Trecho do livro CRIATIVIDADE E DEPENDÊNCIA

1. Poder e espaço numa economia que se globaliza A inusitada expansão da economia mundial que caracterizou o terceiro quartel do século XX pôs em evidência duas ordens de problemas que na evolução anterior da civilização industrial haviam permanecido na sombra. A primeira concerne ao comportamento de conjunto da economia internacional: à fiabilidade dos centros de decisão responsáveis por sua coordenação, à origem e propagação de processos desestabilizadores das economias nacionais, à legitimidade do poder que exercem os agentes que se apropriam do excedente gerado pelas transações internacionais e que comandam a crescente concentração geográfica da renda e da riqueza. A segunda ordem de problemas diz respeito às conseqüências, dentro das economias nacionais, da crescente complexidade da trama de relações internacionais, tidas em conta as formas particulares de inserção no sistema de divisão internacional do trabalho. A idéia de economia mundial, ou mesmo a mais restrita de sistema capitalista global, dificilmente encontra lugar na análise econômica. A teoria dos mercados internacionais funda-se em criatividade e dependência pressupostos microeconômicos, caso especial que é da teoria do equilíbrio geral. A verdadeira ruptura com a racionalidade microeconômica, introduzida pela macroeconomia, decorre da inserção na análise de uma entidade nacional estruturada, com centros de decisão capacitados para interpretar interesses comuns, definir objetivos globais e assegurar a coordenação das iniciativas particulares em função da consecução desses objetivos. Daí os dois planos autônomos epistemológicos que servem de eixos à análise econômica: o dos agentes individuais, por definição incapacitados para modificar premeditadamente a estrutura do sistema; e o dos agregados nacionais, fundado no pressuposto de que o comportamento de determinadas amálgamas de agentes pode ser objeto de previsão e portanto de orientação. Ao introduzir um imposto ao consumo de certos bens, o Estado provoca diretamente modificação no comportamento de um grupo de agentes e no de outros grupos indiretamente.Na medida em que o comportamento desses distintos grupos pode ser previsto, dá-se por existente uma racionalidade macroeconômica. Do ponto de vista do analista microeconômico, a introdução de um imposto ao consumo surge como a modificação de um parâmetro, cujo efeito se esgota na reação do consumidor.O conhecimento da natureza do fator que modifica (intencionalmente ou não) o comportamento do consumidor - no caso a política fiscal - é essencial para que se possa introduzir o conceito de racionalidade macroeconômica, mas não tem maior significação do ponto de vista da compreensão do comportamento do agente individual, que reage em face da elevação do preço, independentemente da causa desta. A suposta identificação de dois planos de racionalidade, se facilita a apresentação nos manuais escolares do funcionamento de um sistema econômico, leva a pensar erroneamente que os agregados são efetivamente a soma de elementos homogêneos: de agentes que reagem de forma basicamente similar em face de poder e espaço numa economia que se globaliza modificações do contexto, tais como as que resultam de decisões visando a interferir no comportamento de uma "variável macroeconômica".Ainda que não explicitado, esse pressuposto existe e é falso.A elevação dos preços de um produto pode provocar reações as mais diversas: certos consumidores intensificarão a própria demanda, outros a reduzirão, e ainda outros haverá que permanecerão indiferentes. Tais diferenças qualitativas são apagadas pela soma algébrica que permite construir a variável macroeconômica. A ruptura no plano da racionalidade ocorre quando o agente está capacitado para modificar o meio em que atua, apresentando no seu comportamento um fator volitivo criador de novo contexto.O campo do possível amplia-se, e a racionalidade passa a requerer uma visão mais abrangente da realidade. Assumindo a criatividade, o agente impõe a própria vontade, consciente ou inconscientemente, àqueles que são atingidos em seus interesses pelas decisões que ele toma. Implícito na criatividade existe, portanto, um elemento de poder. O comportamento do agente que não exerce poder é simplesmente adaptativo: identificada a incidência dos fatores aleatórios, esse comportamento pode ser previsto com relativa facilidade. A faculdade de transformar o contexto em que atua eleva o agente à posição de elemento motor do sistema econômico. A interação entre os elementos motores assume formas complexas, que escapam à capacidade descritiva das variáveis macroeconômicas. Entre o agente de comportamento puramente adaptativo e aquele cujas decisões modificam o comportamento de milhares de outros agentes, ou mesmo da maioria dos membros de uma sociedade, pode-se facilmente imaginar toda uma gama de tipos. Mas, em qualquer situação concreta, não é difícil identificar os agentes, ou grupos de agentes, cujas decisões relativamente homogêneas cabe observar se se pretende compreender o comportamento de um dado sistema. Constitui, evidentemente, uma forma de poder a capacidade de iniciativa criatividade e dependência desses agentes privilegiados que modificam o contexto em que atuam ou que evitam que outros o modifiquem contra seus interesses. O poder econômico tem de comum com o poder político essa faculdade de impor a uma coletividade a visão globalizadora, sem a qual não seria possível falar de racionalidade macrossocial. A grande empresa que, isoladamente ou no quadro de um oligopólio, administra preços, condiciona os hábitos dos consumidores, modifica os mercados mediante o crédito exerce de forma inequívoca um amplo poder. Em realidade, a grande empresa planifica setorialmente uma parte da atividade de um sistema econômico, o que não implica necessariamente que ela execute diretamente ou controle totalmente a área de atividades considerada. Recursos de organização, como o regime de subcontratação, permitem conciliar um grau elevado de planejamento setorial com considerável flexibilidade no nível da execução. Por outro lado, as barreiras à entrada, que caracterizam os oligopólios, criam condições para um planejamento da atividade empresarial a médio e longo prazos dentro de margens de risco relativamente estreitas. Mas não somente a capacidade de iniciativa inovadora define o conteúdo de poder de uma decisão econômica. Decisões há que visam exatamente a limitar o poder de iniciativa de certos agentes; ou a canalizar esse poder em função de objetivos de ordem mais geral, como é o caso da estabilidade do sistema. A criação de meios de pagamento, por exemplo, resulta freqüentemente de iniciativas tomadas no plano microeconômico, mas requer uma coordenação tanto mais elaborada quanto mais importante for o papel do crédito no sistema. O mesmo caráter disciplinador têm certas decisões relacionadas com o mercado de mão-de-obra, com o uso de recursos não renováveis, com a liquidez externa etc. É a partir da identificação dos centros de onde emanam essas decisões destinadas a compatibilizar as iniciativas da multiplicidade de agentes, que exercem poder em graus distintos, que se define o perfil de um sistema econômico. A necessidade de lograr um certo grau de coerência entre as atuações desses centros coordenadores explica a presença de um centro hegemônico como elemento tutelar das atividades econômicas. O que se chama racionalidade macroeconômica não é mais do que a percepção ex-post da coerência obtida mediante o esforço coordenador desse centro hegemônico. A ação de um centro emissor de decisões coordenadoras pode esgotar-se em certo espaço geográfico ou pode confinar-se setorialmente. Mas em face da interdependência crescente das áreas geográficas de um país e do aprofundamento da divisão social do trabalho, impôs-se a necessidade de articular tais centros em função de um conjunto coerente de diretrizes. Essa unidade de orientação, referida como política econômica, foi obtida graças à emergência, a partir do século XVIII, dos modernos Estados nacionais. O problema é basicamente similar no que respeita às atividades econômicas internacionais. Estas se apresentam, inicialmente, como simples extensão das atividades das empresas. Que uma economia nacional amplie sua base de recursos naturais mediante transações externas, ou complemente seu mercado interno de forma a ter acesso à economia de escala, encontra fácil explicação no quadro da racionalidade das empresas que a constituem. Com efeito: os critérios de racionalidade de uma empresa são os mesmos, opere ela num mercado que se situa dentro do país ou noutro situado no exterior. Mas, do ponto de vista dos centros coordenadores, as relações externas introduzem elementos que contribuem para dar maior complexidade aos problemas. A empresa que exporta é paga em moeda distinta, negociada em mercado especial, cuja coordenação coloca questões delicadas. Mais ainda: as operações externas de uma empresa geram efeitos secundários que podem escapar ao poder coordenador dos centros responsáveis pela política econômica nacional. Consideremos o mercado de um produto típico qualquer. Dadas as condições conjunturais e a "forma do mercado", o preço tende a estabelecer-se favorecendo este ou aquele agente ou grupo de agentes; as transferências de renda que decorrem das oscilações desse preço não afetam de forma direta o nível da renda global. Distinto é o caso se a transação se efetua com o exterior: a oscilação no preço não somente afetará o nível global da renda interna mas terá outros efeitos macroeconômicos secundários, pois modificará a capacidade de pagamento do conjunto do sistema no exterior. Ao transacionar com o exterior, a empresa atua simultaneamente como representante de seus interesses próprios - e nisso a operação é idêntica a outra qualquer - e dos interesses do sistema econômico em que está inserida. Teoricamente, se os recursos financeiros, de mão-de-obra, técnicos e outros que a empresa utiliza estiverem recebendo a melhor aplicação (sendo pagos de acordo com as mais altas tarifas prevalentes nos mercados), a transação com o exterior trará necessariamente vantagens ao sistema econômico. Essa utilização "óptima" de recursos pode fundar-se em subsídios à exportação e barreiras à importação. Também nesse caso, a ruptura no plano de racionalidade decorre da atuação de agentes capacitados para modificar o contexto em que atua a empresa.Mas a situação pode ser distinta se a empresa está implantada em mais de um sistema econômico. Nesse caso ela tem à sua disposição recursos de poder que podem liberá-la, ainda que parcialmente, da ação constritiva exercida pelos centros coordenadores nacionais. Esse maior grau de autonomia das empresas no plano internacional dá origem a um conjunto de atividades com especificidade própria. As operações de mercado são, via de regra, transações entre agentes de poder desigual. Com efeito: a razão de ser do comércio - expressão de um sistema de divisão do trabalho - está na criação de um excedente cuja apropriação não se funda em nenhuma lei natural. As formas "imperfeitas" de mercado a que se refere o economista não são outra coisa senão um eufemismo para descrever o resultado ex-post da imposição da vontade de certos agentes nessa apropriação. Posto que todos os mercados são de alguma forma "imperfeitos", as atividades de intercâmbio engendram necessariamente um processo de concentração de riqueza e poder. Daí a tendência estrutural, observada desde os primórdios do capitalismo industrial, para a formação de grandes empresas. Muitos observadores inferiram erroneamente dessa observação que as pequenas empresas tenderiam a desaparecer. Mas a experiência demonstraria que elas são insubstituíveis no exercício de importantes funções: sem as pequenas empresas o sistema capitalista perderia consideravelmente não só em flexibilidade mas também em inventividade e iniciativa. Outro traço marcante da evolução do capitalismo industrial tem sido a elevação do salário real, a qual acompanha o aumento da dotação de capital por trabalhador, contrapartida da tendência estrutural à escassez relativa de mão-de-obra nos sistemas de mais avançada acumulação. Em uma época de tecnologia laborintensive, a orientação do potencial acumulativo para o sistema produtivo teria de engendrar pressão nos mercados de mão-de-obra. As migrações entre países, o aumento da taxa de crescimento vegetativo de importantes grupos populacionais, a drenagem da formidável reserva de mão-de-obra que eram as zonas rurais, a integração das mulheres ao mercado de trabalho e, acima de tudo, a orientação dada ao progresso técnico, no sentido de poupar mão-de-obra, não impediriam que, por toda parte onde, no século XIX, se implantou solidamente o capitalismo industrial, ocorresse uma notória elevação do salário real da massa trabalhadora. Essa elevação variou de região para região, não só em função da rapidez do processo acumulativo mas também da incidência de outros fatores, tais como a abundância relativa de recursos naturais e o grau de organização da massa trabalhadora. Também interferiram fatores de ordem cultural e histórica, que inclusive explicam as disparidades nos padrões de remuneração do trabalho entre profissões e atividades. Sem embargo dessas disparidades, permanece o fato fundamental de que a taxa do salário médio real cresceu e quase sempre acompanhou o aumento da produtividade média do trabalho. Contudo, se a rápida acumulação certamente constitui causa necessária dos aumentos da remuneração do trabalhador, seria errôneo considerá-la como sua causa eficiente. Dada a formidável concentração do poder econômico, que conduz às sofisticadas formas de controle dos mercados que vieram a prevalecer, sem a organização das massas trabalhadoras e a combatividade que historicamente demonstraram, a evolução do capitalismo industrial muito provavelmente teria seguido uma linha de maior concentração social da renda, possivelmente combinada com uma mais vigorosa expansão externa, ou mais amplos gastos públicos de prestígio, agressão externa ou coisa similar. O que veio a prevalecer como sociedade nos países de capitalismo industrial não constituiu uma necessidade, e sim uma possibilidade histórica. E se essa possibilidade se concretizou, foi em grande parte graças ao poder que progressivamente exerceram as organizações das grandes maiorias sociais que vivem de vender no mercado sua capacidade de trabalho. Portanto, na forma histórica que assumiu, o capitalismo industrial apresenta dois traços relevantes: a) grande concentração do poder econômico; e b) organização das massas assalariadas de elevada eficácia. A concentração do poder econômico, longe de levar à "espoliação das massas", como parecera aos primeiros teóricos do capitalismo monopolista, tendeu a transformar-se em força estimuladora da acumulação mediante a redução dos riscos e da instabilidade. Se a substituição dos mercados atomizados por estruturas empresariais, que se apóiam no planejamento a médio e longo prazos, favorece a intensificação da acumulação e o aprofundamento de seu horizonte no tempo, também é verdade que a maior estabilidade do mercado de mão-de-obra, que daí resulta, permite às organizações de trabalhadores aumentarem o seu poder combativo. A transição do chamado sistema de mercado atomizado para o capitalismo organizado contemporâneo teria necessariamente repercussões nos centros coordenadores das atividades econômicas e na configuração geral das estruturas de poder. Praticamente em todos os setores de atividade existem empresas ou grupos razoavelmente estruturados de empresas cujo comportamento pesa globalmente sobre o sistema. O mesmo se pode dizer com respeito às organizações sindicais. Dessa forma, o conteúdo político das decisões econômicas, que permanecia encoberto nos mercados atomizados, torna-se evidente, bem como as implicações sociais da orientação que adotam os centros coordenadores. No capitalismo organizado já não faz sentido a ideologia segundo a qual a atividade dos centros coordenadores deve ser uma prolongação da "mão invisível" dos mercados atomizados. O poder político - concebido como capaz de modificar o comportamento de amplos grupos sociais - configura-se como uma estrutura complexa na qual as instituições que formam o Estado interagem com os grupos que dominam o processo de acumulação e com as organizações sociais capacitadas para interferir de forma significativa na distribuição da renda. À medida que amplia e diversifica sua esfera de ação, o Estado contribui para aumentar a complexidade do sistema de relações sociais sobre o qual atua, posto que ele mesmo dá origem a estratos sociais com interesses próprios. Se deixamos de lado a visão economicista do capitalismo industrial como simples forma de organização da produção e o observamos como sistema de organização social, captamos sem dificuldade o real significado da considerável concentração de poder que hoje o caracteriza. É desse ângulo que se torna plenamente visível a vertiginosa evolução nele ocorrida em menos de um século. A grande empresa deve ser inicialmente observada como manifestação de condensação de poder, graças à qual meios consideráveis - recursos financeiros, acesso à tecnologia, controle da informação, privilégios de mercados, alianças com outros grupos que igualmente exercem poder - são submetidos a uma unidade de comando e aplicados com unidade de propósito. Só secundariamente cabe observá-la como concentração de riqueza, pois a propriedade de seus ativos pode estar dividida entre milhões de indivíduos e/ou instituições cujos objetivos não são necessariamente convergentes, e mesmo ser "coletiva", ou seja, de coletividades ou do Estado. Em síntese: a grande empresa é um conjunto organizado hierarquicamente de relações sociais que é posto a serviço de uma vontade programada para condicionar o comportamento de segmentos da sociedade. Essa concentração de poder sob a forma de grandes empresas ocorreu simultaneamente com a ampliação das bases de sustentação do Estado, cuja representatividade estendeu-se a setores crescentes da sociedade. Do antigo voto censitário, que limitava o corpo eleitoral a uma fração privilegiada da sociedade, marchou- se decididamente para um efetivo regime de sufrágio universal. A essa evolução deve-se o desdobramento da esfera de ação do Estado, que se transformou em instrumento provedor de múltiplos serviços de interesse coletivo, particularmente no campo de assistência e da previdência sociais. Parte considerável do produto social passou a ter sua aplicação final definida pelo Estado, cuja orientação tenderia a influenciar decisivamente a própria evolução social. Ora, à medida que as grandes empresas se substituíram aos mercados, assumindo a administração dos preços, os centros coordenadores controlados pelo Estado tiveram seu campo de ação mais rigidamente delimitado. O planejamento setorial, em que se antecipam necessariamente essas empresas, restringe o campo de iniciativa do Estado e muitas vezes compromete a aplicação dos recursos de que este dispõe. Daí que as próprias diretrizes da política econômica surjam como motivo de disputa entre as grandes empresas e o Estado, na medida em que este reflete as aspirações de grupos mais amplos da sociedade. Destarte, o capitalismo industrial é uma forma de organização social cujo traço dominante é a complexidade da estrutura de poder, na qual eficácia e legitimidade competem em múltiplos planos. A capacidade de iniciativa permanece como o fator estratégico, pois a reprodução da estrutura de privilégios que caracteriza o sistema requer a transformação contínua deste. Esta a razão pela qual, não obstante a formidável diversificação da ação do Estado, as grandes empresas ocupam posição predominante: a elas corresponde o máximo de iniciativas no campo da acumulação e da orientação da criatividade. [...]