Trecho do livro O INSTANTE CONTÍNUO

Não sou o primeiro pesquisador a se inspirar em uma "certa enciclopédia chinesa" descrita por Borges. Segundo essa obra misteriosa, "os animais se dividem em (a) pertencentes ao imperador, (b) embalsamados, (c) adestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cachorros soltos, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam feito loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, (l) et cetera, (m) que acabam de quebrar o jarrão; (n) que de longe parecem moscas". Embora a análise da fotografia empreendida nestas páginas não possa reivindicar esse grau de rigor ou de excentricidade, inspira-se em tentativas anteriores e bem-intencionadas de organizar a infinita variedade de possibilidades fotográficas em algum tipo de ordem fortuita. Walker Evans dizia que um de seus "temas de estimação" era o fato de escritores como James Joyce e Henry James serem "fotógrafos inconscientes".No caso de Walt Whitman, nada havia de inconsciente nisso. "Nestas Folhas [de relva] tudo é literalmente fotografado", insistiu. "Nada é poetizado."Disposto a imitar os "Sacerdotes do Sol", Whitman criou poemas que, vez por outra, pareciam longas entradas de um gigantesco catálogo de fotografias em constante transformação: Ver, em meus poemas, cidades, sólidas, vastas, continentais, com ruas [pavimentadas, com edifícios de ferro e pedra, veículos incessantes e comércio, Ver os prelos a vapor multicilíndricos - ver o telégrafo elétrico cruzando o [continente, [...] Ver a robusta e rápida locomotiva ao partir, resfolegante, tocando o apito, Ver lavradores lavrando fazendas - ver mineiros cavando minas - ver as [inúmeras fábricas, Ver mecânicos ocupados com ferramentas em suas bancas [...] Por sua parte, Evans compilou em 1934 uma lista de categorias de imagens, a fim de tornar mais claras suas próprias idéias quanto ao que estava tentando fazer: Pessoas, todas as classes, cercadas por bandos da nova gente na pior; Automóveis e a paisagem automotiva; Arquitetura, gosto urbano americano, comércio, pequena escala, grande escala, clubes, a atmosfera urbana, o cheiro da rua, as coisas odiosas, clubes femininos, pseudocultura, má educação, religião em decadência; O cinema. Comprovação do que as pessoas da cidade lêem, comem, vêem para se divertir, fazem para espairecer e não conseguem. Sexo. Publicidade. Muitas coisas mais, sabem o que quero dizer. O historiador cultural Alan Trachtenberg observou que essa lista lembra o anterior Catálogo de fotografias sociais e industriais,de Lewis Hine, "só que temperada com a ironia de Evans". No entanto, algo mais que ironia separa as duas listagens. A de Hine é inteiramente lógica e rigorosa - "imigrantes", "mulheres trabalhando", "homens trabalhando", "incidentes na vida de um trabalhador" etc.-, num total de mais de cem assuntos e mais de oitocentos subitens. Modelo de arranjo ordeiro e de organização, não tem nada do tom provisório, contingente ao extremo e, em última análise, insustentável ("muitas coisas mais") da lista que Evans fez de suas próprias intenções. Algumas das fotografias mais conhecidas de Evans foram feitas por encomenda da Farm Security Administration, entre 1935 e 1937. Denominado inicialmente Resettlement Administration, esse foi um dos primeiros órgãos do New Deal, de Roosevelt, destinados a melhorar a sorte de agricultores pobres e de colonos levados à beira da fome pela Depressão. A FSA era dirigida pelo economista Rexford Tugwell, que em 1935 nomeou Roy Stryker, seu ex-assistente de ensino, para chefiar a Seção Histórica. Tanto um quanto o outro acreditavam firmemente no poder da fotografia para dar uma realidade humana a argumentos econômicos,mas foi só no outono daquele ano, quando recebeu carta branca para fazer um registro fotográfico da política e do trabalho do órgão, que Stryker teve uma idéia mais clara de sua tarefa - e de seu poder. Ela ficou ainda mais nítida quando ele viu algumas fotografias que já haviam sido encomendadas. Tinham sido feitas por Evans e eram contundentes o bastante para garantir ao fotógrafo o cargo de especialista em informação sênior de Stryker. Evans encarou essa nomeação como uma espécie de "liberdade subsidiada", mas, como muitos dos outros fotógrafos que trabalhavam para Stryker (Ben Shahn, Dorothea Lange, Russell Lee e Arthur Rothstein, entre outros), ele constatou que essa liberdade era limitada pelo cliente que a concedia. À medida que Stryker percebia melhor o sentido de sua missão, produzia "roteiros de imagens" cada vez mais exigentes, separados de acordo com a estação do ano,muitas vezes subdivididos por locação, discriminando com grande minúcia o que ele queria que fosse fotografado. Segue um trecho de um roteiro para o "Verão": Carros abarrotados trafegando em rodovias. Frentista de posto de gasolina enchendo o tanque de carros esporte e conversíveis. Jardins rochosos: guarda-sóis; barracas de praia; praias de areia com ondas mansas; cristas espumantes lançando borrifos sobre um barco a vela no horizonte distante. Pessoas de pé à sombra de árvores e toldos. Janelas abertas em bondes e ônibus; água potável de uma fonte ou poço antigo; lugar sombreado à beira de um rio - com o sol se refletindo na água; pessoas nadando em piscinas, rios e ribeirões. Na categoria "Hábitos americanos", os fotógrafos encarregados da vida em "Cidades pequenas" eram instruídos a procurar: "Estação ferroviária - gente vendo o trem passar; pessoas na varanda; mulheres saindo de varandas para cumprimentar pessoas na rua; regando o gramado; pessoas tomando sorvete em casquinhas; esperando o ônibus [...]." Na categoria "Cidade", eram encaminhados para "pessoas sentadas em bancos de parque; esperando o bonde; levando o cachorro para passear; mulheres com crianças em parques ou calçadas; brincadeiras infantis [...]."Tudo isso deveria ser suplementado por fotos de "Generalidades": "Carros sendo abastecidos em postos de gasolina; conserto de pneus; engarrafamento de trânsito; aviso de desvio de trânsito; 'Homens trabalhando' [...] Refresco de laranja. Cartazes; pintores de letreiros - pessoas vendo um letreiro ser pintado. Avião escrevendo no céu [...] Pessoas assistindo a um desfile: fitas de telégrafo; sentadas no meio-fio [...]". Há uma poesia toda especial - a poesia da abrangência máxima - nesses roteiros, e o fato de hoje parecerem legendas indica com que diligência, ainda que relutante, os fotógrafos de Stryker cumpriam sua orientação. Stryker suplementava seus roteiros com ordens ainda mais precisas, de modo a compensar quaisquer omissões. "Onde estão as ruas ladeadas de olmos?", perguntou a Russell Lee, em Amarillo, Texas, em 1939. Em outra ocasião, pediu a Lee que procurasse "uma barbearia, numa cidade do interior, em que ainda usem tigelinhas individuais [para espuma de barbear] com o nome do dono em cada uma". Depois de instruir Arthur Rothstein, em Denver, para procurar "Varredura e queima de folhas. Limpeza do jardim. Preparativos para o inverno", Stryker acrescentou, como se tivesse lembrado de mais uma coisa: "Não se esqueça também de pessoas na varanda". Mesmo quando cumpriam as instruções de Stryker, fotógrafos como Evans e Lange faziam valer suas próprias listas, de modo que, às vezes, as fotos resultantes representam um híbrido ou uma fusão de diferentes categorias de solicitações. Na década de 1950, Evans fez amizade com um jovem fotógrafo suíço, Robert Frank, que ele incentivou a candidatar-se a uma bolsa Guggenheim. Na justificativa de seu pedido, Frank apresentou sua própria lista, individualíssima, de coisas que gostaria de fotografar: Uma cidade à noite, uma área de estacionamento, um supermercado, uma rodovia, o homem que possui três carros e o que não possui nenhum, o fazendeiro e seus filhos, uma casa nova e uma casa de tábuas tortas, despotismo do gosto, o sonho de grandeza, publicidade, anúncios em neon, o rosto dos líderes, e o rosto de seus seguidores, tanques de gás, agências de correios e quintais [...] Quando a bolsa foi concedida, em 1955, Frank iniciou uma viagem de carro pelos Estados Unidos, durante a qual expôs quase setecentos rolos de filme. Depois de ampliar trezentos negativos, organizou as fotografias em categorias como "símbolos, carros, cidades, pessoas, letreiros, cemitérios [...]". Quando o livro resultante, The Americans, foi publicado (na França, em 1958; nos Estados Unidos, no ano seguinte), só restavam vestígios da organização preliminar. Ainda havia fotos de carros e cemitérios, mas o livro não estava mais configurado em torno das categorias pretendidas. Com plena consciência de que existem outras maneiras,mais sensatas, de organizar um livro, inclino-me para essas tentativas extremamente fortuitas, provisórias e com freqüência abandonadas, e não para o metódico sistema de Hine. Como Robert Frank declarou em seu pedido da bolsa Guggenheim, "o projeto que tenho em mente se definirá à medida que avançar, e é, essencialmente, flexível". Também Dorothea Lange acreditava que "saber de antemão o que se está procurando nos faz fotografar apenas nossas próprias concepções prévias, o que é muito limitador". Para ela, era ótimo um fotógrafo trabalhar "completamente sem plano" e só fotografar "aquilo a que reage de modo instintivo". Tomando as palavras de Lange ao pé da letra, tentei o mais que pude me manter aberto a qualquer coisa, "como um pedaço de material sensível não exposto". Certas fotografias me chamavam a atenção, do mesmo modo que certas coisas chamaram a atenção do fotógrafo que as fez. De início, o acaso desempenhou um papel fundamental em ambos os processos. Depois de certo ponto,porém, comecei a observar que várias dessas fotos tinham algo em comum - um chapéu, digamos -, e assim que tomei consciência disso, comecei a pro-16 curar fotografias de chapéus. Queria que minha abordagem da fotografia fosse arbitrária, casual,mas em alguns pontos as coisas necessariamente se aglutinavam em torno de determinadas áreas de interesse. Assim que percebi que estava sendo atraído por chapéus, a idéia do chapéu tornou-se um princípio organizador. É inerente à idéia de uma taxonomia que as categorias sejam separadas, que não haja nenhuma sobreposição entre, digamos, gatos e cães. Se isso acontece porque a taxonomia decretou que é assim ou porque essa regra reflete uma separação inerente é uma questão aberta à discussão; seja como for, não existe um cato, um gão ou um gato-cão. (Foucault arenga a respeito disso no prefácio de As palavras e as coisas - foi por isso que a enciclopédia de Borges provocou uma "gargalhada que destruiu todas as balizas familiares de [seu] pensamento".) Uma das características dessa minha taxonomia fotográfica é a existência de muita infiltração ou tráfego entre as categorias. Assim que defini chapéus e degraus como princípios organizadores, percebi que algumas das fotografias que haviam me chamado a atenção mostravam tanto chapéus quanto degraus. (Essas eram algumas das fotos que eu achava mais interessantes, o que não surpreende.) Tão logo isso começou a acontecer, a grade estática da taxonomia começou a se fundir e ganhar a forma mais frouxa e mais fluida de narrativas ou histórias. E, embora se espere que uma taxonomia seja rigorosa e imparcial, logo percebi que meus próprios interesses seriam mais bem atendi- dos se eu me mostrasse parcial - em ambos os sentidos da palavra. Desconfio, portanto, que este livro há de causar irritação em muitas pessoas, sobretudo as que entendem mais de fotografia do que eu. Eu as compreendo,mas para que possamos ir adiante há um tipo de crítica que eu gostaria de vetar desde logo como inaceitável. Trata-se da acusação de omissão inadmissível, do tipo "Mas e fulano?" ou "Por que ele não mencionou sicrano?". Será que não podemos admitir, para usarmos as palavras de Whitman, "que muita coisa invisível também está aqui", que não é necessário discutir - nem sequer mencionar - todas as fotografias de chapéu que já foram feitas a fim de aprendermos algo de interessante sobre fotos de chapéus? Espero que sim, pois quem está aprendendo é tanto quem escreve o livro quanto quem o lê. O motorista também aproveita o passeio. Para Henri Cartier-Bresson, a fotografia era "um meio de compreender". Este livro é a história de minha tentativa de compreender o meio expressivo que ele dominou. John Szarkowski considerou que as melhores fotos de Garry Winogrand "não eram ilustrações do que ele conhecia, e sim novo conhecimento". Eu desejava, entre outras coisas, olhar fotografias para ver que novos conhecimentos poderia extrair delas - embora não pudesse fazer isso sem utilizar uma certa dose de conhecimentos antigos. Queria também aprender mais sobre as diferenças entre certos fotógrafos (ou ao menos me tornar mais sensível a elas), ter uma idéia melhor dos estilos desses fotógrafos. Verificar se o estilo podia ser identificado no conteúdo e pelo conteúdo - se o estilo é inerente ao conteúdo. A única maneira de fazer isso era verificar como diferentes pessoas fotografavam a mesma coisa. Nesse processo, este livro acabou analisando sobretudo, mas não apenas, fotografias americanas, ou pelo menos fotografias dos Estados Unidos. Não era essa minha intenção. No início eu não tinha em mente determinados fotógrafos - nem determinadas fotografias. Todo mundo e qualquer coisa teria direito a entrar. Havia fotógrafos de quem eu nunca tinha ouvido falar e fotografias que eu nunca vira (não reivindico, de modo algum, o título de especialista nesse ou em qualquer outro campo). Havia fotógrafos importantes em que eu, por um motivo ou outro, não estava interessado (Irving Penn, para citar um); havia fotógrafos sobre os quais eu já havia escrito antes ou sobre quem não encontrava nada de novo para dizer (Cartier-Bresson e Robert Capa, para citar dois); havia fotógrafos sobre quem eu achei que escreveria muito (Eugène Atget, e vamos parar a contagem aqui), mas acabei escrevendo quase nada; houve fotógrafos sobre quem eu não pretendia escrever, mas acabei escrevendo bastante. Um deles foi Michael Ormerod, em cuja obra se encerram muitos dos temas deste livro. Esse foi um acidente feliz e inteiramente inesperado. Ormerod é o enviado especial do autor: um inglês que faz um levantamento da fotografia americana. Ormerod teve a vantagem de fazer isso dentro da atividade, através das próprias fotografias,mas eu não sou fotógrafo. Não quero dizer apenas que não sou um profissional, nem mesmo um amador avançado; quero dizer que nem sequer possuo uma máquina fotográfica. A única ocasião em que tiro uma fotografia é quando turistas me pedem que faça uma foto deles, com a câmera deles. (Essas raras obras se acham atualmente dispersas em todo o mundo, em coleções particulares, sobretudo no Japão.) É uma limitação, sem dúvida,mas me faz abordar esse meio expressivo com uma espécie de pureza. Tenho também o palpite de que não tirar fotografias é uma condição para escrever sobre elas, do mesmo modo que o fato de eu não tocar um instrumento musical foi uma precondição para escrever sobre jazz no fim da década de 1980. Naquela época havia poucos livros capazes de satisfazer minha curiosidade sobre a música e as pessoas que a produziam. Já com relação à fotografia, a situação é absolutamente diferente. Existem grandes livros sobre a idéia da fotografia - ou, no dizer de Stieglitz, sobre "a fotografia como idéia"- escritos por Susan Sontag, John Berger e Roland Barthes. Existem excelentes pesquisas sobre a história da fotografia ou de vários gêneros e movimentos dentro dessa história. Existem numerosos livros e ensaios do mais alto padrão sobre fotógrafos, escritos por curadores e especialistas. Vários fotógrafos também já se mostraram extremamente eloqüentes sobre sua atividade. Isso tornou as coisas muito mais fáceis. Com a barra levantada tão lá no alto, senti-me à vontade para passar andando sob ela Mas ainda espero que, como se expressou Diane Arbus, "eu tenha algum direito de falar um pouco sobre a natureza das coisas". Dorothea Lange disse que "a câmera é um instrumento que ensina as pessoas a verem sem uma câmera". Posso não ser fotógrafo,mas agora vejo o tipo de fotografia que eu faria se fosse.