Como ela agüenta isso?, pensa ele, todos esses rituais meticulosos que é obrigada a refazer, percorrendo nervosamente os quartos antes de sair, batendo as portas dos armários, abrindo e fechando gavetas, algo contrito e opaco toma conta de seu belo rosto nesses momentos, Deus a livre de esquecer algum detalhe, algum pente, livro, frasco de xampu - tudo poderia desmoronar. Ele senta à sua escrivaninha vazia com a cabeça apoiada entre as mãos, enquanto ela joga um aceno apressado da porta, e seu coração afunda, ela nem sequer chega perto para se despedir; hoje haverá algo especial lá, ela sai correndo para a rua, olhos baixos para evitar contato visual e alguma conversa supérflua. Como é que ela não desiste? De onde tira forças para passar por isso a cada dia de novo? Em seguida, como que baixando a guarda, ele fecha os olhos e se apressa em acompanhá-la enquanto ela entra no carro, um minúsculo Polo verde-claro. Ele o comprou de surpresa para ela, que ficou horrorizada com a cor e reclamou que era muito extravagante. Mas ele queria que ela tivesse seu próprio carro, para se locomover livremente, para que não fiquemos brigando o tempo todo por causa do carro, disse. E quis que ela tivesse um carro muito verde. Na sua fantasia, era como se fosse um dispositivo eletrônico brilhante injetado na corrente sanguínea dela de modo a poder ser monitorado por uma câmera. Lentamente, ele vai apoiando a cabeça no encosto do assento, e ela dirige, a face tensa, próxima demais do pára-brisa. Ela vai levar cerca de oito a nove minutos para chegar, e é preciso acrescentar ainda um eventual atraso inesperado (um engarrafamento, algum farol quebrado, o homem que está à sua espera lá no apartamento não achar as chaves e demorar para abrir a porta), e lá se vão mais quatro ou cinco minutos preciosos. Elisheva, ele diz em voz alta, com vagar, pronunciando cada sílaba. E diz mais uma vez, para aquele homem. O homem que poupa cada instante necessário para se despir, que não perde tempo pois cada segundo é valioso, e, enquanto ela conduz o veículo por entre as ruelas estreitas que ligam uma casa à outra, ele já vai tirando a roupa, no quarto ou talvez perto da porta, desce as calças largas de veludo marrom, tira a folgada camisa de cor indefinida, que um dia também foi marrom, ou cor de laranja, ou talvez até mesmo rosa, ele é bem capaz de usar uma camisa rosa, que importa o que vão pensar?, é isso que é bonito nele, reflete Shaul, que ele não se importa com nada, nem com o que vão pensar nem com o que vão dizer, essa é a força dele, sua saudável integridade interior; aparentemente é isso que tanto a atrai. Ela vai ao encontro dele, dispara ao encontro dele, olhos fixos no caminho, boca tensionada. Daí a pouco essa boca será beijada e há de relaxar, engolir, arder, os lábios deslizarão sobre aqueles outros lábios, de início apenas superficialmente, tocando sem tocar, então virá uma língua e desenhará seu contorno dando voltas e mais voltas, e os lábios tentarão não sorrir, e logo se ouvirá um murmúrio de prazer, não se mexa enquanto eu desenho, e de dentro dela sairá um grunhido de concordância, e aí os lábios dele se fixarão nos dela e, com toda a sua agressividade ríspida, masculina, vão sugá-los; depois se afastarão por um instante, deixando passar um suspiro quente. Por fim, os lábios vão se encontrar de novo, agora com a solenidade de um desejo realmente intenso, as línguas se entrelaçando como se fossem criaturas com vida própria, e os olhos dela se abrirão por um breve momento com um suspiro suave, os globos oculares se revirando um pouco para em seguida sumir. Sob as pálpebras semicerradas se revela uma brancura vazia, assustadora. Ela é uma mulher grande, Elisheva, generosa também de corpo. É até mesmo um pouco grande para um carro tão pequeno, e talvez por isso tenha achado ruim que ele tenha lhe comprado um Polo, e talvez também por isso ele tenha escolhido justamente o Polo, quem pode saber, é só agora que isso lhe ocorre, por causa da sensação de que ela está praticamente rompendo a concha a caminho de lá, quase explodindo ao encontro dele enquanto se esforça para se concentrar no caminho, deleitando-se com a suposição de que o homem à sua espera esteja neste instante pensando exatamente a mesma coisa, dessa for- ma ganhamos mais alguns momentos juntos, ela lhe dissera uma vez. Ela avança, o carro verde circula dentro da rede de artérias que se estende daqui até ele, e, quando Shaul emerge da onda de dor, ela já está lá, com ele, Shaul pode vê-lo ligeiramente, uma mancha de calor grande e larga, braços sólidos, e o rápido gesto dela pondo a mão sobre seu ombro e se curvando para tirar os sapatos sem desafivelá-los, os dedos ansiosos e desejosos percorrendo o corpo dele nu, as roupas já espalhadas a seus pés, e as roupas dela caindo sobre as dele. Shaul fecha os olhos e absorve o golpe representado pela mistura de tecidos, e dói tanto que ele é obrigado a desviar o olhar das roupas para o homem, pois neste momento o homem em si é menos doloroso que as roupas jogadas umas sobre as outras, o homem que se antecipou e se despiu para ganhar alguns segundos preciosos, e esperou por ela ansiosamente, andando pela casa nu, ardendo de excitação, estimulando-se com pensamentos na mulher grande, bonita e determinada, que corre para se encontrar com ele no seu carrinho verde e sexy - foi a palavra usada pelo rapaz moreno que vendeu o carro a Shaul, e foi essa palavra que convenceu Shaul a comprá-lo -, e nu ele zanza rápido pelo apartamento, mesmo sendo um homem bastante lento por natureza. Shaul consegue de fato ver cada gesto seu, um por um, e seu jeito de andar e falar um tanto pesado, autoritário; mas, agora, ele está todo inquieto, pois os passos dela já sobem correndo as escadas, e pronto, eis que afinal ela chega mesmo, e ele já vai lhe abrir a porta, escolhendo bem a posição como a receberá, pois sua nudez, como dizer, talvez não agrade tanto a Elisheva, especialmente em pé, especialmente à luz do dia, que decerto não favorece as numerosas dobras que pontilham sua barriga e seu peito, nem os grandes e vigorosos músculos peitorais, nem os abundantes pêlos grisalhos; mas, hoje, ao ouvir os passos correndo escada acima, ele só abre um pouco a porta, e corre para a cama no quarto imerso na penumbra, e se deita numa posição provocativa, de bruços, um dos joelhos ligeiramente dobrado, como se tivesse dado um rápido e gostoso cochilo logo depois de ter lhe aberto a porta, dormitando com a tranqüilidade de um homem saudável sem problemas de digestão ou consciência, de modo que aos olhos dela, quando ela entra, revelam-se primeiro suas costas de aparência forte - e fortes de fato -, em seguida as nádegas e pernas que, nessa posição, têm um aspecto quase jovem; ela pára por um momento, dá uma olhada, sorri consigo mesma, então vai até a cama e, com calculada delicadeza, passa um dedo ao longo das costas dele, do pescoço até as nádegas, depois se curva e passa a língua vagarosamente, cuidadosamente, de um lado ao outro do pescoço, só a ponta da língua, só um ligeiro sinal da umidade de sua boca, e ele estremece e, com um grunhido, enfia a cabeça no travesseiro, como que decapitado - Mais tarde, dois ou talvez três dias depois - quando Elisheva não está, o tempo se torna uma cela circular -, Shaul está estendido no banco traseiro de um enorme Volvo. A noite fria e nublada de outubro aparece e desaparece intermitentemente entre os movimentos dos limpadores de pára-brisa. A seu lado, no chão do carro, um par de muletas. Sua perna esquerda, quebrada entre o calcanhar e o joelho, repousava sobre uma velha almofada puída, e ele observa a brancura do gesso se mover de um lado para outro, esforçando-se para entender o que aquela coisa tinha a ver com ele. Ésti, a esposa do seu irmão Micha, dirigia o carro. Já estavam juntos havia quase meia hora, e ainda não tinham conseguido desenvolver uma conversa de verdade, cada palavra que diziam despertava nele um sentimento de depressão. Ela era cinco anos mais nova que ele, talvez seis, não lembrava direito, e, na presença dela, sempre se sentia ainda mais seco e retraído que de hábito; seus membros compridos e finos, seu rosto anguloso, até mesmo seu pomo-de-adão saliente, tudo parecia exagerado quando ela estava por perto, com seu corpo cheio e sua face larga e morena. Toda vez que ela o fitava pelo retrovisor, ele se recordava de uma daquelas antigas réguas de madeira de seu pai, um "metro" amarelo, sulcado, que podia ser dobrado em partes menores. Houve um momento, quando ela o ajudou a se instalar no banco de trás, que seu corpo quase inteiro ficou apoiado nos ombros dela, e ela não soltou um grunhido sequer. Sentindo todo aquele peso, certamente achou que era apenas por causa do gesso; ele sabia que aquilo nada significava para ela, e com toda a certeza fizera uma comparação entre seu peso e o do irmão. Ela espiou pelo retrovisor, espantada: jamais o ouvira gemer desse jeito. Era seu irmão quem deveria tê-lo levado, mas na última hora ele fora chamado para cuidar do derramamento de uma carga de acetona na rodovia litorânea, e Ésti havia aparecido na sua casa em lugar dele. Ficou ali parada na porta, braços estendidos ao longo do corpo, pedindo desculpas por não ser Micha, incomodada por uma sensação de que ela e Shaul estavam se olhando como através de um espelho distorcido, que mostrava imagens corporais invertidas. Respirou fundo, retesando inconscientemente os ombros, como que se preparando para a tormenta que seria obrigada a enfrentar. No primeiro momento, ele não entendeu bem quem era ela, depois vacilou, não, não, que é isso, muito obrigado mas eu preciso do Micha, tem de ser ele. Mas ao mesmo tempo deu um passo para a frente, como que puxado para fora, e mais uma vez retrocedeu, agarrando a maçaneta da porta, cabeça baixa, tentando se lembrar de algo. Mas onde está Elisheva?, explodiu a pergunta tensa, como se ela perguntasse onde está a mamãe que não cuida do filho, que sempre lhe parecia perdido sem ela, sobretudo agora, com a face cheia de hematomas e a perna engessada. Ele não respondeu, apenas ficou olhando para ela, para seus traços nômades, de repente aguçados; fora exatamente nessa posição que ela havia sido apresentada à família muitos anos antes, parada ao lado de Micha com essa mesma expressão selvagem e assustada. "É uma favelada", decretou a mãe; e Ésti sabia muito bem o que ele estava vendo agora, e plantou com firmeza os pés no chão, buscando fervorosamente em seu íntimo a antiga e valiosa jazida da qual pudesse extrair sua capacidade de absorver os golpes, a capacidade de absorção de uma menina não amada porém teimosa que sabe muito bem se transformar, quando necessário, num minúsculo punho humano, cerrado e ágil, que vem e se instala justamente onde não é desejado, capaz de ali permanecer e reduzir suas pulsações a zero, até que de alguma maneira se acostumem com sua presença e com as pequenas vantagens que oferece, e por fim já não consigam existir sem ele - E foi desse lugarzinho que ela se ergueu, ao longo de todos esses anos, com seus filhos e Micha e sua exuberância de carne, e cruzou os braços sob o busto, dizendo que talvez não seria bom ele viajar naquelas condições, poucas horas depois de um acidente tão grave, e perguntou com cautela como foi exatamente que aconteceu, e ele retrocedeu mais uma vez, recuando para dentro da casa, quase levando um tombo, pouco acostumado com as muletas, como se não a tivesse absolutamente ouvido. Seus olhos estavam vermelhos, de chorar ou de falta de sono, ou de alguma outra coisa que neles ardia e que ela não identificou, e ele sussurrou com voz rouca que era obrigado a ir e que não entrava em cogitação que ela o levasse. Ela não considerou sua visível aversão em ser conduzido por ela, e perguntou aonde exatamente ele tinha de ir, e ele disse, para o sul. Erguendo de súbito uma das muletas com um gesto ridículo que lembrava um pássaro, ele disse, bem, vamos lá, tentando simular uma risada alegre, e anunciou que toda a situação era uma loucura total, mas que ele precisava estar lá naquela noite, por motivo de força maior, declarou, com uma entonação que naquelas circunstâncias soava como o ruído de um robe de seda rasgado de um nobre arruinado. E explicou o que já era óbvio desde o começo, que simplesmente não conseguiria chegar lá sozinho, naquele estado, e por isso pediu a Micha que o levasse. Ela tentou entender para onde exatamente ele esperava que ela o levasse no meio da noite, tão de repente, e ele não respondeu. Ela ferveu de íntima irritação, com ele e mais ainda com Micha, que a enviara a tal missão para agradar ao irmão, o qual jamais faria algo assim por Micha, e muito menos por ela. Shaul refletiu por um momento, como se a silenciosa raiva dela tivesse conseguido penetrar sob sua confusão mental, e lançou-lhe um olhar tão miserável que quase partiu seu coração, e disse, sei que é difícil para você, mas não tenho mesmo alternativa. Ela assentiu, confusa e ligeiramente assustada com o que via, e ele completou, no caminho, no caminho eu explico. [...]