sobre Deus não eram sacrossantas, mas só podiam ser provisórias. Eram inteiramente humanas - não podiam deixar de ser - e bem distintas da Realidade indescritível que simbolizavam. Alguns desenvolveram meios bastante ousados de enfatizar essa distinção essencial. Um místico medieval chegou a dizer que essa Realidade última - erroneamente chamada de "Deus" - não era sequer mencionada na Bíblia. Ao longo da história, homens e mulheres experimentaram uma dimensão do espírito que parece transcender o mundo material. De fato, é uma característica notável da mente humana poder criar conceitos que a transcendem dessa forma. Seja qual for nossa maneira de interpretá-la, essa experiência humana de transcendência faz parte da vida. Nem todos a encaram como divina: veremos que os budistas consideram suas visões e intuições naturais à humanidade, e não procedentes de uma fonte sobrenatural. Todas as grandes religiões concordam, porém, que é impossível descrever essa transcendência por meio da linguagem conceitual corrente. Os monoteístas chamaram de "Deus" essa transcendência, mas estabeleceram importantes condições. Os judeus, por exemplo, são proibidos de pronunciar o sagrado Nome de Deus, e os muçulmanos não devem tentar representar o divino com imagens visuais. A disciplina é um lembrete de que a realidade do que chamamos "Deus" ultrapassa toda expressão humana. Esta não será uma história no sentido habitual, pois a idéia de Deus não evoluiu a partir de um ponto e avançou de modo linear até um conceito final. Funcionam dessa forma as idéias da ciência, mas não as da arte e da religião. Assim como existe apenas um certo número de temas na poesia lírica, também se têm repetido as mesmas coisas sobre Deus. Com efeito, descobriremos uma impressionante semelhança nas idéias do divino propostas por judeus, cristãos e muçulmanos. Embora achem as doutrinas cristãs da Trindade e da Encarnação quase blasfemas, judeus e muçulmanos produziram suas próprias versões dessas teologias polêmicas. Mas cada expressão desses temas universais é ligeiramente diferente, mostrando a engenhosidade e a inventividade da imaginação humana em seus esforços para manifestar sua percepção de "Deus". Como se trata de um tema bastante amplo, decidi ater-me ao Deus Único adorado por judeus, cristãos e muçulmanos, embora com idéias de religiões que se desenvolveram de maneira independente. Quaisquer que sejam nossas conclusões sobre a realidade de Deus, a história dessa idéia deve dizer-nos alguma coisa importante sobre a mente humana e a natureza de nossa aspiração. Apesar do teor secular de grande parte da sociedade ocidental, a idéia de Deus ainda afeta a vida de milhões de pessoas. Pesquisas recentes mostraram que 99% dos americanos dizem acreditar em Deus: resta saber a qual "Deus" se referem, entre os muitos em oferta. A teologia quase sempre é enfadonha e abstrata, mas a história de Deus é apaixonada e intensa. Ao contrário de algumas outras concepções da realidade última, foi originalmente seguida por lutas e tensões. Os profetas de Israel sentiram seu Deus como uma dor física que lhes torcia os membros e os enchia de raiva e euforia. Os monoteístas muitas vezes experimentavam a realidade a que chamavam de Deus num estado extremo: falam em cimos de montanha, trevas, desolação, crucificação, terror. A experiência ocidental de Deus parece particularmente traumática. Qual o motivo dessa tensão inerente? Outros monoteístas falam em luz e transfiguração. Usam imagens bastante ousadas para expressar a complexidade da realidade que experimentaram e que ia muito além da teologia ortodoxa. O recente renascimento do interesse pela mitologia talvez indique o desejo generaliza- do de uma expressão mais imaginativa da verdade religiosa. A obra do falecido estudioso americano Joseph Campbell tornou-se extremamente popular: ele explora a mitologia perene da humanidade, relacionando mitos antigos com os que ainda perduram em sociedades tradicionais. Para muitos, as três religiões monoteístas são desprovidas de mitologia e simbolismo poético. Contudo, embora os monoteístas originalmente rejeitassem os mitos de seus vizinhos pagãos, esses mitos muitas vezes voltaram a se infiltrar em sua religião. Alguns místicos viram Deus encarnado numa mulher, por exemplo. Outros falam com reverência da sexualidade de Deus e introduziram um elemento feminino no divino. Isso me leva a uma questão difícil. Porque esse Deus começou como uma divindade especificamente masculina, os monoteístas em geral se referem a "ele". Nos últimos anos, as feministas têm protestado, compreensivelmente, contra isso. Como vou registrar os pensamentos e as intuições de pessoas que chamavam Deus de "ele", usei a terminologia masculina convencional. Talvez valha a pena assinalar que o teor masculino da discussão sobre Deus é particularmente problemático em inglês. Em hebraico, árabe e francês, porém, o gênero gramatical dá ao discurso teológico uma espécie de contraponto e dialética sexuais, que proporcionam um equilíbrio muitas vezes ausente em inglês. Assim, em árabe, al-Lah (o nome supremo de Deus) é gramaticalmente masculino, mas o termo que designa a essência divina e inescrutável de Deus - al-Dhat - é feminino. Toda discussão sobre Deus tropeça em enormes dificuldades. Não obstante, todos os monoteístas são muito positivos em relação à linguagem, ao mesmo tempo que lhe negam a capacidade de expressar a realidade transcendente. O Deus dos judeus, cristãos e muçulmanos é um Deus que - de algum modo - fala. Sua Palavra é crucial nessas três religiões. A Palavra de Deus moldou a história de nossa cultura. Temos de decidir se a palavra "Deus" tem algum sentido para nós hoje. 1. NO PRINCÍPIO... No princípio, os seres humanos criaram um Deus que era a Causa Primeira de todas as coisas e o Senhor do céu e da terra. Ele não era representado por imagens e não tinha templos nem sacerdotes a seu serviço. Era excelso demais para um inadequado culto humano. Aos poucos, foi-se esmaecendo na consciência de seu povo. Distanciou-se tanto que seus adoradores decidiram que não o queriam mais. Acabaram dizendo que ele desaparecera. Esta, pelo menos, é a teoria popularizada pelo padre Wilhelm Schmidt em A origem da idéia de Deus (1912). Segundo Schmidt, houve um monoteísmo primitivo antes de homens e mulheres começarem a adorar vários deuses. Originalmente, reconheciam apenas uma Divindade Suprema, que criara o mundo e governava de longe os assuntos humanos. A crença nesse Deus Alto (às vezes chamado de Deus Céu, já que está associado ao céu) ainda é uma característica da vida religiosa de muitas tribos africanas, que anseiam por ele em suas preces e acreditam que ele as observa e punirá as más ações. Contudo, Deus está estranhamente ausente de seu cotidiano: não tem culto especial e jamais é representado em efígie. Essas tribos explicam que ele é inexprimível e não pode ser contaminado pelo mundo dos homens. Alguns dizem que ele "foi embora". De acordo com os antropólogos, esse Deus se tornou tão distante e excelso que foi substituído por espíritos menores e divindades mais acessíveis. Assim também, reza a teoria de Schmidt, nos tempos antigos o Deus Alto foi substituído pelos deuses mais atraentes dos panteões pagãos. No princípio, portanto, havia um Deus Único. Se assim é, então o monoteísmo foi uma das primeiras idéias desenvolvidas pelos seres humanos para explicar o mistério e a tragédia da vida. Também indica alguns dos problemas que tal divindade tinha de enfrentar. É impossível provar isso de um modo ou de outro. Existem muitas teorias sobre a origem da religião. Contudo, parece que criar deuses é algo que os seres humanos sempre fizeram. Quando uma idéia religiosa deixa de funcionar, simplesmente a substituem. Tais idéias desaparecem de maneira discreta, como o Deus Céu. Em nossa época, muitos diriam que o Deus adorado durante séculos por judeus, cristãos e muçulmanos se tornou tão remoto quanto o Deus Céu. Alguns até afirmaram que ele morreu. Sem dúvida parece que ele está saindo da vida de um número crescente de pessoas, sobretudo na Europa ocidental. Essas pessoas falam de um "buraco em forma de Deus" que ficou em suas consciências, onde ele estivera, porque, por mais irrelevante que pareça em certas áreas, ele desempenhou papel crucial em nossa história e é uma das maiores idéias humanas de todos os tempos. Para compreender o que estamos perdendo - se de fato ele está desaparecendo -, precisamos ver o que as pessoas faziam antes de começar a adorá-lo, que significado lhe atribuíam e como o conceberam. Para tanto, precisamos remontar ao mundo antigo do Oriente Médio, onde a idéia de nosso Deus surgiu aos poucos, cerca de 14 mil anos atrás. Um dos motivos pelos quais a religião parece irrelevante hoje em dia é que muita gente não tem mais a sensação de estar cercada pelo invisível. Nossa cultura científica nos educa para que concentremos nossa atenção no mundo físico e material que está diante de nós. Essa maneira de ver o mundo produziu grandes resultados. Uma de suas conseqüências, porém, é que nós, por assim dizer, eliminamos o senso do "espiritual" e do "santo" que impregna, em todos os níveis, a vida de sociedades mais tradicionais e que foi outrora um componente essencial da experiência humana do mundo. Nas ilhas dos Mares do Sul, chama-se essa força misteriosa de mana; alguns a percebem como uma presença ou um espírito; outros a identificam com um poder impessoal, semelhante a uma forma de radioatividade ou eletricidade. Acreditava-se que residia no chefe tribal, nas plantas, nas rochas ou nos animais. Os latinos sentiam os numina (espíritos) nas grutas sagradas; os árabes achavam que uma paisagem era povoada de djins. Naturalmente, as pessoas queriam entrar em contato com essa realidade e fazê-la trabalhar para elas, mas também queriam apenas admirá-la. Quando personalizavam as forças ocultas e as convertiam em divindades, associadas ao vento, ao sol, ao mar e às estrelas, mas com características humanas, expressavam seu senso de afinidade com o invisível e com o mundo ao redor. Para Rudolph Otto, o historiador alemão da religião que publicou seu importante livro A idéia do sagrado em 1917, esse senso do "numinoso" era fundamental para a religião. Precedia qualquer desejo de explicar a origem do mundo ou de encontrar uma base para a conduta ética. O poder numinoso atuava nos humanos de modos diferentes - tanto inspirava uma excitação selvagem, orgiástica, quanto uma calma profunda; às vezes, infundia pavor, respeito e humildade em presença da força misteriosa inerente a todo aspecto da vida. Quando começaram a criar seus mitos e a adorar seus deuses, as pessoas não estavam buscando uma explicação literal para fenômenos naturais. Com suas histórias, suas pinturas rupestres e suas esculturas simbólicas, procuravam expressar sua perplexidade e incorporar esse mistério à sua vida; ainda hoje, um desejo semelhante muitas vezes impele poetas, pintores e músicos. No período paleolítico, por exemplo, quando a agricultura estava se desenvolvendo, o culto da Deusa Mãe exprimia a percepção de que a fertilidade que transforma a vida humana era de fato sagrada. Na Europa, no Oriente Médio e na Índia, os arqueólogos encontraram esculturas que a representam como uma mulher nua e grávida. Durante séculos a Grande Mãe se manteve importante no âmbito da imaginação. Como o velho Deus Céu, foi absorvida em panteões posteriores e assumiu seu lugar entre os deuses mais antigos. Geralmente era uma das divindades mais poderosas, com certeza mais poderosa que o Deus Céu, que continuou sendo uma figura meio vaga. Chamavam-na Inana na Suméria, Ishtar na Babilônia, Anat em Canaã, Ísis no Egito e Afrodite na Grécia, e todas essas culturas criaram histórias muito semelhantes para indicar seu papel na vida espiritual das pessoas. Esses mitos não deviam ser entendidos ao pé da letra, mas eram tentativas de descrever metaforicamente uma realidade demasiado complexa e fugidia para ser expressa de outra maneira. Essas histórias dramáticas e evocativas de deuses e deusas ajudavam as pessoas a verbalizar sua percepção das forças poderosas, mas invisíveis, que as rodeavam. Parece que os antigos acreditavam que só participando dessa vida divina se tornariam humanos de verdade. A vida terrena era obviamente frágil e toldada pela mortalidade; porém, se imitassem as ações dos deuses, homens e mulheres partilhariam, em certa medida, seu poder maior e sua maior eficiência. Assim, dizia- se que os deuses ensinaram os homens a construir cidades e templos, simples cópias de suas moradas no reino divino. O mundo sagrado dos deuses - segundo o mito - não era apenas um ideal a que homens e mulheres deviam aspirar, mas o protótipo da existência humana; era o modelo ou arquétipo original da vida aqui embaixo. Acreditava-se que tudo na terra era uma réplica de alguma coisa do mundo divino - uma percepção que deu forma à mitologia, ao ritual e à organização social da maioria das culturas antigas e continua a influenciar as sociedades mais tradicionais de nossa época. No Irã antigo, por exemplo, acreditava-se que cada pessoa ou cada objeto do mundo material (getik) tinha sua contraparte no mundo da realidade sagrada (menok). É uma interpretação difícil de entendermos hoje em dia, pois vemos a autonomia e a independência como valores humanos supremos. No entanto, o famoso provérbio post coitum omne animal tristis est ainda expressa uma experiência comum: após um momento intenso e ansiosamente aguardado, muitas vezes nos parece que perdemos alguma coisa maior, que permanece além de nosso alcance. A imitação de um deus ainda é uma importante idéia religiosa: descansar no Sabbath ou lavar os pés de alguém na Quinta-Feira Santa - atos em si desprovidos de sentido - são hoje significativos e sagrados porque as pessoas acreditam que já foram praticados por Deus. Uma espiritualidade semelhante caracterizou o mundo antigo da Mesopotâmia. O vale do Tigre-Eufrates, no atual Iraque, era habitado em 4000 AEC pelo povo conhecido como sumério, que estabeleceu uma das primeiras grandes culturas do oikumene (mundo civilizado). Nas cidades de Ur, Erech e Kish, os sumérios inventaram a escrita cuneiforme, construíram as extraordinárias torres-templos chamadas zigurates e conceberam uma legislação, uma literatura e uma mitologia admiráveis. Algum tempo depois, a região foi invadida pelos acádios semitas, que adotaram a língua e a cultura da Suméria. Por volta de 2000 AEC, os amoritas conquistaram essa civilização acádio-suméria e fizeram da Babilônia sua capital. Cerca de quinhentos anos depois, os assírios se instalaram na vizinha Ashbur e acabaram por conquistar a Babilônia no século VIII AEC. Essa tradição babilônica também afetou a mitologia e a religião de Canaã, que se tornaria a Terra Prometida dos israelitas. Como outros povos antigos, os babilônios atribuíam suas conquistas culturais aos deuses, que haviam revelado o próprio estilo de vida a seus míticos ancestrais. Assim, achavam que a Babilônia era uma imagem do céu, sendo cada um de seus templos uma réplica de um palácio celeste. Anualmente, celebravam e perpetuavam essa relação com o mundo divino na grande festa do Ano-Novo, já consolidada no século VII AEC. Realizada na cidade santa da Babilônia no mês de nisan - nosso abril -, a festa entronizava solenemente o rei e confirmava seu reinado por mais um ano. Contudo, essa estabilidade política só podia durar se participasse do governo mais duradouro e eficiente dos deuses, que haviam arrancado a ordem do caos primordial quando criaram o mundo. Os onze dias santos da festa tiravam os participantes do tempo profano e os projetavam no mundo eterno dos deuses, por meio de gestos rituais. Matava-se um bode expiatório para anular o moribundo ano velho; a humilhação pública do rei e a entronização de um rei fictício representavam o caos original; uma batalha simulada reproduzia a luta dos deuses contra as forças da destruição. Esses atos simbólicos tinham, portanto, um valor sacramental; possibilitavam ao povo da Babilônia mergulhar no poder sagrado, ou mana, do qual dependia sua grande civilização. Considerava-se a cultura uma conquista frágil, que sempre poderia sucumbir às forças da desordem e da desintegração. Na tarde do quarto dia da festa, sacerdotes e cantores entravam no Santo dos Santos para recitar o Enuma Elish, o poema épico que comemorava a vitória dos deuses sobre o caos. Não era uma narrativa factual das origens físicas da vida na terra, mas uma tentativa deliberadamente simbólica de sugerir um grande mistério e liberar seu poder sagrado. Um relato literal da criação era impossível, já que ninguém presenciou esses acontecimentos inimagináveis: o mito e o símbolo eram, pois, a única maneira adequada de descrevê-los. Um breve exame do Enuma Elish nos oferece uma visão da espiritualidade que, séculos depois, deu origem a nosso Deus Criador. Embora a versão bíblica e corânica da criação assumisse uma forma muito diferente, esses estranhos mitos nunca desapareceram por completo, mas, numa data bem posterior, tornariam a entrar na história de Deus revestidos de um idioma monoteísta. [...]