1. Lutem por seus direitos! As mulheres no islã Nasci na Somália em 1969 e fui criada numa família islâmica. Meu pai,Hirsi Magan, é um conhecido líder oposicionista, que desafiou a ditadura de Mohamed Siad Barré. Entre 1975 e 1976, foi forçado a deixar o país, e nossa família o seguiu. Chegamos ao Quênia, passando pela Arábia Saudita e pela Etiópia. Aos 22 anos, na condição de jovem muçulmana, fui forçada a casar-me com um primo distante, sobrinho de meu pai. Se nos casássemos, terminaria meus dias isolada, como mãe e dona-de-casa. Mas me recusei a comparecer à cerimônia, que seria celebrada no Canadá e, pouco depois, fugi para a Holanda. Lá pedi asilo, que me foi concedido, aprendi holandês, trabalhei como intérprete em vários lugares - inclusive em clínicas de aborto e centros para mulheres refugiadas - e me graduei em ciências políticas. Isso foi há dez anos. Na Holanda, posso estudar e trabalhar. Aqui sou livre para expressar minha opinião. Critiquei o islã e a comunidade islâmica nos jornais, nas revistas, na televisão e no rádio. Meus comentários suscitaram sentimentos intensos. A atenção que lutei por conquistar para o drama das mulheres muçulmanas na Holanda e na Europa ocidental levou-me ao Parlamento, primeiro pelo Partido Trabalhista e, a partir de outubro de 2002, pelo Partido Liberal.Minha mudança partidária também despertou fortes sentimentos.Nos Estados Unidos, isso equivaleria a passar do Partido Democrata ao Republicano. Alguns de meus antigos correligionários se sentiram traídos por minha atitude, mas, para mim, tratava-se de uma questão pragmática.Creio encontrar, no Partido Liberal, maior apoio à minha missão de auxílio às mulheres muçulmanas. Muitos me perguntam por que sou especialmente crítica em relação ao islã e à posição da mulher dentro dele.Graças às minhas opiniões e comentários, sou acusada de difamar a religião. Alega-se que retrato todos os homens muçulmanos como "grosseirões estúpidos e violentos que oprimem suas mulheres". Culpam-me ainda por fazer o jogo dos populistas e racistas, que podem se aproveitar de minhas opiniões para reprimir os muçulmanos. Ainda assim, continuo me sentindo na obrigação de manifestar-me contra a maneira como são tratadas as mulheres na comunidade islâmica. Faço-o por quatro razões. Espero poder contribuir, com meu conhecimento e experiência da fé islâmica, para o fim do tratamento degradante dispensado às mulheres e meninas muçulmanas. Creio apaixonadamente na universalidade dos direitos humanos. Como membro do conselho diretor da Anistia Internacional, aflijo-me ao ver a ampla maioria das muçulmanas ainda aprisionada pela doutrina da virgindade, a qual exige que as mulheres se casem puras e imaculadas: experiências amorosas e sexuais antes do casamento constituem um tabu absoluto. Tabu esse que não se aplica aos homens. Além disso, homens e mulheres não têm, de modo algum, os mesmos direitos e oportunidades no contexto de sua cultura muçulmana específica. Muitas mulheres não têm a menor chance de organizar a própria vida com independência ou da maneira que lhes pareça adequada. Não desprezo o islã. Tenho plena consciência da nobreza dos valores promovidos pela religião, como caridade, hospitalidade e compaixão pelos mais fracos e pelos pobres.Mas, para as mulheres, a situação é bem diferente. Em nome do islã, são sujeitas a práticas terríveis, como a mutilação genital feminina e o repúdio, sendo este último uma prática comum, pela qual as mulheres são emocional e financeiramente apartadas de suas famílias por qualquer comportamento tido como inapropriado. Obviamente, nem todo muçulmano é desrespeitoso ou violento com as mulheres. Conheço inúmeros homens muçulmanos maravilhosos, que tratam decentemente suas mães, irmãs e esposas. Além do mais, os homens são, indiretamente, tão vítimas da cultura da virgindade quanto as mulheres. Devido a essa cultura repressiva, os meninos e homens não são criados por mães saudáveis, equilibradas e instruídas. Assim, acabam ficando em desvantagem na busca por educação, empregos e desenvolvimento social. Devido à ênfase desproporcional conferida à "virilidade" na criação islâmica e à separação física e mental entre os sexos, os homens dificilmente têm a oportunidade de desenvolver as habilidades comunicativas necessárias à harmonia da vida familiar. Portanto, não é nenhuma surpresa que muitas muçulmanas na Holanda se queixem de que seus maridos raramente lhes dirijam a palavra.Nos casamentos islâmicos, arranjados pela família quando a filha é ainda muito jovem, os homens são forçados a assumir pesadas responsabilidades - em relação a moças que mal conhecem. Tais expectativas geram, com freqüência, uma falta de auto-compreensão e de compreensão das mulheres. Sentimentos de raiva e impotência são comuns entre os homens. Além disso, um homem criado com a idéia de que não é errado bater numa mulher não hesita muito em fazer uso da violência. Hoje, na Holanda, os abrigos para mulheres recebem um grande afluxo de muçulmanas em busca de proteção contra a violência de seus maridos. Foram criados também abrigos específicos para meninas muçulmanas que fogem da casa dos pais. Ironicamente, a opressão às mulheres é, em grande parte, sustentada por outras mulheres. Veja o que diz Fatma Katirci, uma imame turca (fiel que conduz as orações quando as mulheres se reúnem para rezar - nas ocasiões em que isso é permitido) em Amsterdã, sobre o versículo do Alcorão que dá aos homens o direito de bater em suas mulheres: "A discussão não pode ser sobre o cardápio do jantar. Tem de ser algo mais sério, como uma questão de honra, a infidelidade, por exemplo. Quando o comportamento de uma mulher mancha a reputação da família... Veja, certas mulheres precisam apenas de uma boa conversa para aprender; outras só pensam melhor em suas ações se dormirem em camas separadas; e algumas são verdadeiramente neuróticas. Nestes casos, uma palmadinha pode ser o último recurso para que enxerguem os erros de seu comportamento. Não me interprete mal: sou contra isso. Bater é degradante, mas, se realmente não houver alternativa, é inevitável que seja assim". Essa declaração revela que mesmo mulheres cultas costumam ter dificuldades em abandonar idéias que lhes foram instiladas desde a infância. Nas comunidades muçulmanas de orientação tradicional,muitas vezes são as mães que mantêm as filhas sob seu domínio e as sogras que tornam insuportável a vida das noras. Primas e tias fofocam ininterruptamente umas sobre as outras e a respeito dos demais. O efeito desse controle social é que as muçulmanas alimentam sua própria opressão. A segunda razão para o meu posicionamento crítico é o perigo de que, sem a emancipação das mulheres muçulmanas, a posição de desvantagem social dos muçulmanos no Ocidente e no resto do mundo permaneça inalterada. Vejo uma conexão direta entre a situação desfavorável das mulheres muçulmanas, de um lado, e a defasagem dos muçulmanos na educação e no mercado de trabalho, as altas taxas de delinqüência juvenil e a extrema dependência dos serviços sociais, de outro. Na verdade, as meninas muçulmanas são criadas de tal modo que lhes são negados a independência pessoal e um senso próprio de responsabilidade, valores essenciais para prosperar num país ocidental. A redução da idade mínima para o casamento, ocorrida nos últimos anos, é um avanço perigoso na Holanda, ou em qualquer país com uma minoria islâmica significativa. Casar alguém é tornar acessível uma menina ou jovem mulher a um homem que ela não conhece e que poderá usá-la sexualmente. Quanto mais jovem a noiva, maior a chance de que ela seja virgem. Trata-se aqui, essencialmente, de um estupro arranjado e aprovado por toda a família da moça.Um casamento imposto significa geralmente que a menina não conseguirá completar sua educação, ou nem sequer terá permissão para isso. Tragicamente, um sem-número de meninas muçulmanas ainda tem de se sujeitar a tal prática. Meninas que não conseguem preservar sua virgindade ou têm medo, mesmo sendo virgens, de não sangrar na noite de núpcias, recorrem a intervenções médicas para restaurar o hímen. Cerca de dez a quinze dessas operações são realizadas em hospitais holandeses a cada ano. Em conseqüência do tabu relativo ao sexo - e, portanto, à educação sexual -, as meninas e mulheres estão sujeitas a uma gravidez indesejada ou doença sexualmente transmissível. O aumento no número de abortos está diretamente relacionado ao afluxo de mulheres marroquinas e turcas. A terceira razão pela qual estou decidida a fazer com que minha voz seja ouvida é que não se costuma dar ouvidos às muçulmanas e elas precisam de uma mulher que fale por elas. Seus porta-vozes oficiais são quase todos homens. Dado o sofrimento amplamente disseminado das mulheres muçulmanas, são muito poucas as organizações sociais e partidos políticos dedicados a melhorar sua sorte. Os porta-vozes das organizações muçulmanas e políticos imigrantes de origem islâmica, juntamente com outros defensores dos "direitos das minorias", superam-se em negar, banalizar e evitar os enormes problemas das meninas e mulheres muçulmanas no Ocidente. Numa entrevista concedida em junho de 2002, a parlamentar pelo Partido Socialista, Khadija Arib, deu a seguinte declaração sobre a situação das mulheres muçulmanas: "As pessoas parecem pensar que as imigrantes gostam de ficar o dia todo em casa sozinhas, mas isso acontece principalmente porque elas não têm para onde ir". Durante a inauguração, na primavera, de uma creche onde as mães podiam passar o dia ao lado dos filhos num subúrbio de Amsterdã, ela propôs a criação de um estabelecimento especial, onde as mulheres pudessem participar de atividades durante todo o dia. Ao agir assim, ela nega a essência do problema. Um segmento expressivo da comunidade islâmica ainda conserva a idéia de que as mulheres não deveriam ser livres para se locomover ou trabalhar fora de casa. As muçulmanas se beneficiariam mais de críticas severas a essa opinião do que da criação de centros especiais de atividades para mulheres. O último motivo é minha firme convicção de que a ênfase numa identidade muçulmana e em seus respectivos "direitos de minoria" é prejudicial às mulheres muçulmanas. Em 1999, Susan Moller Okin, professora de ciência política e feminista, deu início, nos Estados Unidos, a uma discussão entre os adeptos do multiculturalismo que defendem a promoção e preservação da cultura islâmica (ou de outros grupos) e seus oponentes, entre os quais ela se inclui. Em sua visão, o fato de muitos governos ocidentais promoverem uma política de preservação das culturas minoritárias está em conflito com suas constituições; afinal, estas estabelecem os princípios da liberdade individual e da igualdade entre homens e mulheres. Entre outras críticas, ela chama a atenção para o fato de que os multiculturalistas não levam em conta a vida privada nas culturas que defendem. E é justamente na vida privada que a desigualdade de poder e a opressão às mulheres se manifestam de forma mais clara. Em última análise, as mulheres muçulmanas no Ocidente têm mais a ganhar com a cultura ocidental dominante, adotada pela maioria da população e que lhes proporciona boas oportunidades de conduzir suas vidas de acordo com seus próprios desígnios. Sou a prova viva disso. É também por essa razão que me sinto responsável por preservar e proteger o sistema democrático, ao qual tanto devo. Em princípio, todos os muçulmanos holandeses possuem os mesmos direitos, mas, devido a opiniões religiosas antiquadas, têm dificuldade em exercê-los. As mulheres são as mais afetadas, e é isso que me aflige. Aqueles que já conquistaram o sucesso nas sociedades ocidentais e partilham da fé das mulheres oprimidas (seu número, aliás, não é muito grande), deveriam sair mais em defesa de suas irmãs e irmãos. Gostaria de encorajar mulheres como Naima El Bezaz, que escreve com franqueza sobre a sexualidade feminina, a erguer-se acima da barreira religiosa e questionar a fonte da cultura da virgindade (o Alcorão, o Hadith, uma coletânea de dizeres do profeta Maomé, tradições e práticas resultantes), em vez de aferrar-se à tradição estabelecida. Isso se daria em seu próprio proveito e no proveito daquelas que compartilham da mesma sorte mas que, até o momento, tiveram menos oportunidades de progredir. Convido parlamentares como Khadija Arib, Nebahat Albayrak, Naima Azough e Fatima Elatik a assumir sua responsabilidade. A lógica do estabelecimento de prioridades exige que os problemas mais graves sejam resolvidos primeiro. Questões menores como a da "imagem do islã" devem ser postas de lado. Não é absurdo pensar que Alá, em toda a sua grandeza, se preocupe com a própria imagem? Convido os defensores da sociedade multicultural a se inteirarem do sofrimento das mulheres que, em nome da religião, são escravizadas em seus próprios lares. Será preciso ter sofrido na própria pele os maus-tratos, o estupro, o encarceramento e a opressão para se pôr no lugar do outro? Não é hipocrisia banalizar e tolerar tais práticas, sendo livre e se beneficiando do progresso da humanidade? Uma sociedade multicultural não é um fim em si mesma. Nós, no Ocidente, devemos fazer um esforço conjunto para nos opormos à educação islâmica e a todas as outras instituições muçulmanas que promovem a auto-segregação e contribuem para a preservação de uma inescapável tirania sobre mulheres e crianças.