1. AS LINHAS IMAGINÁRIAS Quando estou contente, uso os meridianos da longitude e os paralelos da latitude como uma rede, e varro o Atlântico atrás de suas baleias. Mark Twain, Life on the Mississippi Certa vez, num passeio de quarta-feira quando eu ainda era uma garotinha, meu pai me comprou uma esfera feita de arame com contas enfiadas, que adorei. Com um simples toque, eu podia fazê-la se desmanchar e se transformar em uma espiral entre as palmas das minhas mãos, ou fazê-la se abrir em uma esfera vazia. Com sua forma de bola, parecia um pequeno globo terrestre, pois seus arames dobráveis tinham o mesmo traçado dos círculos que se entrecruzavam no globo que eu via na sala de aula - as finas linhas negras de latitude e de longitude. As poucas contas coloridas deslizavam pelo arame livremente, como os navios em alto mar. Meu pai caminhou pela Quinta Avenida em direção ao Rockefeller Center, erguendo-me sobre os ombros para olhar a estátua de Atlas, carregando sobre os seus o Firmamento e a Terra. O orbe de bronze que Atlas sustentava no alto, assim como o brinquedo feito de arame que eu segurava em minhas mãos, era um mundo vazado, traçado por linhas imaginárias. O Equador. A Eclíptica. O Trópico de Câncer. O Trópico de Capricórnio. O Círculo Ártico. O Meridiano Primo. Já nessa época, eu podia reconhecer, na grade traçada no globo, um símbolo poderoso de todas as terras e águas do planeta. Hoje, as linhas de latitude e de longitude governam com mais autoridade do que eu poderia ter imaginado há mais de quarenta anos, porque permanecem fixas à medida que o mundo vai modificando sua configuração por debaixo delas - com continentes flutuando à deriva através de oceanos cada vez mais largos e fronteiras nacionais repetidamente refeitas ao sabor da guerra ou da paz. Ainda criança, aprendi o truque para memorizar a diferença entre latitude e longitude. As linhas que representam a latitude, os paralelos, de fato ficam paralelas umas às outras, envolvendo o globo do Equador aos pólos, numa série decrescente de anéis concêntricos. Os meridianos de longitude se posicionam de forma inversa: eles enlaçam o globo do Pólo Norte ao Pólo Sul, formando grandes círculos de tamanhos idênticos, todos convergindo para os mesmos pontos nas extremidades da Terra. As linhas de latitude e longitude começaram a entrecruzar a nossa visão do mundo já na Antiguidade, pelo menos trezentos anos antes do nascimento de Cristo. Ao redor de 150 d.C., o cartógrafo e astrônomo Ptolomeu as havia marcado nos 27 mapas de seu primeiro atlas. Nesse volume, que constitui um marco, Ptolomeu apresentou um índice no qual estão listados todos os nomes de localidades, em ordem alfabética, com a latitude e a longitude de cada uma delas, tanto quanto pudera aferir dos relatórios feitos por viajantes. Ptolomeu tinha uma visão apenas remota da vastidão do mundo. Em sua época, era comum a concepção equivocada de que qualquer ser vivendo abaixo do Equador se deformaria, derretido pelo calor insuportável. O Equador, segundo os conceitos de Ptolomeu, marcava o paralelo com grau zero de latitude. Essa não foi uma escolha arbitrária por parte desse astrônomo da Antiguidade, mas a posição assumida pelas autoridades superiores que o precederam, derivada da natureza através da observação dos corpos celestes. O sol, a lua e os planetas passavam quase que diretamente por cima do Equador. Da mesma maneira, os Trópicos de Câncer e de Capricórnio, dois outros famosos paralelos, assumiam suas posições ao comando do sol. Esses dois trópicos marcam os limites norte e sul do movimento aparente do sol ao longo do curso do ano. Ptolomeu, porém, tinha liberdade para posicionar seu meridiano primo, a linha de zero grau de longitude, onde bem entendesse. O estudioso resolveu passá-lo pelas Ilhas Fortunate (hoje chamadas Ilhas Canárias e da Madeira), situadas a noroeste da costa da África. Mais tarde, o primeiro meridiano foi localizado pelos cartógrafos passando pelas Ilhas dos Açores e de Cabo Verde, mas também por Roma, Copenhague, Jerusalém, São Petersburgo, Pisa, Paris e Filadélfia, entre outros locais, até se fixar em Londres. À medida que o mundo gira, qualquer linha traçada de pólo a pólo pode servir tão bem quanto qualquer outra como ponto de referência. A localização do meridiano primo é uma decisão puramente política. Eis a verdadeira e concreta diferença entre latitude e longitude, além daquela existente na direção das linhas, evidente para qualquer criança: o paralelo de zero grau de latitude é fixado pelas leis da natureza, enquanto o meridiano de zero grau de longitude se modifica como as areias do tempo. Essa diferença faz com que achar a latitude seja uma brincadeira de criança, enquanto torna a determinação da longitude, especialmente no mar, um dilema de adulto - algo que desafiou as mentes mais brilhantes do mundo durante uma boa parte da história da humanidade. Qualquer marinheiro que merece o nome pode verificar a latitude em que se encontra através da duração do dia ou pela altura do sol no firmamento ou se guiando pelas estrelas do céu. Cristóvão Colombo seguiu um caminho reto através do oceano Atlântico quando “navegou pelo paralelo” na sua viagem de 1492, e a técnica empregada sem dúvida alguma o teria levado às Índias, caso as Américas não tivessem aparecido no caminho. Em comparação, a medição do meridiano de longitude é temperada pelo tempo. Para se saber a que longitude se está no mar, é necessário ter conhecimento da hora a bordo e também da hora no porto de saída ou qualquer outro local de longitude conhecida - exatamente naquele dado momento. Os dois horários possibilitam ao navegador converter a diferença entre os horários em uma separação geográfica. Como a Terra leva 24horas para completar uma revolução de 360 graus, uma hora equivale a 1/24 da revolução, ou quinze graus. Assim, cada hora de diferença entre o navio e o ponto de partida marca o progresso de quinze graus de longitude para leste ou para oeste. A cada dia no mar, sempre que o navegador reajusta o relógio de bordo ao meio-dia local - quando o sol alcança o zênite - e então consulta o relógio do porto de saída, cada hora de discrepância equivale a quinze graus de longitude. Esses quinze graus de longitude correspondem também à distância percorrida. No Equador, onde a circunferência da Terra é maior, quinze graus se estendem por mil milhas (1.850 quilômetros). Ao norte ou ao sul dessa linha, porém, o valor da milhagem para cada grau diminui. Se cada hora equivale a quinze graus, um grau de longitude equivale a quatro minutos - em qualquer lugar do mundo; porém, quanto à distância, esse grau que equivale a 68 milhas (126 quilômetros) no Equador equivale virtualmente a nada nos pólos. O conhecimento preciso da hora, simultaneamente, em dois locais diferentes - um pré-requisito da longitude de tão fácil acesso nos dias atuais através de um par de relógios de pulso baratos - era completamente inacessível até - e incluindo - a era dos relógios de pêndulo. A bordo dos navios em movimento, esses relógios de pêndulo se atrasavam ou adiantavam ou simplesmente paravam de funcionar. As mudanças normais de temperatura entre um país de clima frio e uma zona tropical afinavam ou engrossavam o óleo lubrificante do relógio, e faziam seus componentes de metal se expandirem ou contraírem com resultados igualmente desastrosos. A subida ou a descida da pressão atmosférica, ou as variações sutis na gravidade da Terra de uma latitude para outra, podiam igualmente acarretar ganho ou perda de tempo. Devido à falta de um método prático para se determinar a longitude, todo grande capitão da Era da Exploração se perdeu no mar, apesar de munido dos melhores mapas e bússolas disponíveis à época. De Vasco da Gama a Vasco Núñez de Balboa, de Fernão de Magalhães a sir Francis Drake - todos chegaram a seus destinos, inevitavelmente, pelas forças atribuídas à boa sorte ou pela graça de Deus. À medida que mais e mais naus se lançavam na conquista ou na exploração de novos territórios, para fazer a guerra ou para transportar ouro e mercadorias entre terras estrangeiras, a riqueza das nações flutuou sobre os oceanos. E ainda assim navio algum possuía meios seguros que indicassem onde estava. Como conseqüência, um número incontável de marinheiros morria quando seu destino emergia de repente do mar e os tomava de surpresa. Em um acidente desse tipo, em 22 de outubro de 1707, nas ilhas Scilly, próximas à ponta sudoeste da Inglaterra, quatro navios de guerra ingleses que voltavam ao país encalharam e foram a pique, e quase 2 mil homens morreram. A procura de uma solução para o problema da longitude se estendeu por quatro séculos, e se espalhou por todo o continente europeu. A maior parte das cabeças coroadas acabou por desempenhar algum papel na história da longitude, especialmente o rei George III da Inglaterra e o rei Luís XIV da França. Lobos-do-mar como o capitão William Bligh, do navio Bounty, e o grande circunavegador, o capitão James Cook, que fez três longas viagens de exploração e de experiência antes da sua morte violenta no Havaí, levaram ao mar os mais promissores métodos a fim de testar sua precisão e sua praticidade. Astrônomos de renome abordaram o desafio da longitude apelando para a passagem do tempo universal: Galileu Galilei, Jean Dominique Cassini, Christiaan Huygens, sir Isaac Newton e Edmond Halley, que deu nome ao cometa, todos apelavam para a lua e para as estrelas por ajuda. Observatórios suntuosos foram fundados em Paris, Londres e Berlim, com o objetivo expresso de encontrar uma forma para se determinar a longitude no firmamento. Enquanto isso, mentes menos privilegiadas ima-ginavam sistemas baseados nos ganidos de cachorros feridos ou em tiros de canhão de navios sinalizadores estrategicamente ancorados - de alguma forma - em mar aberto. No curso dessa longa luta para se encontrar uma resposta ao problema de determinação da longitude, os cientistas acabaram por fazer outras descobertas, que os levaram a modificar suas visões do universo. Incluem-se aí as primeiras determinações precisas do peso da Terra, da distância das estrelas e da velocidade da luz. À medida que o tempo passava e nenhum método apresentado se mostrava bem-sucedido, a procura de uma solução tomou proporções lendárias, comparáveis às da procura pela Fonte da Juventude, do segredo do moto-contínuo ou da fórmula para se transformar o chumbo em ouro. Os governos das grandes nações marítimas - incluindo a Espanha, a Holanda e algumas cidades-Estado da Itália - periodicamente redobravam o fervor, oferecendo grandes somas em dinheiro por um método que funcionasse. O Parlamento inglês, no seu famoso Longitude Act [Lei da Longitude], de 1714, ofereceu a mais alta remuneração de todas, determinando um prêmio equivalente ao resgate de um rei (vários milhões de dólares a preços atuais) por uma maneira “prática e útil” para se determinar a longitude. O relojoeiro inglês John Harrison, gênio da mecânica e pioneiro na ciência do relógio de precisão portátil, devotou sua vida a essa saga. Harrison afinal realizou aquilo que Newton achava ser impossível: inventar um relógio que, como uma chama eterna, podia registrar a hora verdadeira desde o porto de partida até qualquer ponto remoto do mundo. Harrison, homem de família simples e extremamente inteligente, trocou informações com as mentes mais brilhantes da época. Tornou-se o inimigo figadal do reverendo Nevil Maskelyne, o quinto astrônomo real, que contestou sua reivindicação pelo tão desejado prêmio em dinheiro. As táticas do reverendo, em certas articulações, só podem ser descritas como jogo sujo. Harrison não possuía formação acadêmica ou qualquer aprendizado na arte da relojoaria. No entanto, construiu uma série derelógios virtualmente sem fricção, que não requeriam lubrificação nem limpeza, feitos de material resistente à corrosão e que mantinham as suas partes móveis perfeitamente equilibradas em relação umas às outras, independentemente de como o mundo se inclinasse ou se agitasse ao redor desses mecanismos. O relojoeiro eliminou o pêndulo e misturou diversos metais em seus mecanismos, de modo que, quando um componente se expandia ou se retraía com as mudanças da temperatura, o outro reagia à mudança e mantinha o andamento constante do relógio. Porém, cada sucesso alcançado era ignorado pelos membros da elite científica, que não depositavam confiança na caixa mágica de Harrison. Os comissários encarregados de conceder o prêmio pela solução do problema da longitude - Nevil Maskelyne dentre esses - modificavam as regras do concurso quando achavam conveniente, a fim de favorecer as chances dos astrônomos em detrimento de Harrison e de seus colegas “mecânicos”. A utilidade e a precisão da abordagem de Harrison, no entanto, acabaram por triunfar. Os seguidores de Harrison guiaram sua complexa e refinada invenção pelas modificações necessárias do projeto a fim de possibilitar a produção em massa e sua ampla utilização. Um Harrison envelhecido e exausto, tomado sob a proteção do rei George III, por fim requereu o seu prêmio em dinheiro por direito adquirido em 1773 - depois de quarenta anos de intriga política, guerra internacional, calúnia acadêmica, revolução científica e conturbação econômica. Todos esses fios, e outros mais, se emaranham com as linhas da longitude. Desembaraçá-los agora - para relembrar suas histórias em uma época de redes de satélites em órbita que podem indicar a posição do navio com precisão de algumas polegadas, em um ou dois segundos - é ver o globo com outros olhos.