Prólogo Numa fria manhã de janeiro, quando Jaya tinha cinco anos de idade, seu pai insistiu que ela o acompanhasse à selva. A maarâni protestou. O marajá calou-a. "Você mima demais os seus filhos. Não deixou os pés de Tikka tocarem o chão até ele ter idade para montar a cavalo. Agora está fazendo a mesma coisa com a menina." Debaixo do véu, a maarâni estremeceu, preocupada. O príncipe da coroa de Balmer, conhecido por todo mundo como Tikka, era um menino forte, de nove anos, com a pele clara da mãe e os olhos pretos e duros do pai. Tikka ouviu respeitosamente o sermão da mãe contra a prática de tiro ao alvo que deixava os pátios do Forte cobertos de pombos mortos. Minutos depois, a maarâni ouvia tiros e virava, meio aflita, meio orgulhosa, para as suas acompanhantes: "O que se pode fazer com esse menino que tanto gosta de armas? É o sangue rajput". A irmã mais nova de Tikka, por outro lado, era uma criança tranqüila que tinha herdado os olhos verdes da maarâni e a pele escura do pai. A maarâni sempre se perguntava se aquela pele escura viria a criar problemas quando chegasse a hora de arrumar casamento para Jaya. Preocupava-se também com o temperamento de Jaya. À noite, quando a maarâni desembrulhava pilhas de frágeis miniaturas para mostrar aos filhos os retratos de seus ancestrais, Tikka sempre pedia para ver cenas de batalha. Ele adorava as velhas armas rajput, os grandes arcos e as perigosas lanças curtas que se abriam como tesouras dentro da barriga de um homem. Mas Jaya olhava em silêncio as pinturas estranhas, quase místicas, nas quais a figura de um cavalo era composta por árvores, montanhas e reis, e a maarâni não sabia o que se passava por trás dos grandes olhos verdes da filha. Duas horas antes do amanhecer, o marajá Jai Singh puxou a filha excitada para sua sela, esbravejou quando a saia comprida da menina enganchou no cabeço da sela, enquanto soldados da Cavalaria Doméstica, rifles ao ombro, dominavam as rédeas de seus cavalos bravios, projetando estranhas sombras no cascalho diante dos estábulos. Jaya acomodou-se entre os braços do pai, o cinto de balas a que não estava acostumada pressionando suas costas. Alguém enrolou uma manta de algodão em torno dela. Num metralhar de cascos em meio ao qual Jaya ouvia o som das tornozeleiras quando suas pernas curtas batiam na barriga do cavalo do pai, desceram as rampas do Forte Balmer. A cidade abaixo do Forte estava silenciosa. Poucos lampiões nos templos à beira do lago mostravam que aqui e ali um sacerdote estava acordando. O ruído metálico das ferraduras nas ruas calçadas punha os cachorros a latir, e vozes iradas das janelas apagadas gritavam para eles se calarem. Depois, estavam no campo aberto, o prado à esquerda, a plana escuridão do lago Jalsa à direita. Os cavaleiros cruzavam o escuro à luz das lanternas que balançavam nas lanças que levavam. O ritmo constante do cavalo do pai embalou Jaya e ela adormeceu. Quando acordou, camponeses andavam pelos campos atrás de búfalos negros a puxar arados de madeira e a fumaça das fogueiras de estrume subia acima dos muros de barro das aldeias. Uma fila de camelos passou perto, os pés acolchoados sem fazer nenhum som na estrada. Homens cobertos em rústicos xales balançavam em cima de suas costas. Os sonolentos pastores de camelos despertaram num susto quando dois shikaris, caçadores reais, galoparam até o chefe. "Novidades?", gritou o marajá. "Pantera, hukam ! Uns dez, onze quilômetros selva adentro." "É das grandes, hukam. Melhor não levar a princesa." Eles viraram os cavalos atrás de Jai Singh quando os cavaleiros se aproximaram dos elefantes que esperavam numa aldeia à beira da selva. O marajá Jai Singh desmontou, olhou um grupo de mulheres da aldeia com os rostos velados. "Tomem conta da menina, filhas. Mando buscar depois." Cercada pelas mulheres arrulhantes que beliscavam suas faces e se deslumbravam com seus olhos verdes, Jaya não notou a entourage do pai montar os elefantes que estavam à espera. As mulheres dispersaram, e um círculo de crianças da aldeia avaliou Jaya com olhos delineados por kohl , esperando para ver o que ia acontecer com aquela bai-sa, ou irmã real, do Forte Balmer. Um menino de uns dez anos, talvez, perguntou: "Bai-sa, você já bebeu leite de vaca?". "Claro que já. Toda criança bebe leite de vaca." "Mas você deve beber num copão de ouro, bai-sa." "Não, não bebo", Jaya respondeu. "Tenho um copo de vidro da Inglaterra com a figura de um soldado vermelho." "Mesmo assim, é um copo de vidro. Quer experimentar do nosso jeito?" Uma vaca estava mascando cana-de-açúcar ao lado de uma árvore. O menino esgueirou-se para baixo da vaca, puxando Jaya com ele. Jaya agachouse, obediente, a cabeça apoiada na barriga macia da vaca. O menino apertou os úberes cheios, dirigindo um jato de leite morno a seu cabelo e olhos, e as crianças reunidas urraram de prazer. As mulheres da aldeia abriram caminho entre as crianças. Vendo Jaya coberta de lama e leite, as mulheres puxaram-lhes as orelhas, mortificadas. "O que o marajá vai dizer quando encontrar a filha assim?", gritaram. "Era só brincadeira", o menino gemeu. "Ela queria experimentar." Pulseiras de marfim tiniram quando as mulheres bateram nas crianças. "O que o durbar vai dizer?" "Selvagens! Isso é que vocês são!" Tikka veio a passo pelo meio da multidão de crianças chorosas. No súbito silêncio, as mulheres tentavam limpar Jaya com seus véus. Tikka piscou os olhos para o menino de dez anos, antes de olhar enojado para a irmã. "Melhor você parar de chorar e subir no elefante. Papai pegou a pantera." Amarrada às costas do elefante, havia uma howdah, uma caixa de lona com as laterais altas o bastante para um homem adulto poder ficar de pé e apontar uma arma. Jaya e Tikka treparam dos banquinhos para a howdah, levantados pela cintura pelos shikaris, o mahout, condutor do elefante, montado em seu pescoço, esfregando a orelha do elefante com uma vareta de aço. "De mansinho, minha querida. Pise leve como uma dançarina, minha graça", entoava o mahout. O elefante saiu da estrada, arrancou brotos de plantas e bateu nos joelhos para tirar a terra, antes de enrolá-los com um estalido de caules no buraco macio de sua boca. "Leve, leve, minha amada." O elefante batia as orelhas com o sussurro do mahout, e o som daquelas enormes orelhas roçando nas folhas era como o som de velas se enchendo de ar ou de asas de algum pássaro poderoso prestes a alçar vôo. A umidade da noite não tinha evaporado ainda. O sol cintilava nas teias de aranha estendidas entre os arbustos espinhosos onde uma manada de veados azuis pastava. Jaya gritou, excitada. A manada olhou um segundo, depois, num farfalhar de folhas e ramos pisados, partiu em disparada. "Na selva não se fala", Tikka sussurrou. "Assusta os bichos. E se um tigre escuta, ele ataca." À distância, um animal rugiu. Um elefante barriu de medo. Javalis silvestres guincharam e saíram correndo do caminho do elefante, as presas brilhando brancas nos focinhos negros peludos. Os rugidos ficaram mais fortes e Jaya se agachou no fundo da howdah, agarrada aos tornozelos do irmão. Tikka puxou suas tranças. "De pé, Jaya. É a maior pantera que você vai ver na vida!" Debaixo dos golpes insistentes da vareta de aço do mahout, o elefante chegou à posição do marajá, mas Jaya continuava teimosamente agarrada aos tornozelos do irmão, olhos fechados de pânico. Só quando o shikari a levantou foi que abriu os olhos, aterrorizada de poder cair da howdah oscilante em cima do elefante agitado. Entre as moitas, ela viu o pai e seus homens na frente de uma grande pantera negra acorrentada a uma árvore-sal. Corria sangue do pescoço da pantera quando ela saltava contra os elos de aço da corrente e rugidos furiosos enchiam a selva. Jaya agarrou-se ao shikari, olhos bem fechados, mesmo quando sentiu ser posta nos braços de alguém e levada para cada vez mais perto daquele som. Quando ousou abrir os olhos, estava parada a menos de trinta centímetros dos botes do animal. Saliva e gotas de sangue caíram em sua saia. Tentou se esconder atrás das pernas do pai. O marajá Jai Singh soltou seus dedos e a forçou a encarar a pantera. Teve a impressão de que ficaram horas parados na frente da árvore-sal, seu pai, seu irmão e ela, quase ao alcance das garras da pantera enfurecida. Depois de um longo momento, o terror de Jaya cedeu. Era como se tivesse perdido a capacidade de sentir medo e estivesse observando os fatos de algum distante ponto privilegiado onde não era ameaçada. Chegou até a perguntar a si mesma se a árvore-sal não estaria tentando consolar a pantera ao derrubar flores vermelhas, como lenços de seda, sobre as costas do animal capturado. O marajá pegou sua mão e voltaram para os shikaris que esperavam. Ele pousou a outra mão no ombro de Tikka. "Um soberano é um homem, e homens sempre têm medo. Um homem não pode governar se não enfrentar seu próprio medo." Jaya era nova demais para entender que o marajá Jai Singh estava ensinando a seus filhos a Rajniti, a filosofia dos monarcas, como tinha sido ensinada para um príncipe após o outro da Casa de Balmer. Só quando ela própria tornou-se soberana foi que compreendeu que o marajá ensinava a seus filhos as tradições da coragem quando ele próprio era um homem amedrontado. LIVRO UM BALMER 1. 1897 A terra onde Jaya nasceu ficava além do deserto conhecido como Morada da Morte. Mesmo naquele ano, três apenas antes do começo do novo século, a pequena tribo de bardos que seguia rumo ao reino de Balmer viu muitos augúrios de morte. Açudes e poços de aldeia estavam secos. Os lagos artificiais que banhavam os reinos do grande deserto, Jodhpur, Bikaner, Jaisalmer, estavam cobertos de limo verde, o nível tão baixo que os alicerces dos palácios aquáticos apareciam, cercados de crocodilos de escamas marrons modorrando na água rasa. Havia pouca comida para desperdiçar com os contadores de histórias que convergiam para as praças de aldeia ao anoitecer para narrar suas lendas em troca de um lugar para descansar, e mesmo assim eles se juntavam em caravana. Por todo Rajputana era sabido que o marajá de Balmer esperava o nascimento de seu primeiro filho. Famílias em busca de trabalho sazonal, outros contadores de histórias, latoeiros e acrobatas, gritavam para os bardos: "Vão a Balmer para o nascimento?". Ao saberem que sim, agarravam seus touros sonolentos pelos chifres pintados de vermelhão e gritavam: "Hat! Hat!", apressando os animais para a estrada. A certo momento, um grupo de sadhus cobertos de cinza deitados nus num pavilhão desmoronado construído por um rei esquecido sacudiu seus tridentes e se amontoou num lotado carro puxado a camelo. Às vezes, as carroças eram jogadas para a beira da estrada pelas carruagens engalanadas dos rajás que viviam nas fortificações de pedra que pontilhavam os negros montes sem árvores. Quando o sol estava no zênite, as fortificações pareciam respirar, se expandindo e contraindo no mormaço, como se os montes fossem maciços e pensativos lagartos do tempo da mitologia e o movimento das muralhas de pedra o preguiçoso vibrar de suas espinhas dorsais. Às vezes, a caravana se juntava aos cortejos de ministros da corte viajando a Balmer com mensagens secretas de seus marajás para o soberano de Balmer, desafiando as leis do Império Britânico. Então o elefante ia na frente, ladeado por unidades de cavalaria portando bandeiras. Quando os cortejos avançavam, uma moeda de prata, gravada com o símbolo do marajá de um lado e um perfil da imperatriz inglesa do outro era presenteada a cada membro da caravana, até às crianças. A selva de arbustos dava lugar a dunas de areia. Ao entardecer, o escuro súbito trazia uma fresca febril à paisagem vazia. Os viajantes tocavam seus animais emaciados para chegarem ao abrigo de aldeias cada vez mais distantes umas das outras antes que as mulheres-demônio, que tinham morrido ao dar à luz, viessem uivando pela noite em busca de filhos para substituir os bebês natimortos que nunca tinham amamentado. Agora, a caravana era tão grande que nenhuma aldeia conseguia abrigála, e os viajantes armavam seus próprios acampamentos. Enquanto os filhos dormiam em berços de pano amarrados entre os postes de latão dos carros de camelos, os bardos e os genealogistas ciganos da Índia monárquica falavam noite adentro, trocando notícias dos reinos rajput. "Nossos soberanos estão se preparando para viajar a Londres para o Jubileu de Diamante da Viúva Branca, a imperatriz Victoria." "Os cortejos e presentes de que vão precisar para impressionar o Império Britânico colocarão em risco os nossos tesouros." "Pelo menos em Londres podem falar cara a cara. A Grã-Bretanha ainda tem medo de conspiração e não permite que os reis se encontrem a não ser na presença de ingleses." "Mas os astrólogos da corte estão lembrando aos marajás que a vem a cada vinte anos desde a ascensão do poder britânico." "E vinte anos já passaram desde a última fome." Os bardos sacudiram a cabeça, descartando a astrologia diante da realidade que enxergaram na estrada. Tinham visto aldeões rezando pela chuva. Os fazendeiros já sabiam. Outra fome havia começado.