Trecho do livro A HIDRA DE MUITAS CABEÇAS

1. O naufrágio do Sea-Venture Em 25 de julho de 1609, os marinheiros do Sea-Venture perscrutaram o horizonte e perceberam o perigo. Separados dos outros oito navios do comboio que ia de Plymouth, em direção oeste, para a Virgínia, a primeira colônia da Inglaterra no Novo Mundo, eles viram que uma tempestade - ou o que os índios Caribe chamavam de furacão - se aproximava rapidamente. Com "as nuvens engrossando sobre nós e os ventos cantando e zunindo da forma mais inusitada", escreveu o passageiro William Strachey, uma tempestade terrível e horrenda começou a soprar do nordeste, e, crescendo e rugindo por acessos,ora com mais violência,ora com menos, aos poucos extinguiu toda a claridade do céu; que, como um inferno de escuridão, voltou seu negrume sobre nós, para com mais eficiência o terror e o medo dominarem os sentidos subjugados de todos, que foram tomados de perplexidade, os ouvidos extremamente vulneráveis aos terríveis assobios e murmúrios dos ventos e aos tormentos do nosso pessoal, pois até os mais dispostos e preparados ficaram não pouco inseguros. A fúria que se avizinhava "assustou e revirou o sangue e acabou com a coragem até do mais calejado marinheiro". Os passageiros menos calejados do navio de trinta metros e trezentas toneladas gritavam de medo, mas suas palavras eram "abafadas pelos ventos e os ventos pelos trovões".Os estremecidos marinheiros se recuperaram e puseram mãos à obra quando o madeiramento começou a ranger. Seis a oito homens se juntaram para manter o controle do navio. Outros cortaram o cordame e as velas para diminuir a resistência ao vento e atiraram bagagens e suprimentos ao mar para aliviar a carga e reduzir o risco de a embarcação virar. Depois se arrastaram lentamente, de vela na mão, pelas vigas do navio, procurando, com os ouvidos aguçados, escutar qualquer barulho de vazamento, vedando os que podiam vedar, usando pedaços de carne quando a estopa acabou. Apesar disso a água entrava aos jorros, subindo vários centímetros, a ponto de encobrir duas camadas de barricas no porão. Tripulantes e passageiros bombearam continuamente durante "uma noite egípcia de três dias de horror perpétuo", com os passageiros "nus como os homens das galés". Até cavalheiros distintos, que nunca tinham trabalhado na vida, ajudaram a bombear água, e os que não puderam fazê-lo ajudaram com chaleiras e baldes. Calcula-se que, sem comer e beber, eles tenham bombeado 2 mil toneladas de água do navio furado. Mas não foi o bastante.O nível da água permaneceu alto, e as pessoas que operavam as bombas atingiram o limite de suas forças, de sua capacidade de resistência, e de suas esperanças. Tendo feito tudo que era humanamente possível para resistir à força apocalíptica do furacão, os cansados marujos buscaram consolo num ritual do mar,que consiste em virar o mundo marítimo de ponta-cabeça em face da morte. Em desafio aos rigores da propriedade privada e à autoridade do capitão Christopher Newport, assim como à de cavalheiros como sir George Somers e sir Thomas Gates, da Companhia da Virgínia, eles abriram à força as bebidas do navio e, num último gesto de solidariedade, "brindaram uns aos outros, num ato de despedida, desejando um alegre e feliz reencontro num mundo mais ditoso". O Sea-Venture naufragou - milagrosamente sem perda de vidas - entre duas grandes rochas nas ilhas do arquipélago das Bermudas, em 28 de julho. Os 150 passageiros e tripulantes encharcados e aterrorizados, homens e mulheres que a Companhia da Virgínia de Londres levava como reforço para a sua nova colônia, foram parar numa praia desconhecida, que os marinheiros havia muito consideravam uma "Ilha de Demônios", infestada de diabos e monstros, cemitério sinistro de navios europeus. Mapeado em 1511 mas evitado pelos cem anos seguintes, o arquipélago das Bermudas ficou conhecido sobretudo pelos relatos de marinheiros, renegados e proscritos, como Job Hortop, que escapara da escravidão das galés nas Antilhas espanholas, passara pela ilha, e viajara a Londres para contar sua história. Silvester Jourdain, passageiro do Sea-Venture, escreveria posteriormente que Bermudas não oferecia "nada além de rajadas de vento, tempestades, e tempo ruim, que navegadores e marinheiros evitam como se fossem Cila e Caribdes, ou como evitariam o próprio diabo". A soturnidade do lugar vinha em grande parte do uivo áspero e cavernoso de aves noturnas, chamadas petréis, cujos gritos estridentes assustavam as tripulações dos navios. A realidade das Bermudas, como os náufragos logo descobririam, era muito diferente da sua reputação. Para eles a ilha se revelou uma terra edênica de primavera perpétua e fartura de alimento, "o lugar mais rico,mais salutar e mais agradável que conheciam".Os futuros colonos banquetearam-se com porcos que anos antes tinham sobrevivido ao naufrágio de um navio espanhol, nadado até a praia e se multiplicado; com peixes (garoupa, peixe-papagaio, pargo) que pegavam à mão ou usando varas com um prego torto na ponta; com aves que pousavam nos braços e ombros de homens e mulheres; com imensas tartarugas que alimentavam cinqüenta pessoas; e com uma variedade de frutas saborosas. Para desgosto dos funcionários da Companhia da Virgínia, as Bermudas "fizeram muitos se esquecerem de voltar, ou de querer voltar, tais eram a fartura, a paz e o sossego em que viviam". A gente comum, tendo encontrado a terra da abundância, começou "a lançar as bases para viver ali eternamente". Aquele foi, afinal,"um alegre e feliz reencontro, num mundo mais ditoso". Não é de surpreender que os náufragos plebeus reagissem dessa maneira, pois lhes disseram que iam encontrar o paraíso no fim da viagem. Em sua "Ode a uma viagem virginiana" (1606),Michael Drayton insistira em descrever a Virgínia como Único paraíso na terra Onde a natureza tem de reserva Aves, caças e peixes; E o mais fértil dos solos, Que dispensando a labuta, Três colheitas mais provê Todas maiores que o nosso querer. Em 1610,Robert Rich, muito convenientemente, confundiria a experiência das Bermudas com a experiência da Virgínia, em sua propaganda poética da Companhia da Virgínia: Passar fome aqui é risco que não se corre, Pois milho abundante se colhe, E muitos peixes os rios galantes dão, É a pura verdade, sem invenção. Terminava dizendo que na Virgínia "não há escassez de coisa alguma". Outro defensor da Companhia da Virgínia sabia que esses relatos eram falsos, que algumas pessoas na Inglaterra os repudiaram como invencionice utópica, mas apesar disso sustentou a mentira, prometendo a candidatos a trabalhadores seis horas de trabalho por dia, sem que a "seiva dos seus corpos" fosse "gasta para enriquecer outros homens". Muitos colonos tinham partido para a Virgínia,no Sea-Venture e outros navios, com o "ardor e o zelo"de um "ano romano de Jubileu". O Jubileu bíblico (Levítico) autorizava a emancipação dos escravos e a devolução da terra aos despossuídos. Bermudas parecia o lugar perfeito para o cumprimento da profecia bíblica. Strachey, acionista e secretário da Companhia da Virgínia, observou que entre os náufragos logo surgiu "uma perigosa e secreta insatisfação", que começou pelos marinheiros e se espalhou entre os outros. Uma "discórdia entre corações e mãos" veio em seguida: aqueles que queriam dar continuidade à aventura de ganhar dinheiro na Virgínia estavam em desacordo com aqueles cujas mãos deveriam conduzi-los a esse objetivo. A principal queixa dos marinheiros e das outras "mãos" era que "nada se pode esperar na Virgínia além de miséria e trabalho, com muita necessidade e miserável distração [ou seja, provisões inadequadas], não havendo nem o peixe, nem a carne, nem as aves que aqui [...] podem ser desfrutados com facilidade e prazer". Falavam com conhecimento de causa, pois àquela altura os colonos da Virgínia comiam botas de couro e serpentes, e tinham o aspecto de "Anatomias [esqueletos], que gritavam estamos morrendo de fome, estamos morrendo de fome".Um homem matou a mulher,cortou-a em pedaços, e salgou-a para servir de alimento; outros desenterravam corpos nas sepulturas para comer. Já os proscritos das Bermudas só queriam "repousar e sentar-se onde precisassem do mínimo possível". Os fatos demográficos, quando cotejados, confirmam essas alegações. Ao aportarem na Virgínia, os outros oito navios, com350 pessoas que originariamente faziam parte do comboio do Sea-Venture, encontraram uma taxa de mortalidade catastrófica, que em dois anos reduziu o número de colonos de 535 para cerca de sessenta. Já os colonizadores das Bermudas sofreram em dez meses uma perda líquida de três pessoas, de um total de 150: cinco morreram - apenas um de causas aparentemente naturais,dois assassinados e dois executados - e dois nasceram. Strachey filosofou: "O que tem maior poder de atrair o consentimento e a anuência da multidão de ociosos, rebeldes e miseráveis do que a liberdade e a plenitude da sensualidade?". Para defenderem sua liberdade, alguns náufragos "prometeram uns aos outros não pôr as mãos em trabalho ou fazer esforço algum" que os afastasse da ilha, e com esse juramento se embrenharam no mato para fundar seus próprios assentamentos. Pretendiam mais tarde colonizar outra ilha para seu próprio uso. A greve e a formação de quilombo marcaram, portanto, o início da colonização inglesa. Entre os líderes dessas ações estavam marinheiros e extremistas religiosos, provavelmente antinomianos que se julgavam acima da lei pela graça divina. O esforço para estabelecer uma comunidade autônoma fracassou, mas a luta entre o coração e a mão prosseguiu. Stephan Hopkins, um erudito puritano e seguidor de Robert Browne, defendia a criação de igrejas separadas, auto-suficientes, nas quais a base do governo seria o consentimento mútuo, em vez da deferência aos antigos, ao rei ou à nação. Hopkins levou mais adiante a lógica do ritual dos marinheiros na tempestade, ao sustentar que a autoridade do magistrado se extinguira no momento em que o Sea-Venture fora a pique. Enfatizou a importância da "fartura pela providência divina de toda espécie de alimento" na ilha e recusou-se a seguir para a Virgínia, onde as pessoas comuns iam apenas servir de escravos para aventureiros. O motim de Hopkins também foi sufocado, mas ele não, tendo sobrevivido para fazer outro discurso sedicioso a bordo do Mayflower quando este se avizinhava da América, em 1620. Houve outros conspiradores nas Bermudas que também não se curvaram, pois mal os pulsos de Hopkins foram agrilhoados, um terceiro complô já estava em andamento, com outro bando de amotinados planejando apoderar-se dos suprimentos salvos do naufrágio e atacar o governador, Thomas Gates. Apesar de seu plano ter sido revelado às autoridades, a resistência prosseguiu. Outro rebelde foi logo executado por sedição verbal contra o governador e sua autoridade, e em resposta a essa medida diversos outros se embrenharam no mato,para formar quilombos, onde viviam, resmungava Gates, como selvagens. As autoridades acabaram se impondo. Construíram duas embarcações, duas pinaças, chamadas Deliverance e Patience, para continuar a viagem até a Virgínia, e lançaram-nas à água em 10 de maio de 1610.No entanto, durante as 42 semanas que passaram na ilha, marinheiros e outros "ociosos, rebeldes e miseráveis" organizaram cinco diferentes conspirações contra a Companhia da Virgínia e seus chefes, que reagiram decretando duas das primeiras sentenças de morte na América inglesa, um dos condenados morto na forca e o outro executado pelo pelotão de fuzilamento,para quebrar a resistência e dar continuidade à tarefa de colonização. Enquanto outros partiram para a Virgínia,dois homens, um deles marinheiro, decidiram ficar e "terminar seus dias"nas Bermudas. Com a ajuda de um terceiro, "começaram a erigir sua pequena fortuna comum [...] com administração fraterna". Um sinal inequívoco da sabedoria dos que ficaram para trás deu-se menos de um mês depois da chegada do navio à Virgínia, quando sir George Somers foi enviado por sir Thomas Gates às Bermudas em busca de alimento, uma provisão de carne e peixe para seis meses, destinada à colônia que lutava para se manter no continente.Mas sir George jamais chegou à Virgínia: ao descobrir os prazeres das Bermudas, morreu "de empanzinamento ao comer um porco". Apesar de não sabermos qual foi o destino individual dos marujos e passageiros que navegaram das Bermudas para a Virgínia, é provável que muitos tenham compartilhado da assustadora mortalidade da colônia no continente, morrendo logo depois de desembarcar. Coletivamente, entretanto, representaram aquilo que o chefe fanfarrão da Virgínia, John Smith, chamou de terceiro suprimento, uma injeção de humanidade que ajudou a jovem colônia a sobreviver. O naufrágio do Sea-Venture e o drama das rebeliões representado pelos náufragos sugerem os grandes temas dos primórdios da história atlântica. Esses fatos não contribuem para a grandeza e a glória marítimas da Inglaterra, nem para a história da luta heróica pela liberdade religiosa, apesar de os marinheiros e extremistas religiosos terem desempenhado papéis essenciais. Esta é, acima de tudo, uma história das origens do capitalismo e da colonização, do comércio mundial e da construção de impérios. É também, inevitavelmente, uma história do desarraigamento e da movimentação de pessoas, do fabrico e da organização e preparação transatlântica de "mãos". É uma história de exploração e resistência à exploração, de como foi gasta "a seiva dos corpos". É uma história de cooperação entre pessoas diferentes para alcançar os objetivos díspares de ganhar dinheiro e sobreviver. E é uma história das formas alternativas de vida e do emprego oficial da violência e do terror para contê-las ou eliminá-las, e para vencer o apego popular à "liberdade e à plenitude da sensualidade". Não somos, de forma alguma, os primeiros a descobrir significado histórico no caso do Sea-Venture. Um dos primeiros - e sem dúvida o mais influente - foi William Shakespeare, que usou relatos de primeira mão sobre o naufrágio em 1610-1 para escrever a peça A tempestade. Havia muito tempo Shakespeare estudava relatos de exploradores, negociantes e colonizadores que agressivamente interligavam a Europa, a África e as Américas pelo mundo do comércio. Além disso, conhecia pessoalmente homens desse tipo, e até dependia deles para o seu sustento. Como muitos dos seus patronos e benfeitores, entre eles o conde de Southampton, Shakespeare investiu dinheiro na Companhia da Virgínia, ponta-de-lança da colonização inglesa. Sua peça descreve e promove o crescente interesse da classe dominante da Inglaterra pela colonização e exploração do Novo Mundo. Nas páginas que se seguem,usaremos o naufrágio do Sea-Venture para consolidar quatro grandes temas das origens e do desenvolvimento do capitalismo atlântico inglês no começo do século XVII: a expropriação, a luta por modos alternativos de vida, os padrões de cooperação e resistência e a imposição da disciplina de classe. Na história do Sea-Venture e sua gente está contida a história maior do surgimento do capitalismo e do começo de uma época da história humana. [...]