Parte I A QUEDA DO COMUNISMO 1. A morte de um americano Os sinos dobraram por quinze minutos, ininterruptamente, enquanto o caixão era carregado até o interior da catedral de Santa Domência. À frente do cortejo ia o patriarca Máximo, chefe da Igreja ortodoxa búlgara, e, atrás dele, vários milhares de cidadãos enlutados.Parecia que le tout Sofia se fizera presente naquela tempestuosa e fria sexta-feira de março de 2003 para prestar as últimas homenagens a Ilya Pavlov, o homem que definira, para eles, a década de 1990. Terminada a cerimônia, trinta irmãos da Maçonaria Escocesa Antiga e Aceita, a loja a que pertencia o amado defunto, cerraram as portas da catedral. Vestindo ternos pretos lustrosos e abraçando buquês de flores brancas, os homens executaram um ritual secreto para apressar "a chegada do Irmão Pavlov ao Eterno Oriente". Sua vestimenta solene, suas luvas e o símbolo da loja maçônica então "acompanharam o Irmão Pavlov até o Grande Arquiteto do Universo". Um ministro do gabinete trouxe uma mensagem do premiê Simeão de Saxe-Coburgo-Gota. Depois que seu partido obteve vitória consagradora nas eleições de 2001, o esbelto e elegante Simeão, que havia sido rei da Bulgária, abriu mão de seu pleito ao trono para tirar o país e o governo do lamaçal em que se haviam metido no fim da década de 1990. "Lembraremos Ilya Pavlov", dizia o telegrama de condolências do rei,"porque ele criou empregos para muitas famílias numa época muito difícil para o povo. Lembraremos dele por seu espírito empreendedor e por sua energia extraordinária." Parlamentares, artistas, chefões de grandes petrolíferas e dos bancos mais importantes, duas ex-misses Bulgária, o time inteiro de futebol do Levski (para os búlgaros,algo como uma fusão do Manchester United com os Yankees), todos se juntaram à enlutada família de Pavlov.Ali também estavam figuras proeminentes de um outro grupo ligado a ele, mais conhecidas entre os búlgaros por seus apelidos: o "Caveira", o "Juiz","Dimi, o Russo", e o "Doutor". A ausência mais notória era a do embaixador americano na Bulgária, Jim Pardew. A embaixada fizera investigações de urgência uma semana antes, no dia 7 de março, quando uma única bala disparada por um franco-atirador derrubou Ilya Pavlov, às 7h45 da noite, no momento em que ele falava ao telefone na porta de sua megacorporação,a Multigroup. A morte de um cidadão americano tão rico e eminente em território estrangeiro era, naturalmente, motivo de grande apreensão para os Estados Unidos e seus representantes. Pavlov jamais chegaria à Casa Branca, pois não nascera nos Estados Unidos. Mesmo assim, era soldado orgulhoso de um poderoso exército, o dos imigrantes naturalizados americanos. A única coisa estranha envolvendo a aspiração de Pavlov à cidadania americana era o fato de que dois embaixadores consecutivos dos Estados Unidos em Sófia se opusessem com veemência a ela. Os dois diplomatas haviam feito exposições de motivos, em Washington, para que Pavlov nem sequer fosse autorizado a entrar no país, que dirá com cidadania americana. Mas Pavlov também tinha aliados nos Estados Unidos. A despeito de uma investigação do FBI sobre suas atividades pregressas, sem falar no aumento das preocupações relacionadas a segurança depois dos atentados de 11 de setembro, Pavlov obteve seu passaporte americano. Nas décadas de 1970 e 1980, a Bulgária só perdia para a Romênia e para a Albânia na categoria de lugar mais miserável e deprimente para viver na Europa. Lembro-me de perambular pelas ruas enevoadas de Sófia, vagando de uma tonalidade a outra de cinza em busca de um restaurante ou café onde pudesse aliviar o tédio. Como estrangeiro e jornalista, eu tinha direito a um pacote especial de hospitalidade que invariavelmente incluía ao menos uma dupla de agentes do DS (o Comitê de Segurança do Estado, a KGB da Bulgária) encarregados de seguir todos os meus passos.A presença deles garantia que, nas raras ocasiões em que eu convencia gente comum a falar comigo,podia esperar, no máximo, um pouco de conversa fiada sobre o tempo. Aos poucos, no entanto, comecei a perceber que por trás daquele conformismo moribundo havia turbilhões de atividade, alguns bastante vigorosos, que alimentavam estilos de vida mais interessantes - não o penoso martírio dos intelectuais e dissidentes que lutavam corajosamente contra as injustiças do comunismo, mas o de gente que, por acidente ou pura sorte, descobria maneiras de tirar proveito de certas particularidades do sistema. Quando era adolescente, nos anos 1970, o jovem Ilya Pavlov possuía uma habilidade particular que o distinguia da maioria de seus colegas - era um lutador talentoso e chegou mesmo a ser campeão búlgaro em sua categoria. Fosse muito inteligente ou um bom guitarrista de rock, Ilya podia ter se metido em encrencas, já que esses talentos geralmente levavam os jovens a uma existência de rebelião e desobediência. Mas, na Bulgária, os grandes heróis não eram jogadores de futebol nem tenistas - eram os lutadores. Antes da derrocada do comunismo, o levantamento de peso, a luta livre e o boxe eram esportes dominados pelos países do bloco europeu oriental, que rotineiramente bombeavam galões de esteróides em seus mais promissores atletas, homens e mulheres, em prol da glória olímpica. Profissional em tudo, menos no nome, um bom lutador tinha direito a aclamação pública (e benefícios adicionais, como sexo casual sempre que desejasse), dinheiro, um apartamento e um carro (os dois últimos itens inalcançáveis para a maioria, exceto para os jovens de maior sucesso). Pavlov possivelmente vislumbrou tudo isso quando decidiu ingressar no Instituto de Fisiculturismo de Sófia, o criadouro búlgaro de elite para futuros campeões olímpicos. Ilya contava ainda com outra vantagem: seu pai dirigia em Sófia um bar e restaurante onde o garoto durão trabalhava. "Naquela época, ser barman ou garçom dava ao sujeito um status considerável", explica Emil Kyulev, um dos contemporâneos de Ilya no Instituto. "Ele andava com um bando de valentões, era admirado pelas pessoas. Foi assim, também, que entrou em contato com os serviços de segurança." Para um touro jovem e sem instrução como Pavlov, o DS não era o instrumento orwelliano repressivo imaginado pelos ocidentais.Para muitos búlgaros, era um caminho para obter status e influência. Se, como muitos afirmam, Pavlov trabalhava como informante para o DS, podia contar com recompensas. A mais importante delas veio na forma de uma bela jovem,Toni Chergelanova, que aceitou seu pedido de casamento em 1982. O pai da garota era um partido ainda melhor que ela: Petur Chergelanov, que trabalhava para o Comitê de Segurança. Por meio do casamento, Ilya ingressara na realeza da polícia secreta. O Comitê de Segurança do Estado da Bulgária era particularmente estimado por seus mentores soviéticos por sua eficiência e confiabilidade. Quase sempre invisível, não desapontou nas ocasiões em que atraiu a atenção do público - o DS arquitetou o assassinato do dissidente búlgaro Georgi Markov, mortalmente ferido pela ponta envenenada de um guarda-chuva ao cruzar a ponte de Waterloo, em 1978, quando trabalhava para a BBC em Londres. A eliminação de inimigos do Estado ao estilo Le Carré era só a cereja do bolo. A atividade mais importante e lucrativa do serviço secreto búlgaro era o contrabando - de drogas, de armas e de alta tecnologia. "O contrabando é nossa herança cultural", disse-me Ivan Krastev, o mais destacado cientista político da Bulgária. "Nosso território sempre se acomodou entre poderosas ideologias, entre a Igreja ortodoxa e o catolicismo romano, entre o islã e a cristandade, entre o capitalismo e o comunismo. Impérios transbordantes de hostilidade e desconfiança uns dos outros,mas também terra de muita gente disposta a cruzar fronteiras proibidas para fazer negócios. Nos Bálcãs, sabemos como fazer essas fronteiras desaparecerem. Sabemos cruzar o mar mais violento, vencer a montanha mais ameaçadora. Conhecemos todas as passagens secretas e, na falta delas, sabemos quanto custa cada guarda da fronteira." Fortificado pelo poder do Estado totalitário, o DS tirou o máximo proveito dessa tradição romântica. Ainda na década de 1960, criou uma empresa, a Kintex, que detinha o monopólio da exportação de armas da Bulgária e buscava mercados em regiões conturbadas como o Oriente Médio e a África.No fim da década de 1970, o DS expandiu a Kintex com a criação de um departamento de "trânsito secreto". Sua principal função era contrabandear armas para grupos africanos insurgentes. Em pouco tempo,porém, seus canais já serviam também para tráfico ilegal de pessoas,de drogas e até contrabando de obras de arte e antigüidades. Outras empresas especializaram-se na venda de Kaptagon, uma anfetamina fabricada na Bulgária, para o Oriente Médio, onde era muito popular devido a supostas propriedades afrodisíacas. Na direção oposta,cerca de 80% da heroína destinada ao mercado europeu ocidental entrava na Bulgária pela Turquia, cruzando o posto de fronteira de Kapetan Andreevo,e dali chegava às mãos do DS.Com isso,a Bulgária não apenas estava ganhando muito dinheiro: o negócio também ajudava a enfraquecer a Europa Ocidental capitalista, inundandoa de heroína barata. O DS garantiu as condições para que a Bulgária assumisse um papel central na distribuição de bens e serviços ilícitos para a Europa,o Oriente Médio e a Ásia Central.Mas estava determinado a impedir que outros entrassem no ramo. A polícia de fronteira da Bulgária era implacável, e havia punições severas para quem fosse apanhado tentando contrabandear drogas ou armas sem autorização. Tamanha determinação nada tinha a ver com um suposto empenho em fazer valer o império da lei (um conceito que era anátema para os serviços de segurança): o objetivo era fortalecer o monopólio econômico do DS. Seguindo os ditames do Comecon, a inepta organização de cooperação econômica do bloco soviético encarregada da "divisão do trabalho socialista internacional", a Bulgária deveria ser o coração da indústria eletrônica, enquanto Moscou obrigava a Tchecoslováquia a se concentrar na produção de turbinas para usinas elétricas, e a Polônia, a produzir fertilizantes. Em conseqüência disso, no fim da década de 1970, a Bulgária (a mais rural de todas as economias do Leste Europeu) se transformou num improvável centro de produção de computadores e disquetes.Nascia o Pravets - o primeiro PC socialista europeu,produzido (não por coincidência) na cidadezinha de mesmo nome,localizada a 40 quilômetros a nordeste de Sófia,onde nascera Todor Zhivkov, o perene ditador da Bulgária. Moscou encarregara o DS de driblar o CoCom - o órgão regulador criado pelos Estados Unidos, com participação da Europa Ocidental e do Japão, para impedir que tecnologia secreta com potencial militar atravessasse a Cortina de Ferro e chegasse à União Soviética. O DS convocou alguns dos mais experientes cientistas búlgaros com o objetivo de fornecer à Bulgária e à União Soviética as tecnologias avançadas às quais o CoCom impusera embargos. Dois anos mais tarde, montou no exterior empresas clandestinas cujas receitas com venda ilegal de tecnologia chegavam à casa do bilhão de dólares. A mais importante empresa do esquema era a Memory Disks Equipment (conhecida como DZU), na qual a Bulgária reuniu uma talentosa equipe de engenheiros especializados em software e hardware. Era um negócio lucrativo."De acordo com estimativas de nossos clientes",admitiria mais tarde um ex-chefe do serviço de inteligência, "entre 1981 e 1986, o lucro anual com as informações secretas de ciência e tecnologia chegava a 580 milhões de dólares - quer dizer, esse seria o custo dessas tecnologias caso tivéssemos de comprá-las." Esses três ramos de atividade - drogas, armas e alta tecnologia - tinham enorme valor estratégico para o Estado búlgaro. No comando das operações de contrabando estava o serviço de contra-informação militar, a 2a Direção do DS, que controlava todas as fronteiras da Bulgária. E o chefe do serviço de contrainformação militar era o general Petur Chergelanov, o sogro de Ilya Pavlov. Em 1986,quando Mikhail Gorbachev consolidou sua autoridade em Moscou, os líderes ocidentais não sabiam que o domínio da União Soviética sobre seus aliados europeus orientais estava chegando ao fim.Mas o Comitê de Segurança do Estado da Bulgária não tinha ilusões quanto ao sistema que policiava. Os chefões do DS, observadores experimentados da cena soviética, calculavam que o comunismo não duraria muito mais tempo. Pressionado por Gorbachev, o Partido Comunista búlgaro aprovou o decreto 56, que da noite para o dia autorizava a abertura de empresas privadas e permitia a criação de sociedades anônimas. No partido, muitos membros de linha dura ficaram chocados com o que lhes parecia uma insidiosa infiltração capitalista no sistema. Mas os serviços de segurança, habituados a subordinar a ideologia ao amor pelo poder, aceitaram com tranqüilidade o decreto. "Quando consultei os registros comerciais de 1986, fiquei impressionado", explicou-me Stanimir Vaglenov, jornalista búlgaro especializado em temas de corrupção e crime organizado."Os serviços de segurança abriram sua primeira empresa uma semana depois que o decreto 56 entrou em vigor. E,só no primeiro ano, os integrantes do DS fundaram 90% das novas empresas de sociedade anônima!" Enquanto a sofrida sociedade búlgara continuava a ser alimentada com a retórica do futuro socialista brilhante e eterno, os mais graduados representantes do regime estavam aprendendo a ganhar dinheiro. Muito dinheiro. Depois de passar 45 anos explicando as perversidades teóricas do capitalismo aos cidadãos búlgaros comuns, a polícia secreta agora estava ávida por demonstrar todas aquelas perversidades na prática. Em 1988, um ano antes da queda do comunismo, Ilya Pavlov criou a Multiart, empresa de importação e exportação de antigüidades e obras de arte (que utilizava os canais secretos que o DS criara para vender armas por meio do departamento de "trânsito secreto" da Kintex). O negócio prosperou. Em pouco tempo, Pavlov era uma celebridade; entrava nos novos restaurantes abertos pela iniciativa privada com um batalhão de belas mulheres rebolando atrás de si - o lagarto, agora, tinha uma cauda. "A Multiart era, na verdade, uma grande bagunça", admitiria Pavlov,mais tarde, ao falar sobre aqueles primeiros anos. "Desenvolvemos toda uma rede de negócios sem ter estrutura alguma."Um dos diretores da Multiart era Dimitur Ivanov,chefe da 6a Direção do DS. Ivanov apresentou Pavlov a Andrei Lukanov, o principal comunista reformista do país. Ilya Pavlov,o ex-campeão de luta livre, o grande valentão,o reluzente playboy, estava prestes a começar uma nova carreira. [...]